A divulgação de uma série de áudios entre os cerca de 20 mil moradores de –a 208 km de Campo Grande– causou apreensão entre a população indígena e resultou em registro de boletim de ocorrência e notas de repúdio de diferentes entidades. As gravações, que teriam circulado em aplicativos como o WhatsApp, traziam acusações de que os índios “levaram o ” para a cidade e até ameaças de morte indiscriminadas.

Em meio à tensão, até o boletim epidemiológico diário da Prefeitura de Miranda foi alvo de apelos para que não separasse indígenas e não-índios.

Além de criticar os ataques, organizações de apoio às populações indígenas cobraram das autoridades a apuração da origem das gravações, bem como medidas mais severas para proteger os moradores –sejam da área urbana ou de aldeias como a Passarinho, Moreira, Lalima, Argola, Babaçu, Lagoinha, Morrinho, Cachoeirinha e Mãe Terra.

As gravações –as quais o Jornal Midiamax teve acesso– trazem comentários de supostos moradores de Miranda que criticam a forma com a qual foi instituído o combate à no início e agora e a circulação de moradores das aldeias pela cidade.

Como exemplo, citam a instituição de barreiras sanitárias nas comunidades indígenas antes do surgimento dos casos e, depois, do fato de que integrantes da população das aldeias circulariam livremente pela cidade.

Outra gravação traz ataques pessoais contra uma liderança indígena da região e, em outra, um homem faz acusações mais graves diante do suposto vazamento de conteúdo de conversas por alguém.

“Vamos ajuntar todo mundo vamos invadir a aldeia e matar todo mundo lá e pronto. Bom que já extermina essa raça inútil do c…”.

Família que voltou para aldeia teria instigado comentários sobre coronavírus

Os comentários teriam se iniciado com uma família indígena que deixou Miranda em direção a Sidrolândia em busca de trabalho –algo comum entre as populações indígenas do Estado, que nos períodos de safra seguem para diferentes regiões do país, como para a colheita de maçãs no Rio Grande do Sul.

Com a pandemia de coronavírus, essa família teria ficado desempregada e voltou para Miranda ao mesmo tempo em que surgiram casos nas comunidades indígenas. “Houve caso positivo nas comunidades em que estamos, nesse momento crítico, e apareceram os áudios nos quais fomos ameaçados, dizendo que tinha que ‘acabar mesmo com essa raça'”, afirmou Sebastião Gonçalves da Silva, vice-cacique atuante da Aldeia Moreira, na qual, segundo ele, houve 9 casos da doença que não demandaram internação.

Sebastião substitui o cacique Jair que, integrante do grupo de risco do coronavírus, foi afastado das suas funções temporariamente. A Aldeia Moreira tem algumas peculiaridades em relação às demais: a proximidade com a área urbana de Miranda faz dela praticamente um bairro da cidade, sendo comum que seus moradores vão à área urbana atrás de produtos e serviços. Ou, pelo menos, era assim.

“Já estamos com 5 meses de barreira sanitária e pedimos para nossa comunidade se proteger. Tanto que agora se vai uma vez por dia à cidade para evitar muita coisa. Estamos sofrendo agressão e já encaminhados às autoridades locais para que resolvam para a gente”, contou o vice-cacique.

Segundo ele, o caso já é investigado pelas autoridades policiais e um dos autores das gravações já teria sido identificado –a reportagem não conseguiu contatar a Polícia Civil da cidade para obter mais detalhes sobre o caso.

Denúncia gerou apoio de entidades de apoio às populações indígenas

As acusações envolvendo o coronavírus, ainda segundo o cacique em atuação, foi mais uma na qual as comunidades indígenas foram colocadas à margem. “Sempre fomos excluídos”, disse. A medida também despertou a fé “mais moderna”: com 1,5 mil habitantes, a Moreira, como diversas comunidades indígenas, tem forte presença de igrejas evangélicas.

“Aqui, 80% são evangélicos. Então, minha comunidade pediu a Deus que olhasse em geral pela cidade e abençoasse. Mas o que o homem branco falou para a gente foi o contrário: discriminação. Sofremos muito”, disparou, para em seguida elogiar o apoio recebido da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), “que está fazendo um excelente trabalho”.

O caso repercutiu entre entidades de defesa dos direitos indígenas, que vieram a público cobrar esclarecimentos das autoridades. “Repudiamos toda e qualquer forma de discriminação e preconceito. Temos apoiado e acompanhado de perto a situação, mas ações concretas ficam por conta das instâncias próprias das comunidades indígenas”, destacou Anderson Benites, diretor da ONG Ipedi (Instituto de Pesquisas da Diversidade Cultural).

O Conselho do Povo Terena também se manifestou em nota de sua Assessoria Jurídica, que disse acompanhar “com a devida atenção” as mensagens que circulam via WhatsApp com tom de ameaça. “Infelizmente, a Covid-19 tem sido utilizada como desculpa para legitimar um discurso carregado de preconceito e ódio”, prossegue.

A entidade avaliou que as declarações, “intoleráveis do ponto de vista legal”, configuram crime de racismo. Para tanto, porém, cobra investigações sobre a autoria dos áudios e como o áudio chegou a conhecimento dos indígenas.

Assinada por Luiz Henrique Eloy e Maurício Serpa França, a nota também recomenda cuidado com os anciões das aldeias e pede que indígenas evitem ir às cidades, entre outras medidas.

Henrique Terena, presidente nacional do Conplei (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) também manifestou em nota “nosso total repúdio à manifestação nefasta de alguns não-indígenas moradores da cidade de Miranda em relação ao povo Terena, que moram e sempre contribuíram para o progresso cultural e econômico desta cidade”.

No comunicado no qual criticou práticas de “preconceitos exacerbados” contra etnias milenares, a Conplei solicitou “veementemente que essas pessoas (se é que dizer pessoas) venham a público retratar suas falas e pedir perdão pelas ofensas feitas a essas comunidades terenas das quais, todos nós Terenas em todo o Estado fomos ofendidos”.

Caso a retratação não venha, o presidente do Conplei informa que tomará medidas legais cabíveis.

Boletim que separava índios da população gerou pedido da Sesai

Em meio à tensão gerada com as supostas ameaças, a Prefeitura de Miranda divulgou na última quinta-feira (16) boletim sobre o avanço do coronavírus no município segregando dados sobre os indígenas da população normal, situação contestada por defensores das populações índias. Foi a única veiculação de dados com tais informações separadas.

O Jornal Midiamax apurou junto à administração mirandense que a intenção era a de dar maior detalhamento e transparência à situação da Covid-19 no município. Contudo, a própria Sesai teria sinalizado que tal divulgação de informações não seria necessária, sendo abandonada no boletim seguinte.