Morte de enfermeira é sintoma de condições precárias de trabalho de profissionais da saúde

A morte da enfermeira Janaína Silva no último dia 2 de janeiro causou enorme comoção entre amigos, familiares e pacientes. Por um lado, representa a dor da partida da mãe, amiga e da profissional carinhosa. Mas, por outro, a morte da enfermeira também acende a lanterna vermelha e indica que as coisas não vão bem […]

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar

A morte da enfermeira Janaína Silva no último dia 2 de janeiro causou enorme comoção entre amigos, familiares e pacientes. Por um lado, representa a dor da partida da mãe, amiga e da profissional carinhosa.

Mas, por outro, a morte da enfermeira também acende a lanterna vermelha e indica que as coisas não vão bem para os profissionais de saúde em MS. Janaína pode ter sido apenas mais uma vítima de um problema estrutural na categoria que, imersa em rotina exaustiva e dilacerante, sucumbiu à pressão no trabalho, ao cansaço e a inércia aos cuidados com a própria saúde.

Como ela, milhares de outros profissionais também enfrentam dupla ou tripla jornada, ganham pouco, submetem-se a uma rotina na qual lidam com o sofrimento dos outros, não conseguem ter tempo para lazer, para a família e, principalmente, para si. Ao que tudo indica, a morte de Janaína incrementa uma estatística nebulosa de enfermeiros e de técnicos de enfermagem que se mataram.

O suicídio de profissionais de saúde é um problema estrutural, que se repete Brasil a fora. Mas, no caso mais recente, relatos de funcionários da mesma unidade onde Janaína trabalhava mencionam ao menos 4 mortes nos último anos. Dados da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) – que não especificam a profissão das vítimas de suicídio – apontam 2.344 tentativas entre 2017 e 2018, sendo 99 casos somente no último mês de dezembro. Foram confirmadas, de 2014 até junho de 2018, 256 mortes – 33 até o primeiro semestre do ano passado.

Há cerca de três décadas debruçado sobre o tema do suicídio, o capitão capelão do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso do Sul, Edilson dos Reis, aponta que o suicídio entre profissionais de saúde, dentre os quais estão enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, é comum. Ou seja, a morte de Janaína pode não ter sido simplesmente uma fatalidade, mas sintoma de uma rotina de trabalho muitas vezes cruel, e que não acaba simplesmente ao chegar em casa.

“O que pode estar por trás disso? Temos um caminho a pesquisar, mas me parece óbvio que, além de não tratarmos os transtornos mentais como algo primário, temos uma série de outros gatilhos que podem culminar no suicídio”, alerta o caelão.

“Temos em MS vários casos de enfermeiros que se suicidaram, só para citar especificamente esse grupo. Ano passado, em Aquidauana, uma técnica também se matou. Relaciono isso à carga de trabalho excessiva, à angústia inerente à profissão, às questões familiares e, principalmente, à tentativa de esconder as questões de saúde”, comenta Reis.

Segundo o capelão, a depressão – que possui vários estágios – é uma das condições que podem culminar no suicídio e, como transtorno mental, pode ser diagnosticado e tratado. “A prevenção é a chave, mas só procuramos ajuda quando está descontrolado. Por quê?”, provoca.

Rotina exaustiva

A resposta pode morar na precarização das relações de trabalho de profissionais da saúde. O alerta para o autocuidado é constante, mas, efetivamente, hospitais, clínicas e postos de saúde o ignoram. São comuns os relatos de jornadas exaustivas, de baixa remuneração e atraso salarial, de falta de insumos para execução adequada do trabalho e de sobrecarga nos ambientes laborais.

Uma das doenças associadas às condições é a Síndrome de Burnout, um tipo de depressão que é ocasionada pelo esgotamento físico e mental decorrente das atividades profissionais – doença mais que comum entre profissionais com jornada de 12h/36h.

Morte de enfermeira é sintoma de condições precárias de trabalho de profissionais da saúde
Presidente do Coren-MS, Sebastião Duarte confirma condições precárias de trabalho de enfermeiros (Foto: Divulgação)

“A categoria enfrenta uma dura realidade, na qual a sobrecarga de trabalho se tornou comum. É uma profissão que ao longo dos anos se precarizou. A jornada é longa e exaustiva e a compensação salarial é baixa, o que obriga uma dupla ou tripla jornada”, afirma o presidente do Coren-MS (Conselho Regional de Enfermagem de MS), Dr. Sebastião Junior Henrique Duarte.

Outro fato que se relaciona intimamente é que estes profissionais não praticam atividades de lazer e nem têm tempo ou disposição para cuidarem da própria saúde – contrassenso comum entre profissionais da área. Os transtornos mentais, do stress à depressão, são mais evidentes, porém ignorados. Mas, além desses, problemas de circulação, hipertensão e demais enfermidades também costumam surgir.

“O ideal seria que toda instituição tivesse laborterapia, que ajudaria a fazer algo, no ambiente de trabalho, que enfermeiros e técnicos não conseguem fazer no dia a dia. O descanso também é um desafio, pois nem todo mundo consegue gozar dele efetivamente”, completa Duarte.

Uma das questões alavancadas pelo Coren-MS é a busca por reconhecimento de direitos trabalhistas. Aposentadoria especial, com 25 anos de contribuição, é um deles. “Temos casos em que o profissional conseguiu na Justiça esse direito, mas existem alguns critérios. Por exemplo, são várias instituições que não reconhecem insalubridade nas enfermarias. Há um longo caminho pela frente”, diz o presidente.

Depressão, um tabu

Em qualquer ambiente profissional, existe uma espécie de discriminação contra pessoas que possuem enfermidades mentais. A depressão, por exemplo, é comumente desacreditada, até mesmo entre profissionais de saúde.

“A jornada de trabalho é muito pesada, essas pessoas detém muita responsabilidade, não podem errar. O desconforto e a tensão afeta a saúde deles e, como não há uma compensação financeira adequada, eles se submetem a plantões ou jornadas no contra-turno”, explica o capelão do Corpo de Bombeiros. É onde mora o início de um ciclo perigoso.

Segundo Reis, o profissional que sucumbe à depressão ou ao stress pode buscar tratamento e receber atestado para cuidar de si. “Mas, aí vem o assédio. Ele passa a ser considerado preguiçoso, vão dizer que ele não quer trabalhar. Ele deixa de ganhar adicionais pelos plantões. Então, acaba sendo comum as pessoas se submeterem para não sofrerem essa discriminação”, afirma.

Relatos científicos também apresentam dados alarmantes. Mulheres enfermeiras, por exemplo, são especificamente mais vulneráveis à depressão e, consequentemente, a cometerem suicídio, devido à “terceira jornada”: cuidar da casa, filhos e marido.

“A questão familiar também agrava isso. Quando ela chega em casa, tem que cuidar da organização familiar, ou seja, da alimentação, da limpeza, da tarefa escolar dos filhos… O cansaço é extremo, não tem lazer. As circunstâncias alimentam a culpa dos profissionais por não darem conta do que é, no fim das contas, desumano”, conclui Reis.

Mais comum do que se pensa

A reportagem do Jornal Midiamax que trouxe a primeira repercussão da morte de Janaína Silva gerou nas redes um debate fundamental sobre o tema. Em meio ao reconhecimento e pesar da partida de Janaína, houve, também, centenas de comentários na matéria e nas redes com relatos assustadores do dia a dia de um enfermeiro ou de um técnico de enfermagem.

Morte de enfermeira é sintoma de condições precárias de trabalho de profissionais da saúde
(Foto: Marcos Ermínio | Midiamax)

Mas, relatos de funcionários de diversas áreas do Hospital Regional Maria Pedrossian, onde a enfermeira trabalhava, contam que a situação enfrentada por Janaína era, na verdade, generalizada, ocorrendo em diversos setores da unidade hospitalar.

“Lembro de ao menos quatro suicídios, um deles foi ano passado, um rapaz que se matou no próprio hospital. Todo mundo aqui é submetido a um volume de trabalho abusivo. Para receber algo decente somos praticamente obrigados a fazer plantões de 60h semanais. Ninguém descansa, já chegamos aqui cansados. Se chamassem os aprovados no concurso a coisa melhoraria. Estamos pedindo socorro”, conta uma funcionária que prefere não ser identificada.

“Não temos psicólogo, não temos ginástica ou terapia ocupacional. Somos muito mal tratados por pacientes. Precisamos de cuidados, porque muita gente aqui tem depressão. Se tira atestado, acham ruim, ficam falando. Tem gente recorrendo a psicotrópicos para aguentar o tranco. Não recebemos assistência nenhuma”, conta outro funcionário, também com identidade sob sigilo.

Na próxima semana, funcionários planejam fazer um abaixo-assinado à diretoria do Hospital Regional, no qual reivindicarão assitência psicológica aos trabalhadores, bem como que aprovados no último concurso sejam convocados e, com isso, o volume das atribuições seja redistribuido. “Precisamos que olhem pra gente. Nós cuidamos de pessoas, não queremos morrer”, clamam os funcionários.

* Matéria alterada às 10h14 em 07/01/2019 para correção de dado estatístico.

Conteúdos relacionados