Fotos de feridos confirmam tiros em confronto entre índios e fazendeiros

Sindicato rural disse ter usado apenas fogos de artifícios

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Sindicato rural disse ter usado apenas fogos de artifícios

Em nota à imprensa divulgada na tarde de ontem, quarta-feira (15), o Sindicato Rural de Caarapó negou a ocorrência de um ataque armado contra indígenas da Aldeia Te’ Ýikuê, em Caarapó, a 273 quilômetros de Campo Grande. A entidade alega que em vídeos divulgados nas redes sociais ruralistas “utilizaram fogos e bombas” durante uma mobilização na fazenda Ivú, por terem “medo de retaliação ou reação por parte dos índios” que ocupavam a propriedade na manhã de terça-feira (14). Todavia, imagens obtidas com exclusividade pelo Jornal Midiamax confirmam uso de arma de fogo. 

Nessa ocasião, um índio morreu e pelo menos seis ficaram feridos. As fotos mostram que essas vítimas foram atingidas por disparos de arma de fogo, tiros que atingiram principalmente tórax e abdômen. As próprias equipes que atuaram no socorro aos indígenas baleados confirmam que os ferimentos foram causados por munição letal.

INVESTIGAÇÃO FEDERAL

Apesar da contestação dos ruralistas, que acusam “distorção dos fatos apresentados pela mídia local, regional e até mesmo nacional”, a PF (Polícia Federal) garante não ter dúvidas de que houve o confronto. “Nosso papel aqui é apurar o crime contra a coletividade indígena, identificar os feridos e os autores dos disparos. Cumprimos mandados de busca domiciliar na fazenda do confronto e veicular nos veículos que estavam lá”, informou ontem o delegado Marcel Maranhão Rosa, acrescentando não ter encontrado armas nesses locais.

Ainda na nota, o Sindicato Rural de Caarapó diz que Nelson Buanin, proprietário da Fazenda Ivú, “pediu apoio a alguns produtores, no intuito os mobilizarem a ir para sua propriedade – a intenção era inibir a presença dos poucos índios que haviam na fazenda (sic)”. A entidade garante que “nenhum membro da diretoria participou desta mobilização e não coordenou nenhum ato”, pontuando que “a ação de defesa e apoio ao companheiro (Nelson) foi um ato voluntário”.

ATAQUE ARMADO

Teria sido nessa ocasião que o ataque contra guaranis-kaiowá ocorreu, conforme relato de uma agente de saúde que vive na Te’ Ýikuê. “Começou dar tiro da área do produtor vindo para dentro da aldeia. Eles atiraram para matar”, revelou, mencionando a presença de 150 agressores, dentro os quais dois ruralistas da região que seriam conhecidos dos indígenas.

Sobreviveram ao violento ataque que começou por volta das 10h Catalina Rodrigues, Libesio Marques Daniel, de 43 anos, Valdívio Garcia, de 26 anos, Jesus de Souza, de 29 anos, Norivaldo Mendes, de 37 anos e um adolescente de 12 anos. Mas o agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 23 anos, já chegou sem vida ao Hospital São Mateus, em Caarapó.

VÍTIMAS

“A criança foi baleada quando estava dentro de casa”, diz a indígena. Clodiodi, que morreu, sofreu o ataque enquanto trabalhava, segundo a testemunha. Ele deixou uma filha de quatro meses. “A gente perdeu um colega de trabalho que sempre ajudou a comunidade, porque agente de saúde na aldeia é médico, é psicólogo, assistente social”, desabafa.

Dos sobreviventes, apenas a mulher permanece no município. Os demais, pela gravidade dos ferimentos, com tiros que atingiram abdômen, tórax e até cabeça, precisaram ser transferidos para o Hospital da Vida em Dourados, a 225 quilômetros da Capital.

E os indígenas dizem que mais pessoas foram feridas. “Na nossa contagem a gente socorreu sete com bala e mais de dez com bala de borracha. Os outros não quiseram ir no hospital e lavamos os ferimentos como soro fisiológico”, revela. Chegaram a informar que crianças haviam sido enterradas com uma pá carregadeira; depois isso foi descartado, pois o local aparenta ter motocicletas sob a terra.

SOCORRO AOS FERIDOS

Segundo o major Humberto Matos, que comanda os Corpo de Bombeiros de Caarapó, a ocorrência foi uma das mais tensas que já atendeu. O primeiro chamado de socorro, feito de um morador da aldeia, ocorreu às 10h51. “Nos informaram que havia ocorrido o conflito e tinha gente ferida. Mandamos uma equipe de resgate e acionei todo meu efetivo para irmos ao local com outra viatura de resgate e uma administrativa”, esclarece. Ambulâncias do município também foram ao local.

Nem deu tempo dos socorristas chegarem à aldeia. No caminho, as viaturas dos bombeiros davam de encontro com carros transportando índios feridos. “Nós fazíamos os primeiros atendimentos e trazíamos as vítimas para o hospital. Todos feridos por arma de fogo”, revela o major.

Em um dos retornos à aldeia, os bombeiros se depararam com três policiais militares e o motorista de um caminhão feitos reféns por índios. Os militares haviam ido ao local em apoio aos socorristas, mas diante do clima tenso foram abordados, algemados com os próprios equipamentos e agredidos; gasolina foi jogada em seus corpos, que só não foram incendiados vivos graças a intervenção rápida dos bombeiros e de um pastor evangélico que reside na região.

NOVAS OCUPAÇÕES

Nos Hospital São Mateus, quatro médicos foram chamados às pressas para atender os indígenas baleados e os policiais espancados. Segundo a administradora da unidade, Conceição Aparecida Picolo, todos os atendimentos que seriam prestados para demais habitantes do município foram desmarcados. Ainda na tarde de ontem era possível ver moradores procurando a recepção para obter informações sobre a remarcação as consultas ou atendimentos.

O violento ataque foi estopim para a revolta dos guaranis. As ocupações antes restritas à Fazenda Ivú, onde teriam começado os disparos, agora incluem outras propriedades rurais vizinhas à aldeia. Até a tarde de ontem havia registros na Fazenda Santa Maria, no Sítio Boa Vista, e na Fazenda Novilho, onde as negociações com forças policiais, Funai (Fundação Nacional do Índio) e MPF (Ministério Público Federal) se concentravam.

“As lideranças estão decidindo que vamos ficar porque vamos retomar as terras que são nossas. Queremos que o fazendeiro retire as coisas dele. Queremos a permanência da polícia porque os fazendeiros estão se organizando para voltar. A gente não tem arma, nossa arma principal é a reza”, garantiu a agente de saúde indígena que falou sob a condição de não ter o nome revelado, por temer represálias.

CLIMA DE GUERRA

O medo está em todos os lados de Caarapó. No clima de guerra em que comboios de viaturas policiais são vistos a todo momento em rápidos deslocamentos, trabalhadores rurais de propriedades no outro extremo da aldeia queixam-se. Ademir Ramos, de 42 anos, observava a uma distância de aproximadamente 800 metros o sítio de 17 hectares ocupado na manhã de quarta. Sem qualquer autoridade naquela área, um grupo de funcionários e proprietários das fazendas locais mantinha observação constante; mulheres e filhos já estavam desde o dia anterior na cidade, por medo.

Está prevista para a manhã desta quinta-feira (16) a chegada de tropas da Força Nacional de Segurança ao local do conflito fundiário. A PM (Polícia Militar) ainda tenta recuperar uma pistola, carregadores e munições. É uma das armas tomadas dos policiais feitos reféns; duas pistolas e uma espingarda calibre 12 foram devolvidas ontem, pela intervenção dos procuradores da República Marco Antônio Delfino de Almeida e Ricardo Ardenghi.

CONFLITO ANTIGO

Sem qualquer definição ou mesmo previsão para solucionar os graves problemas ali vividos, ruralistas apresentam como “resultado e fatos concretos” do conflito “uma carreta com uma colheitadeira na prancha queimada, uma viatura queimada, três policiais militares torturados e a invasão de quatro propriedades no entorno da aldeia”. Dizem lamentar “o clima de tensão”, já que “produtores dessas regiões sempre tiveram bom relacionamento e boa convivência com os indígenas – inclusive, são doadores de rezes para as festas tradicionais indígenas que acontecem na reserva”.

De outro lado, os indígenas contabilizam uma morte e seis feridos. Não é a primeira perda dos guaranis dessa região. Em janeiro de 2013, o adolescente Denílson Barbosa, de 15 anos, foi morto com um tiro disparado pelo proprietário da Fazenda Santa Helena enquanto pescava na propriedade. Até hoje o crime não resultou em punições.

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