A Região Norte do País, onde nesta semana um novo massacre atribuído a uma briga entre facções deixou 58 mortos, convive com o clima instável da disputa entre ao menos 17 facções criminosas. O racha nacional entre Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), evidenciado desde o fim de 2016, potencializa conflitos regionais pela disputa da rota de tráfico de cocaína cuja importância é crescente, segundo policiais e pesquisadores.

O PCC e o CV estão nos sete Estados da região, diz levantamento do Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre (MP-AC). A presença das maiores facções no Norte ocorre com diferentes graus de poder e com variados tipos de influência e alianças com grupos locais.

Em comum, as facções têm ambição de protagonismo no comércio milionário de drogas que passam pela região vindas dos maiores produtores do mundo: Colômbia, Peru e Bolívia. Para isso, ressaltam os investigadores, a violência é usada para eliminar inimigos e impor medo. Relatório mundial do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) apontou que a produção global de cocaína alcançou em 2016 o nível mais alto de toda a história, com uma estimativa de 1.410 toneladas.

A situação do Acre ajuda a entender o problema pelo qual passa a região. O Estado com a terceira menor população do País (869 mil pessoas) ocupou em 2017 o posto de segundo mais violento, com uma taxa de 63,9 homicídios por 100 mil habitantes – a taxa nacional naquele ano, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi 30,8. Na capital Rio Branco, a taxa chegou a 83,7, a maior do período.

Por trás dos números acreanos estava uma briga do CV com membros do PCC e seus aliados locais do Bonde dos 13 e da Irmandade Força Ativa Revolucionária Acreana. “A rota do (Rio) Juruá passou a ser cobiçada pelo Comando Vermelho, que hoje domina essa passagem. As mortes, que antes só ocorriam como punição disciplinar por ‘vacilos’ dentro das organizações, passaram a se acumular no Estado em razão da disputa pelo domínio territorial entre diferentes grupos”, disse ao jornal O Estado de São Paulo Aldo Colombo Júnior, do Observatório do MP-AC, durante o encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que aconteceu nesta semana em João Pessoa e que teve entre os destaques a discussão sobre a atuação das facções e os efeitos sobre a segurança pública no País.

O Juruá nasce no Peru, cruza a fronteira, passa por Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do Estado, e corta o Amazonas até desaguar no Rio Solimões. Neste rio, a rota é ainda mais relevante, pois vem da tríplice fronteira com Colômbia e Peru, cujo domínio garante à facção Família do Norte (FDN) ser a força regional mais expressiva.

Foi a disputa de FDN e PCC que causou em janeiro de 2017 o massacre de 56 detentos no Complexo Anísio Jobim (Compaj), em Manaus. Briga interna da FDN levou à execução de mais 55 presos no Compaj e em cadeia vizinha, em maio deste ano.

O professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Luiz Fábio Paiva, que pesquisa a atuação de gangues no Estado do Nordeste e já analisou o funcionamento da FDN no Amazonas, lembra que a facção usa um discurso regionalista para tentar reforçar seus quadros no combate com os grupos de fora. “A FDN se preocupa em defender a área de fronteira da atuação de grupos exógenos. Para isso, usa o discurso regionalista, de que eles são os locais, para produzir afetos e mobilizar pessoas para realizar essa proteção.”

Em 2015, a Polícia Federal deflagrou a Operação La Muralla, que mirava a FDN. Para Paiva, a operação ajuda a entender um aspecto importante do problema: como a prisão por si só não representa um método totalmente eficaz de combater essas organizações. “O discurso da La Muralla é que todas as lideranças da FDN tinham sido presas. Dentro do sistema penitenciário, esses sujeitos, ao invés de serem controlados pelo Estado, controlaram a prisão. Lá, num comportamento que é característico em todo o País, passaram a agenciar novos quadros para a facção.”

Além do Amazonas, hoje a FDN tenta estender sua influência para outros três Estados da região: Roraima, Amapá e Pará. No Pará, a falta de hegemonia de um só grupo faz com que a rivalidade possa partir de qualquer lado. O Estado viu grupos locais crescerem nos últimos anos, como o Comando Classe A (CCA), cujos integrantes são apontados como os responsáveis pelo massacre da segunda-feira, 29, contra os filiados do CV em Altamira. Ainda há a atuação expressiva da Equipe Rex, mais focada em Belém, e da Facção Real.

O pesquisador da Universidade Estadual do Pará (Uepa) Aiala Colares Couto explica que os grupos locais seguiram o modelo de organização das facções do Rio e São Paulo, ampliando e fortalecendo a atuação diante da percepção da importância da rota que passa pelo Norte. “Eles se perguntaram: ‘e se em vez de deixar eles, os de fora, comandarem, a gente começar a controlar isso aqui?”

Couto pondera que as relações com as grandes organizações ocorre de diferentes formas e não significa que os integrantes do Comando Vermelho no Pará, por exemplo, são cariocas que lá vivem; são locais que “vestem a camisa”. O CV, que foi massacrado em Altamira, se articula para a revanche em áreas onde é mais forte, como Ananindeua, na região metropolitana de Belém, acredita o pesquisador. “A revanche vai acontecer ou dentro ou fora dos presídios”, diz.

Desafio

Ex-ministro da Segurança no governo Michel Temer, Raul Jungmann também teme que, sem mobilizações do governo diante da crise carcerária, os massacres se repitam. “Com prisões superlotadas, guerra entre facções e o Estado não exercendo o controle do que acontece lá dentro, efetivamente a possibilidade (de novo massacre) continua existindo”, disse ao jornal O Estado de São Paulo nesta semana.

A briga entre os vários grupos – no Acre, no Amazonas ou no Pará – deixou reflexos consistentes nas taxas de homicídio. Atribui-se a essa guerra o recorde de mortes no País em 2017, assim como a acomodação das disputas, principalmente no Nordeste, é um dos fatores para a queda em 2018, que se mantém nos primeiros meses de 2019, segundo dados do governo federal. Com novos massacres em Manaus e Altamira este ano, o Norte mostra que lá essa acomodação está mais distante do que se imaginava.

Jungmann lembra que relatório da sua gestão apontou que há outras dezenas de facções em todo o País e os governos precisam elaborar estratégias. “O crime nas ruas, que nos causa medo, ele é, em grande medida, organizado e coordenado de dentro do sistema prisional.”

Moro aposta em pacote anticrime

O Ministério da Justiça e da Segurança, chefiado por Sérgio Moro, disse ao jornal O Estado de São Paulo que o combate às organizações criminosas tem sido uma prioridade. Citou que o pacote anticrime proposto ao Congresso “atualiza a legislação para que seja possível o combate ao crime organizado e o isolamento de lideranças criminosas, minimizando as influências nos demais presos”.

A pasta afirmou ainda que a previsão de impedir o direito à progressão de regime a membros de organizações “que ainda mantenham vínculo associativo” visa a “inviabilizar a atuação de chefes do crime organizado e desestimular a atividade dos demais membros”. Outra proposta do ministério é ampliar o prazo de permanência de líderes em presídios federais de um para três anos, prazo que pode ser renovado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.