Enquanto as manhãs de julho ficam mais folgadas para os mais ricos com as férias escolares, na periferia de  o drama diário começa mais cedo para centenas de famílias: é preciso achar onde e com quem deixar as crianças, muitas com menos de 5 anos de idade.

Enquanto escolas e Ceinfs (Centros de Educação Infantil) fecham, quem trabalha para garantir comida nestes lares não pode parar. O drama para algumas famílias é maior porque até o lanche servido nas unidades educacionais faz falta para os pequenos.

Nestas famílias menos privilegiadas, é comum que crianças e jovens fiquem à própria sorte em casa, o que os expõe a riscos, desde os acidentes domésticos a situações mais graves, como abusos e violência.

Esse fato é agravado pela deficiência da Rede Municipal de Ensino em oferecer vagas para escolas em período integral: são apenas duas unidades: as escolas Professora Iracema Maria Vicente, no bairro Rita Vieira, e Professora Ana Lúcia Oliveira Batista, na Vila Planalto. Nas duas, proximidade do prédio são critérios que priorizam a destinação de vagas.

Na prática, praticamente toda a cidade padece de escolas neste regime de funcionamento, e as áreas mais carentes não são atendidas.

Na periferia, o drama de quem não tem com quem deixar os filhos enquanto trabalhaA vendedora Sueli Noronha, de 29 anos, que mora no Tiradentes, tem dois filhos e revela que também sofre com o período de férias. “Na verdade, antes das férias isso já é um problema, porque eles vão à escola pela manhã e eu só volto para casa à noite. É uma aflição, porque se não tivesse minha mãe para me ajudar, eles não teriam com quem ficar”, diz a vendedora, mãe de Gabriel, de 5 anos, e de Pietro, de 9. “O problema só fica maior nas férias”, completa.

Somente em 2017, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul atendeu 2.721 pessoas com o fim de solicitar abertura de vagas ou matrículas em escolas públicas e Ceinfs (Centros de Educação Infantil). Em 2018, até junho deste ano, já foram formalizados 1.418 pedidos. De acordo com o órgão, nem todos os atendimentos se tornam ações judiciais. “Pode acontecer da Defensoria enviar um ofício à Secretaria de Educação e já conseguir a disponibilização da vaga, somente em caso de negativa que entra-se com a ação”, traz comunicação do órgão.

Problema estrutural 

Todavia, apostar nas escolas em tempo integral chama atenção para eventuais danos, como destaca a pedagoga Maria Alice de Castro, de 52 anos. “Não podemos encará-las como um depósito de filhos. Nessas escolas, elas precisam ter educação e lazer. Não é mais uma tendência pedagógica, há estudiosos que relacionam escola em tempo integral como uma espécie de tortura educacional às crianças”, diz.

Para ela, o problema é estrutural, e caberia à União pensar numa forma de valorizar as famílias. “Ou, pelo menos, fazer com que as pessoas não precisem trabalhar tanto”, conclui Maria Alice.

A Prefeitura informou, por meio da assessoria de imprensa, que não há previsão para a criação de mais unidades que funcionem neste regime.

Perigos à vista

No período de férias escolares crescem também os riscos de acidentes domésticos. De ferimentos com objetos perfuro-cortantes até a incêndios e queimaduras com utensílios de cozinha, a vulnerabilidade e exposição de crianças a riscos só cresce quando há ausência de um adulto. Mãe de uma menina de 5 anos, a profissional de marketing Jacqueline Alves Cordeiro, de 32 anos, relata dificuldades nesta época.

Na periferia, o drama de quem não tem com quem deixar os filhos enquanto trabalha
Grupo se dedica a explorar cidade em busca de atividades infantis gratuitas (Foto: Onde ir com filhos em Campo Grande | Reprodução)

“Minha sogra fica com minha filha das 7h da manhã até às 19h, quando chego do trabalho. Eu tenho sorte de poder contar com ela, porque do contrário teria que pagar alguém para cuidar. Infelizmente não há tantas atividades de lazer nas férias, as que existem têm poucas vagas, e nem todo mundo tem oportunidade de pagar alguém para isso”, explica.

Jacqueline é uma das administradoras da página Onde ir com filhos em Campo Grande, no Facebook, dedicada em explorar atividades, de preferência gratuitas, voltadas a crianças na Capital. Toda semana, novos lugares são testados e, posteriormente apresentados na fanpage. No WhatsApp relacionado à página, mães e pais também compartilham experiências sobre criação de filhos.

“No grupo temos mais a realidade de pessoas que têm filhos em escolas particulares, mas acredito que durante as férias os desafios sejam semelhantes. O que temos feito é nos manter informado sobre as atividades possíveis, como colônias de férias, porque a criança não fica ociosa e tem supervisão de adultos”, acrescenta. “Temos relatos de mães que tem deixado os filhos com vizinhos, ou que ficam sozinhas e os vizinhos vão dar uma olhada”, completa.

Abandono de incapaz

De fato, as férias escolares são apenas a ponta do iceberg, já que a dificuldade de ter um responsável pelos filhos durante o trabalho perdura todo o ano. “É um problema real, porque para complementar a renda é muito comum que os pais tenham dupla e às vezes até tripla jornada. Nem sempre eles vão conseguir alguém que cuide dos filhos, por isso a vulnerabilidade”, conta Maria Alice de Castro.

Na periferia, o drama de quem não tem com quem deixar os filhos enquanto trabalha
Abandono de incapaz já somam 116 casos em 2018 (Foto: Arquivo)

Vale lembrar que tal ato, chamado de “abandono de incapaz”, é configurado como crime, conforme o artigo 133 do Código Penal. A pena pode variar de seis meses a três anos de detenção. De acordo com a Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), em Campo Grande, foram registrados em 2018, de janeiro a junho, 40 casos de abandono de incapaz. Em 2017, o total de casos foi de 72. Em todo o Estado, os números do ano passado chegaram a 258. Neste ano, o número já chega a 116.