Mudança pode frear especulação imobiliária, mas divide opiniões

Uma das mudanças discutidas para o Plano Diretor de Campo Grande pode afetar a forma como a cidade autoriza a ocupação urbana, garantindo a todos o mesmo direito de construir, e cobrando mais de quem ocupa áreas maiores, com edifícios de vários andares, por exemplo.

Essa autorização é definida pelo ‘coeficiente básico', número que indica quantas vezes o tamanho do terreno pode ser usado como área construída. 

Em , esse coeficiente vai de 1 a 6 e funciona assim: vamos supor que você tenha um terreno de 500 m² e queira construir uma casa. Se o coeficiente definido for 1, a área construída da sua casa pode chegar ao mesmo tamanho do terreno, ou seja, os 500 m².  Se esse valor for 2, a construção poderia chegar ao dobro disso, ou 1000 metros quadrados, e assim sucessivamente.

Segundo especialistas em urbanismo, é este índice que define como algumas regiões ficam superpovoadas, enquanto outras viram verdadeiros vazios dentro da cidade. Com a mudança proposta, a capital sul-mato-grossense adotaria um coeficiente básico, ou seja, um índice único para todo mundo, e a ‘outorga onerosa', mecanismo que cobraria mais de quem vai construir áreas maiores.

Assim, caso a administração defina o índice de ocupação em 1, empresários que forem ultrapassar esse valor deverão ressarcir o poder público através da chamada ‘outorga onerosa'. Por exemplo, para construir um prédio de 20 andares, os donos terão de pagar valores correspondentes a quantas vezes ultrapassaram o básico.

‘1000 m² no Jardim dos Estados'

O debate é polêmico, principalmente porque atinge um dos negócios mais lucrativos em Campo Grande. O setor imobiliário, por exemplo, recebe com reservas a ideia de unificar e tornar igual o direito de ocupação entre donos de terrenos nos bairros mais pobres da cidade ou donos de áreas luxuosas.

A Comissão de Direito Mobiliário, Urbanístico, Notarial e Registral da OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Mato Grosso do Sul) pontuou que um valor único para a construção de terrenos poderia estabelecer uma espécie de censura para os proprietários, além de desacelerar a construção civil, prejudicando empregos e a economia.

“Você pode construir um único pavimento no terreno. O Jardim dos Estados por exemplo, pela legislação você só vai poder construir 1000 metros, é como se não tivesse a posse em totalidade do terreno. Estão dizendo que será uma fonte de arrecadação maravilhosa, mas São Paulo é outra realidade. Segundo as empresas de Construção e as entidades, vai paralisar as construções, vai inviabilizar a construção civil, eles vão acabar indo pra outros locais”, argumenta o presidente da Comissão, Alípio Oliveira.

Mas, quem acompanha o crescimento de Campo Grande observando impactos da ocupação para questões práticas como a mobilidade urbana, controle de enchentes ou segurança pública, por exemplo, discorda das preocupações de quem lucra com o setor imobiliário.

Arquiteto e especialista na questão, Jean Claude faz parte do DAEX (Departamento de Auxílio aos órgãos de Execução), órgão de perícia técnica do MPE-MS (Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul). Ele explica que o valor único para as construções não irá prejudicar a cidade.

“O conceito não é para prejudicar, é justamente o contrário, é para tornar a cidade mais acessível a quem realmente precisa dela, que são as pessoas que moram na cidade”. O MPE-MS é um dos órgãos que tem acompanhado a revisão do .

Apesar de ser uma revisão coletiva, o Plano Diretor não pode romper com a legislação federal, e um valor único junto com a outorga onerosa para a construção civil é uma das prerrogativas do Estatuto das Cidades para o desenvolvimento urbano e social. Mas o que o coeficiente único tem a ver com o desenvolvimento urbano e social? Tudo.

Ilhas verticais

Conforme mostrou o Jornal Midiamax, há 6 meses Campo Grande tinha 911 prédios. Os empreendimentos de muitos pavimentos estão distribuídos de maneira caótica pela cidade, segundo especialistas, e têm criado ‘ilhas verticais'. As ilhas verticais são locais que dão acesso a grupos privilegiados e tornam a urbanização concentrada em poucos pontos da cidade. Um exemplo? O entorno do Shopping Campo Grande.

“Outra questão, quando a gente trabalha com coeficientes muito diferentes como é a situação atual de Campo Grande, a prefeitura sem querer acaba interferindo no valor dos imóveis. Porque, por exemplo, se você pegar a região ali próxima ao Shopping Campo Grande, onde está tendo uma grande verticalização. Essa verticalização está ocorrendo lá porque o coeficiente permitido é alto. Quando você concede, porque atualmente isso é concedido gratuitamente, a Prefeitura estabelece lá o coeficiente 6, não cobra nada e todo aquele entorno fica somente para o mercado imobiliário, não é revertido para a cidade”, explica Jean.

Segundo o perito do MPE-MS, é justamente para equilibrar esse tipo de empreendimento que a outorga onerosa seria benéfica.

“A outorga onerosa só incide sobre grandes empreendimentos, ela não incide sobre a maior parte da população que é quem vai construir seu imóvel pra morar, seu pequeno comércio, porque se a gente for observar a maior parte das construções sequer usa o coeficiente 1. A gente sabe que tem regiões da cidade que são mais estruturadas e que tem condições de receber um maior adensamento populacional”, esclareceu.

‘Coisa socialista' versus ‘Especulação imobiliária'

Representante do CREA-MS (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Mato Grosso do Sul) na revisão do plano, o engenheiro Aroldo Figueiró, que já trabalhou em autarquias da Prefeitura durante gestões passadas, é contra a ideia. Para ele, a indústria da construção iria ‘desacelerar'.

“Eu acho que é uma coisa muito socialista. Eu não entendo. Por exemplo, eu comprei um terreno para fazer um prédio de 20 andares, se passa uma lei dessa, e eu não tinha sido prevenido, eu vou ter um prejuízo muito grande. Se eu sou um investidor, em função do meu trabalho existe toda uma indústria de construção que alimenta e é a maior fonte de distribuição de renda no Brasil”, afirma.

Já o representante dos Conselhos Regionais na revisão do plano, Fagner Lira, argumenta que a desordem nos coeficientes trava o acesso da população aos locais onde atua a especulação imobiliária.

“Atualmente Campo Grande apresenta coeficiente de aproveitamento muito desigual que vai de 1,0 a 6,0, o que implica valorizações diferenciadas de porções do território urbano, tornando algumas delas inacessíveis à maior parte da população, pois um terreno onde se pode construir muito, vale muito para o mercado imobiliário e um terreno onde se pode construir pouco, vale pouco para esse mesmo mercado, ou seja, para nós, quanto menor o valor do terreno, mais pessoas poderão ter acesso à moradia, porque queremos uma cidade boa para se viver”.

Além de um valor igual para que todos construam, há locais que devem ter valor diferenciado. Um exemplo disso são as APPs (Áreas de Proteção Permanente). Nesses locais, a construção, seja ela um prédio, um comércio ou uma casa, deve resguardar parte do espaço. Esse valor varia de acordo com a área protegida

“A prefeitura pode estabelecer: aqui eu quero preservar essa região, então ela coloca um coeficiente 0,4 ou 0,5”, comenta Jean.

Outras Capitais já utilizam

Técnico do Iphan (Instituto de patrimônio histórico e artístico nacional), o arquiteto André Vilela explica que a aplicação de um coeficiente igual para todos já ocorre em outras Capitais brasileiras.

“Grandes capitais brasileiras vêm adotando cada vez mais o Coeficiente de Aproveitamento Básico, incluindo Porto Alegre, Salvador e São Paulo. Diferente do contrassenso que alguns setores vêm divulgando erroneamente de forma a confundir a população, parte de uma recomendação do Conselho das Cidades, através da Resolução 148/2013, como parte fundamental de um conjunto de ferramentas que, ao fim, visam enfrentar problemas urbanos como o do espraiamento da cidade, que refletem nos vazios urbanos, um dos maiores problemas da cidade de Campo Grande”, esclarece.

Conforme explicam o conselheiro e os arquitetos, a outorga onerosa pode, inclusive, ser benéfica para o poder público, já que a Prefeitura alega estar com os cofres públicos defasados e mergulhada em crise financeira. A arrecadação pode financiar políticas habitacionais, por exemplo.

André explica que há anos a questão é debatida por especialistas, pesquisadores e movimentos sociais para enfrentar ‘sistemas' que impedem a cidade de ser mais ocupada. É uma forma, segundo ele, de aproveitar melhor a infraestrutura que já existe.

“Viabilizando o transporte coletivo, estimulando uma cidade mais saudável, segura e caminhável, mas também, parte de uma leitura muito sóbria do arcabouço legislativo referente ao direito de propriedade, a função social da terra, a isonomia no tratamento aos cidadãos e até mesmo o enriquecimento sem justa causa”, pontua.

Para o arquiteto do MPE-MS, a outorga é justamente pra isso: uma gestão social da valorização da terra.

“Então ela vem justamente para que haja alguma reversão financeira pros cofres públicos pra que a prefeitura possa investir esse dinheiro em áreas que não tem infraestrutura. É uma forma de distribuir os benefícios e os ônus do processo de urbanização”.

Além da criação de coeficiente único com uso de outorga onerosa, outros pontos levantaram polêmica e todos têm relação com um dos principais problemas da cidade: os vazios urbanos. Hoje, esses espaços representam cerca de 35% da Capital.

A reportagem perguntou para a Prefeitura sobre a atual aplicação dos coeficientes de construção e aguarda o retorno.

Revisão atrasada

Campo Grande já tem um Plano Diretor, a lei 94/2006, que orienta as políticas públicas na cidade. A revisão desse documento, segundo o Estatuto das Cidades (lei federal de 2001), deve acontecer a cada 10 anos. Em 2016, a administração deveria ter finalizado o novo plano, mas questionamentos quanto à discussão junto a sociedade fizeram com que a revisão tivesse que voltar ao processo de consulta popular.

A revisão tem, agora, 3 minutas: uma elaborada pela Urbitec (empresa contratada pela administração de Alcides Bernal); outra que foi resultado da minuta elaborada pela empresa após discussão em reuniões e audiências; e por último, uma apresentada pela administração de Marquinhos Trad (PSD).

Entre junho e julho, o Planurb (Instituto municipal de planejamento urbano) realiza reuniões nos bairros para discutir a revisão. O jornal Midiamax traz, ao longo desta semana, uma série de matérias discutindo pontos que geraram polêmica na revisão do plano.