Capital tem novas ocupações e maior demanda por moradia

Ao olhar para o finzinho de 2016 – que parece não acabar – um certo consenso vem à mente: o ano foi intenso, cheio de mudanças e acontecimentos “apocalípticos”. Outros aspectos, ainda assim, além de não mudarem, apresentaram intensificação: estamos falando da falta de moradia. Durante o ano, acompanhou o fim daquela que já foi considerada a maior favela da cidade, a Cidade de Deus. A comunidade, ao ser desmembrada, no entanto, desenrolou um fio de complicações pois seus moradores, aos serem transferidos para quatro locais diferentes, não viram, até hoje, suas casas ficarem prontas.

Um projeto de construção levado à frente por uma ONG (Organização Não Governamental) duvidosa, denúncias de materiais ruins, chuva e desemprego foram apenas algumas das dificuldades enfrentadas por esses moradores. Enquanto esses problemas surgiram – ou melhor, re surgiram -, a Capital foi expandindo-se, cada vez mais em suas ‘beiradas'. Bairros periféricos, sem infraestrutura, são expandidos pela especulação imobiliária. Moradia cara + ano de crise + desemprego= ocupações. Ao longo do ano, no mínimo cinco novas ocupações surgiram em Campo Grande. Entre elas, uma nova Cidade de Deus “reina” em um vale, na Morada do Sossego. Mais complexa, rapidamente consolidada e com cerca de 500 barracos: é a nova favela da Capital.

Um Adeus à Cidade de Deus

Foi no dia 15 de abril em meio a chuva, o último adeus favela Cidade de Deus. A comunidade resistiu por cerca de 8 anos. O clima naquela manhã de sexta-feira, chegava a ser melancólico, com chão de lama e céu cinzento. A prefeitura, que operou a reintegração junto ao governo do Estado, montou uma estrutura com assistentes sociais, diversos guardas municipais e soldados da Tropa de Choque da Polícia Militar.

Ao lado da favela, as casas do residencial Teruel – um quatro locais onde as famílias foram realocadas – já começavam a serem levantadas.A última reintegração de posse da favela começou no dia 14 e incidiu sobre 36 famílias que não se encaixam nas exigências da Emha (Agência Municipal de Habitação), de acordo com a prefeitura, à época. A administração informou que foram 10 barracos ausentes e 20 famílias que não se encaixavam nos critérios, além de 6 pessoas solteiras.

 

 

O processo de transferência das famílias começou no mês anterior. Foram quatro lotes: no Jardim Canguru, no Vespasiano Martins, o loteamento Bom Retiro – na região da Vila Nasser – residencial Teruel, no Dom Antônio Barbosa. Foram quase 400 famílias que moravam na Cidade de Deus. Dias antes do ‘adeus', a Guarda Civil Municipal (GCM) montou um posto de vigilância no Dom Antônio, o que deixou algumas pessoas apreensivas. A “despedida” da comunidade, contudo, não registrou violência na reintegração. No local, algumas estruturas solitárias, que ainda mantinham-se de pé, formaram um quadro surreal, quando comparadas com os barracos que existiam ali.

Acabou a favelona, surgiram 4 favelinhas

É assim mesmo que os campo-grandenses começaram a “chamar” o processo de transferência das famílias da Cidade de Deus. Lenta, com aparente desorganização, problemas no fluxo de materiais e na própria qualidade dos materiais, a construção das casas nos quatro residenciais, até hoje não está completa. Em março, ao chegarem no Bom Retiro, as famílias encontraram mato alto e dificuldade para construir seus barracos. Os padrões de energia já instalados, apresentaram problemas e deixaram as pessoas alguns dias sem energia elétrica. Até hoje, o Bom Retiro é um dos locais mais atrasados na entrega das casas. O último prazo, outubro, ficou só na conversa.

A ‘Morhar Organização Social', responsável pelo projeto de construção em “multirão” – em que os próprios moradores, orientados de forma técnica, constroem as casas -, ganhou R$ 3,6 milhões para o projeto. Logo no início, alguns fatores pareciam não fazer sentido. Apesar de identificar-se como multirão, os moradores afirmavam que o projeto pagou trabalhadores para construírem as casas, e os moradores, por sua vez, não podiam estar no trabalho e na construção das casas ao mesmo tempo, e também começaram a reivindicar pagamento. Durante todo o ano, as pessoas relataram fluxo desorganizado na chegada de materiais – que ora chegavam a um local, ora em outro -, a qualidade do material também deixou dúvidas. A ong não tem sede e o presidente, durante todas as tentativas, não responde às ligações do jornal Midiamax.

No Vespasiano, primeiro residencial a ter todas as casas prontas – desde o projeto arquitetônico até os mínimos detalhes da construção das residências foram denunciados pelos moradores: em agosto, algumas casas não tinham sistema elétrico, encanamento, e vazamentos surgiram na estrutura. O fim do ano trouxe o período de chuvas e com ele, a falência da estrutura: telhados foram destruídos e até as vigas saíram voando.

 

Vazamento em uma das casas recém inauguradas (Luiz Alberto)

 

“Entregaram a casas inacabadas, mas os moradores estão se virando como podem, alguns que estavam no barraco passaram para casa, minha casa destelhou e os próprios moradores ajudaram“, contou Mariana Gonçalves, 23. “Estamos esperando a entrada do novo prefeito, a gente entrou no MP [Ministério Público] pra isso, porque entregaram uma casa que não estava acabada, a gente não vai pagar, porque tem casa que está rachando, destelhando, então eles têm que vir aqui fazer direito, fazer o certo. Minha casa casa voou com viga e tudo”, afirmou ela.

Já na Vila Nasser diversos protestos pelo suposto “abandono” das casas foram registrados ao longo do ano. No dia 18 de agosto, cerca de 80 pessoas participaram de uma das manifestações, que de acordo com um dos moradores, um jardineiro, de 29 anos, foi pacífico. A manifestação teve faixas indignadas com o prefeito Alcides Bernal (PP), chamando o chefe do executivo municipal de ‘171', além da queimada de alguns materiais.

 

Na Vila Nasser, as casas não foram entregues (Cleber Gellio)

 

 

Hoje, o local grita por atenção: é o que relatam os moradores. Alguns afirmam tirarem do próprio bolso para terminarem as casas. Outras casas, estão só no “terreno”. Todo o problema, agora, está “sob” nova direção. Isso porque Alcides Bernal (PP) deixou o “acabamento” das casas para o próximo Prefeito, Marquinhos Trad (PSD) – que, de acordo com os moradores, ainda não visitou o Bom Retiro -.

“As casas estão aí… vamos passar final de ano, natal, em barraco. Eles prometeram que iam trazer, mas não trouxeram mais nada [material], e ninguém veio mais aqui. Ninguém vem mais dar satisfação. Meu marido está desempregado.Tem muita gente que o marido está desempregado e  o bolsa família, o vale renda, que ajudam, porque se não fosse isso a gente estaria numa situação pior ainda. Porque lá [Cidade de Deus], querendo ou não, não pagava água e não pagava luz. Lá era mais fácil porque tinha conhecimento e arrumava serviço mais rápido então aqui é bem mais complicado. A esperança nossa, quando eu fiquei grávida, na verdade, era que a gente ia passar o natal já dentro da casinha. A minha sorte é que não vou passar aqui, vou passar na casa da minha mãe”. Esse é o relato de Tatiane Cardoso Lourenço, 29, grávida de oito meses e com dois filhos pequenos.

 

Na casa de Tatiane, indignação (Cleber Gellio)

 

Vendas de casas populares

As denúncias de vendas de casas populares, que integram programas de habitação da Emha (Agência municipal de habitação), também continuaram em 2016. Em julho, o jornal Midiamax noticiou a comercialização das casas em classificados online. Os valores variavam de R$ 35 mil a R$ 115 mil, dependendo da situação do imóvel. Os preços mais baixos chamam a atenção nas páginas dos classificados. São os casos de unidades adquiridas há pouco tempo e que ainda não podem ser quitadas pelo mutuário.

As prestações são longas e na maioria das vezes não chegam a R$ 60,00. Os contratos, geralmente são de gaveta, no entanto, a prática é vedada pelo Programa Minha Casa Minha Vida, como explicou o advogado Juliano Tannus. “Tem sido usual os denominados contratos de gaveta, que nada mais são que a transferência do imóvel sorteado pelo programa habitacional para terceiros, prática vedada pelo programa Minha Casa Minha Vida”, explicou.

O Jornal Midiamax entrou em contato, à época, com um dos anunciantes no Jardim Carioca. A reportagem declarou interesse no imóvel ao vendedor, que explicou “não ter empecilho na venda”. “Não pode quitar de uma vez porque dá problema na Caixa, mas tem contrato de gaveta, tudo certinho. Passo uma procuração para o seu nome. Perto do meu, uns cinco já venderam. Se chegar a fiscalização, você tem o meu contato. Eu moro pertinho, vou lá e converso, mas já tem mais de dois anos e nunca passou ninguém”, afirmou.

A falta de fiscalização do poder público virou até denúncia no MPE (Ministério Público Estadual), que negou competência, afirmando que a questão é da seara do MPF (Ministério Público Federal). A ouvidoria do MPE recebeu denúncia de que algumas unidades habitacionais do Condomínio Leonel Brizola, no bairro Leblon, que teriam sido construídos e distribuídos pela EMHA (Agência Municipal de Habitação) estariam sido vendidas ilegalmente. A 29ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social de Campo Grande, solicitou informações à Procuradoria Geral da prefeitura sobre o residencial.

“Foi informado pela Procuradoria-Geral do Município que o empreendimento do Condomínio Leonel Brizola não pertence ao Município de Campo Grande, mas à Caixa Econômica Federal CEF que, na condição de proprietária dos imóveis, é a competente para fiscalizar irregularidades no que concerne à venda ilegal das unidades habitacionais”, afirmou o titular da 29ª promotoria, Fernando Zaupa. “Sendo a Caixa Econômica Federal uma Empresa Pública Federal, a competência para julgar ações envolvendo a CEF é da Justiça Federal”, declarou.

Ocupações

Ocupar foi uma das palavras-chave de 2016. Ao falar de moradia, em Campo Grande, não foi diferente. No mês de setembro, em menos de duas semanas, cinco áreas públicas foram ocupadas por famílias que reivindicam moradias populares junto à Emha. A primeira começou no dia 3 de setembro, na Rua Jorge Budib, no Residencial Gregório Correa, e a segunda no dia 13, quando cerca de 70 famílias ocuparam três áreas públicas no Jardim Montevidéu, entre as Ruas Manduba e Panonia, ambas na região norte da Capital. Na tarde do dia 15, 40 famílias iniciaram a limpeza de uma área localizada na Rua Araraquara, no Jardim Canguru.

No Jardim Panorama, as famílias que estão no local afirmaram que a área está desocupada há mais de 30 anos. “Só juntando mato usado para pasto de gado”, afirmou um deles. No Montevidéu, a ocupação foi coordenada por movimentos sociais, “Frente Povo sem Medo” e “Movimento Lutas, Campo e Cidade”.

Na Vila Romana, uma ‘mini' favela surgiu. Seus moradores são indígenas Terena, muitos vindos do interior, em busca de trabalho, moradia e melhores condições aos filhos. Um acordo firmado entre a Prefeitura e o MPF (Ministério Público Federal) garantiu a permanência das 55 famílias que podem ficar no local até 22 de março de 2017. O prazo foi estabelecido durante audiência de conciliação solicitada pelo MPF. A Prefeitura se comprometeu a identificar os ocupantes, que por sua vez, devem fornecer as documentações exigidas pelo Município. O objetivo é identificar àqueles que possuem cadastros em programas habitacionais. O trabalho será acompanhado pelo MPF e Funai (Fundação Nacional do Índio).

De todas as ocupações registradas ao longo do ano, uma veio pra ficar: na região da Morada Verde, ao lado do Residencial Isabel Garden, o ‘vale dos esquecidos' despontou.

Vale dos esquecidos

Em meio ao vale, a nova favela de Campo Grande (Cleber Gellio)

 

 

Um idoso com problemas de visão. Uma família pobre vinda do interior. Um trabalhador rural do interior que precisava de tratamento na Capital mas, não tinha dinheiro e lugar para ficar em Campo Grande. Uma família com cinco filhos e sem condições para arcar com o aluguel em bairros periféricos. São algumas das histórias que ocupam os cerca de 500 barracos em um vale na região da Morada do Sossego, ao lado do residencial Isabel Garden. A nova favela da Capital apresenta uma estrutura mais consolidada do que a antiga Cidade de Deus. Os códigos de conduta, de liderança e de estrutura mostram que o local veio pra ficar. As histórias das pessoas, no local, são, também, histórias de um ano em que a crise econômica entrou e fechou a porta no Brasil. A taxa de desocupação, no Mato Grosso do Sul, ficou em 7,7% no terceiro trimestre (julho, agosto e setembro) de 2016, segundo o Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua).O número é 1,4% maior do que o registrado no mesmo período do ano passado (6,3%).

No local, a expansão encontra a barreira do córrego, onde os últimos barracos foram levantados. O risco de desmoronamento é eminente, em especial no período de chuvas. A situação não impede a tentativa diária de pessoas que vão ao local pedir para construir um barraco. É o que explica Jaqueline Rocha Dias, 26, que tem 4 filhos e é apontada como a ‘liderança' do local.

“Toda hora chega um diferente pedindo um lugar pra ficar, querendo um terreno pra fazer um barraco. Está difícil, eles [poder público municipal] não procuram a gente, a gente procura eles e não tem resposta, então agora a gente está esperando né, uma resposta da parte deles”, explicou. “Aqui a gente passa muita coisa, né. Chuva, pernilongo, bicho, arrisca a vida por causa do córrego, por causa de gambiarra, água, tem hora que tem, tem hora que não tem”.

Corumbaense – Andando pelas ruelas da favela dá pra ouvir de longe o apelido ‘corumbaense' reverberando pelos cantos. É como Adriana da Silva, 31, é conhecida no local. Ela veio com a família, o marido Jeferson Rodrigo da Silva, 34, e os 5 filhos, de Corumbá – distante 444 Km de Campo Grande. O motivo? desemprego.

“Cheguei aqui e já tava invadido, a maioria dos moradores já moravam aqui, aí cederam esse pedaço aqui pra mim. Tem a minha irmã que mora aqui do lado também, a chuva que deu desterrou o barraco dela. A situação aqui é precária, do povo, não são boas as condições, com tempo de chuva, vem temporal, detelha, a maioria destelha os barracos. Teve a senhora ali, cozinhando com os filhos, queimou o barraco dela, queimou telha e assim nóis tamo sobrevivendo como dá. Facil não é”, conta Adriana.

 

(Cleber Gellio)

 

Jeferson trabalha como pedreiro em Campo Grande. “Eu ainda tenho meu marido, mas lá embaixo, muita gente que não tem, muito idoso. Ali embaixo mesmo tem um idoso que tem problema de vista, problema de visão, e em tempo de chuva, nossa senhora, só deus mesmo”, relata a corumbaense.

O ‘alento', para o casal, é não pagar aluguel. É o que declara Jeferson. “Mas, graças à Deus, nós não estamos pagando aluguel, nós com cinco filhos pagando aluguel, água, luz, o que eu ganho dá só pra manter dentro de casa entendeu?”, contou.

Basta saber, agora, com mudanças no quadro político municipal, se 2017 continuará a deixar os esquecidos no Vale.

O jornal Midiamax questionou a Prefeitura e a Emha sobre o déficit habitacional, mudanças nos critérios de seleção da Emha, continuidade do Minha Casa, Minha Vida e sobre a quantidade de pessoas que esperam na ‘fila' para conseguirem moradias. A reportagem aguardou por duas semanas, mas não obteve resposta.

Estima-se que mais de 50 mil pessoas aguardam por casa junto à Agência.

 

 

*matéria alterada às 12h32 para acréscimo de informações