Elas no comando: com filhos e aguentando o tranco, mulheres são maioria nas ocupações
Critérios para as casas populares privilegiam as chefes de família
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Critérios para as casas populares privilegiam as chefes de família
Em 2016, Campo Grande acompanhou o fim daquela que já foi considerada a maior favela da cidade, a Cidade de Deus. Ao transferir os moradores para quatro locais diferentes, mais complicações surgiram. Quem esperava a tão sonhada casa lidou com um projeto de construção levado à frente por uma ONG (Organização Não Governamental) duvidosa, alvo de denúncias, entre elas a de usar materiais ruins. Enquanto esses problemas surgiram – ou melhor, re surgiram -, a Capital foi expandindo-se, cada vez mais em suas ‘beiradas’. Bairros periféricos, sem infraestrutura, são expandidos pela especulação imobiliária. Moradia cara + ano de crise + desemprego= ocupações. Ao longo do ano, no mínimo cinco novas ocupações surgiram em Campo Grande. Elas estão na linha de frente quando o assunto é reivindicar moradias. Maioria nas ocupações e nas favelas, as mulheres também marcaram presença em 2016.
Confira a reportagem em vídeo:
Mariana Gonçalves tem apenas 23 anos. A idade não impede a jovem de ser apontada como uma das “lideranças” quando o assunto é encarar Prefeitura, MPE [Ministério Público Estadual] ou qualquer outro poder, pra reivindicar um teto pros filhos. Mariana hoje vive no loteamento do Vespasiano Martins, mas antes era um dos nomes na Cidade de Deus, a favela que durou cerca de 8 anos, antes de sofrer processo de reintegração final, em abril deste ano. Agora, Mariana luta para que a justiça seja feita no loteamento: as casas, segundo denunciam os moradores, tiveram construção precária.
“Estamos esperando a entrada do novo prefeito, a gente entrou no MP pra isso, porque entregaram uma casa que não estava acabada, a gente não vai pagar, porque tem casa que está rachando, destelhando, então eles têm que vir aqui fazer direito, fazer o certo. Minha casa casa voou com viga e tudo o telhado”, explica.
Ela, dona da indignação
Sorridente e carregando um ‘barrigão’, Tatiane Cardoso Lourenço, 29, recebe a reportagem na ‘porta de casa’. Da casa que ainda não é casa. O barraco de Tatiane, na Vila Nasser – conhecido como Bom Retiro pelos moradores – é um dos locais onde vive 135 famílias à espera da conclusão das casas. A loteamento é um dos mais atrasados. Na entrada do barraco de Tatiane, uma placa imensa escrita ‘Indignação’. Ao longo do ano, os moradores realizaram diversos protestos, com placas e palavras de ordem, criticando o prefeito Alcides Bernal (PP).
Tatiane conta que as mulheres acompanham mais a rotina do local. Em especial porque a maioria não trabalha e fica na casa para cuidar dos filhos. Em 2016, notícias das mães abrigando seus filhos até em igreja durante temporais que acabaram com os barracos, também foram destaque. Elas ali, são como guardiãs.
“Tem muita gente que o marido está desempregado, e o bolsa família, o vale renda, que ajudam, porque se não fosse isso a gente estaria numa situação pior ainda, porque lá [Cidade de Deus], querendo ou não, não pagava água e não pagava luz, agora aqui né. Lá era mais fácil porque tinha conhecimento e arrumava serviço mais rápido então aqui é bem mais complicado. Tem mulheres que são solteiras, que têm filhos, tem bastante mulher solteira”, conta Tatiane, que além do bebê que está pare chegar, tem mais dois filhos pequenos.
A aposentada Maria Vieira de Souza, 65, mora sozinha no loteamento. A ‘casa’ da aposentada, nem saiu do terreno. Maria, no entanto, é só sorrisos e agradecimento. Expectativa que ela joga toda para o prefeito eleito este ano, Marquinhos Trad (PSD). “Tenho fé em Deus que aquele homem, que colocaram ele lá dentro, ele vai fazer. Tem que esperar né, com o Bernal foi muito devagar, não deu tempo, só puxou nóis de lá e ponhou aqui. A minha ainda está no terreno. Com chuva, vento, a chuva leva a telha, leva tudo. Nós vencemos né (2016) e vamos vencer de novo”, conta.
Outra jovem com voz firme no loteamento é Liliane do Nascimento Roberto, 25. Ela fica no local com os dois filhos pequenos, o marido trabalha na Solurb [concecionária responsável pelo serviço de coleta do lixo na Capital] como coletor. Liliane soltava as palavras de forma rápida, com revolta. “Está sofrido até agora. Agora vem tempo de chuva, de chuvarada, a última vez destelhou tudo a casa. Está mais complicado esse barro e esse relento né, que se vem vento leva tudo. E toda vez que chove tem que levantar os barracos tudo de novo. Aqui fizeram só essas 7 fileiras e acabou, algumas casas aí estão todas levantadas e o pessoal que está comprando material”.
Ela critica o prefeito. “E a última vez, o que a gente ficou sabendo, é que ele deixou para o Marquinhos. O Marquinhos nem aqui não veio. Só entregou o Vespasiano lá pra ficar bonito. E não adiantou nada, está tudo rachado. Se você olhar a construição aqui, eles não estão fazendo o buraquinho na viga, só estão pregando com uma palhazinha”.
Liliane pensa que as mulheres, na luta pela moradia, sofrem mais porque sofrem em dobro. “Está difícil, porque a gente sofre, sofro por mim e sofro por eles. É tudo brincadeira ainda, pra eles, mas ver eles nessa situação… A maioria é mulher aqui. Lá [Cidade de Deus] eu trabalhava, aqui eu tive que sair do serviço, e agora só meu esposo está trabalhando”, conta. O cenário do desemprego é relatado por muitas mulheres. De acordo com elas, na região do Dom Antônio Barbosa, local onde funciona a UTR (Usina de Triagem de Resíduos), a Solurb e onde ficava a Cidade de Deus, as mulheres arrumavam emprego com mais facilidade.
Os programas sociais, dessa forma, acabam ajudando as mulheres já que ‘elas’ são parte do critério, além de serem as gestoras dos cartões de crédito do programa. Os critérios da Emha (Agência municipal de habitação) – que segue orientação nacional do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) -, também ‘empodera’ as mulheres. As ‘Famílias com mulheres responsáveis pela unidade familiar’ são um dos grupos prioritários do Programa.
Líder no Vale
Durante a tarde, ao descer o início da ladeira do Vale já dava pra ver ela, em frente ao barraco. As crianças brincavam ao lado, enquanto Jaqueline Rocha Dias, 26, liderança da ocupação na Morada do Sossego – a nova favela da Capital, que já tem cerca de 500 barracos -, fumava narguilé com outros amigos. Centralizada ali, a estatura pequena da jovem não diminui uma certa altivez que a figura de líder exibe. Andando pela favela, o nome de Jaqueline ecoa por todos os cantos. Resolver situação com político? Chama a Jaqueline. Falar sobre a situação da favela? É com a Jaqueline.
“Eu acho que não tem problema nenhum, tem mais mulher com mais coragem que homem, então a maioria é mulher né. Tem mais mulher com filho. De 100%, é 80% mulher”, relata ela, sobre a posição das mulheres em meio a ocupação. Com a amiga ao lado, ela é questionada sobre o medo de violência contra a mulher ali na favela. As duas se olham e parecem desdenhar um pouco de que algo vá acontecer.
“Não porque a gente é mais brava que os homens, a gente bate mesmo. Nós somos bem unidas, entendeu, não só nós mulheres, como os homens, pra defender a gente”, contam elas. Um amigo, sentado ao lado, dá risada e fala: ‘ih, eu vou até sair daqui’.
“Corre sim [risco], não vou falar pra você: ‘aqui ninguém corre o risco’. Corre sim, a gente não sabe o coração de ninguém”, complementa Jaqueline.
Na favela, conforme relatam as mulheres, o papel da mulher é estritamente ligado ao papel de mãe. Com os maridos trabalhando fora, a elas fica delegado o trabalho de cuidar das crianças, de suas demandas e enfrentar as adversidades que possam aparecer. É o que conta a corumbaense – apelido de Adriana da Silva, 31 -, na favela.
“Tem a minha irmã que mora aqui do lado também, a chuva que deu desterrou o barraco dela, a situação aqui é precária, do povo. Não são boas as condições. Tempo de chuva, vem temporal, destelha, a maioria destelha os barraco. Teve a senhora ali, cozinhando com os filhos, queimou o barraco dela, queimou telha e assim nóis tamo sobrevivendo como dá. Facil não é. Eu ainda tenho meu marido, mas lá embaixo, muita gente não tem”, conta
E a corumbaense explica. A luta das mulheres na favela vai além de si: é a garantia de futuras gerações.
“Eu acho que as mulheres lutam mais sobre os filhos. Tem muitas assim abandonadas pelo marido, então tem que lutar pelos filhos, pra ter uma casa digna né. Porque hoje em dia se você não tiver uma casa digna e não ter como dar uma educação pros filhos, você não tem nada”.
Reportagem em vídeo: Cleber Gellio e Izabela Sanchez
música: Boa Noite, Karol Conka
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