Mais barato que crack, ‘resto’ da cocaína vira motivo de alerta em Campo Grande
Barata, viciante e extremamente destrutiva. Esta é uma descrição possível da pasta base de cocaína, um subproduto obtido a partir da fabricação do famoso pó branco, cujo consumo pode ter crescido absurdamente em Campo Grande. Raras são as apreensões policiais nas rodovias de Mato Grosso do Sul na qual ela não esteja incluída. Raros são […]
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Barata, viciante e extremamente destrutiva. Esta é uma descrição possível da pasta base de cocaína, um subproduto obtido a partir da fabricação do famoso pó branco, cujo consumo pode ter crescido absurdamente em Campo Grande. Raras são as apreensões policiais nas rodovias de Mato Grosso do Sul na qual ela não esteja incluída. Raros são os depoimentos de usuários que conseguiram vencer sua adicção – por conta dos baixíssimos índices de recuperação, pode-se falar que seu consumo é um caminho praticamente sem volta.
Esta é a primeira reportagem de uma série especial produzida pelo Jornal Midiamax sobre o aumento do consumo na Capital, num contexto em que a palavra ‘preferência’ é meramente retórica: quem inicia seu uso passa a não ter opção, uma vez que basta uma utilização para tornar-se dependente.
A expectativa de vida de quem segue por esse caminho é reduzida: 50% dos usuários vivem apenas de 5 a 10 anos após o primeiro consumo.
Segundo especialistas, se o dependente não morrer pelos danos cerebrais, por overdose ou pelo processo de inanição provocados pela substância, pode padecer em função da violência das ruas, bem como em decorrência do cometimento de crimes ou dentro de presídios.
“O que chamamos de pasta base não é a matéria prima da cocaína, mas justamente o que resulta do processo. Há um lixo, um subproduto, do qual gera-se a pasta base. Ela é quimicamente conhecida como sulfato de cocaína, já que o ácido sulfúrico é utilizado em grande quantidade, resultando na pasta de cor amarela ou amarronzada. Normalmente, é consumida em cachimbos, fumada”, conta o médico psiquiatra Marcos Estevão dos Santos Moura, vice-presidente do Conselho Estadual de Políticas Públicas Sobre Drogas do Estado (Cead).
Os valores dão pistas do porquê o consumo da pasta base cresceu: uma pequena quantia de droga suficiente para dois usos pode ser encontrada por até R$ 5, enquanto a pedra de crack chega a custar de R$ 10 a R$ 15. Um papelote de cocaína em pó custa no mínimo R$ 50. E, mesmo mais barata, ela dá mais lucro aos traficantes, já que o efeito é curto e que as consequências da abstinência são avassaladores, a ponto de estimular uso contínuo. “O indivíduo em abstinência sofre muito e por isso ele dá um jeito de consumir. Então isso aumenta o lucro de quem vende, porque a frequência é grande”, explica Moura.
A ‘prima’ do crack
O consumo de pasta base começou a ser reportado na década de 1980, bem antes do crack. Em Mato Grosso do Sul, inclusive. De acordo com informações do Cead, há relatos de que grupos de crianças e adolescentes em Corumbá, no Pantanal, foram aliciados quando traficantes da região de fronteira, há cerca de 30 anos, decidiram testar o potencial do subproduto obtido na produção de cocaína. O crack, por sua vez, teve seu consumo disseminado a partir da década de 1990.
“Ela é ‘prima’ do crack. Uma droga barata, bem menos sofisticada, mas que tem potencial extremamente destrutivo”, conta o psiquiatra. Por receber aditivos diversos em várias regiões do país – dentre eles, eter, querosene e pó de vidro – ela também ganha muitos nomes. Merla e zuca são alguns deles. Mas, nas ruas de Campo Grande, ‘pasta base’ é o nome mais comum.
“Ela é uma droga de caráter euforizante. Após ser consumida, os efeitos se iniciam no organismo em cerca de 5 minutos, provocando euforia e sensação de poder. Após esse tempo, o usuário pode enfrentar o que chamamos de paranoia. Isto é, ele é tomado por medo e chega a fantasiar coisas inexistentes, como uma perseguição policial, perseguição de traficantes”, explica o psiquiatra Marcos Estevão dos Santos Moura.
Segundo ele, o entorpecente desregula os neurotransmissores e ‘burla’ o sistema de recompensa cerebral, o que altera o comportamento do indivíduo. “Horas depois, se não tiver retomado o consumo que devolve a euforia, o usuário enfrentará profunda depressão, causada pela abstinência, e que pode durar dias. Isso ocorre porque é uma droga que vicia imediatamente”, acrescenta.
Além da dependência avassaladora, o uso contínuo de pasta base também traz danos irreversíveis ao organismo, desde a rápida deterioração neural, que ocasiona perda intelectual e cognitiva – em alguns casos, pode fazer com que o dependente sofra de demência – a uma perda de massa muscular chamada rabdomiólise, sobretudo nos músculos da face. Fígado e rins também são fortemente afetados.
Pasta base e criminalidade
O aumento do consumo de pasta base, perceptível pelo grande número de apreensões realizadas em Mato Grosso do Sul nos últimos meses, pode estar relacionado ao aumento de crimes na Capital. Mas, há uma sequência dos fatos entre o primeiro consumo e a atividade criminosa. O primeiro deles é quando a pessoa que experimenta o entorpecente torna-se viciada na substância, o que inicia um processo de depredação patrimonial.
“Os danos cerebrais são intensos, ela perde produtividade no trabalho, afasta-se da família e dos amigos. Sem dinheiro, vende tudo o que tem para comprar a droga, a ponto de não ter mais nada. E quando ela enfrenta períodos mais longos de abstinência, pode começar a cometer crimes”, explica a psicóloga Ana Lúcia Almeida, especializada em atendimento de dependentes químicos.
Segundo ela, é clara a relação entre o crescimento do consumo de pasta base nas cidades e o aumento do índice de crimes. “O dependente de pasta base não consegue se manter produtivo por muito tempo, principalmente se ele for de um estrato social menos favorecido economicamente. Por isso, ele fica sem ter como comprar a droga e passa a cometer furtos, arrombamentos e até mesmo roubos”, detalha.
Recuperação possível?
Para a presidente do Cead, a psicóloga Denise Souza e Silva, o sinal de alerta para o consumo de pasta base em Mato Grosso do Sul já soou há muito tempo. “É tudo muito preocupante, principalmente porque o acesso a esta droga é muito fácil e do primeiro consumo à dependência podemos estar falando de uma questão de horas”, destaca.
Agrava o panorama a falta de pesquisas relacionadas à utilização da droga, o que dificulta a implantação de uma política pública efetiva para além da repressão ao tráfico. “Na verdade, apenas temos uma ideia do que é, pois não existem pesquisas aprofundadas, ainda, sobre a pasta base, aos moldes que já temos sobre maconha, cocaína e até mesmo sobre o crack. Isso dificulta tratamentos e o desenvolvimento de protocolos para a recuperação”, ressalta.
Para o psiquiatra Marcos Estevão dos Santos Moura, livrar-se da pasta base é como ganhar na loteria. “Muito difícil. A dependência, em si, nunca acaba. Só podemos dizer que o indivíduo superou o uso após dez anos de sobriedade. Há muitas estatísticas sobre recuperação, mas tenhamos em mente que entre aqueles que são encaminhados para tratamento, no máximo 20% consegue sucesso. É um número extremamente baixo”, conclui.
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