Agência no RJ foi criada para empregar ex-presos

 

Nenhuma vaga ou algumas poucas a salários precários. Quando o egresso do sistema penitenciário brasileiro cumpre sua pena ou consegue provar sua inocência, a vida não fica necessariamente fácil, principalmente no que diz respeito ao mercado de trabalho. O preconceito do empresariado, o trabalho precarizado e a baixa qualificação são muitas vezes as “boas-vindas” disponíveis. Programas e projetos sociais tentam facilitar a conquista de um emprego, mas o caminho “é muito difícil”, como destaca João Paulo Garcia, coordenador da agência Segunda Chance.

A Segunda Chance é uma agência de empregos do grupo AfroReggae, criada em 2008 com outro nome, Projeto Empregabilidade. A intenção é empregar ex-detentos, encaminhando-os a postos de trabalho, e acompanhando o desempenho deles nessas funções. A ajuda, contudo, vai além, e também chega aos familiares e moradores de comunidades, no Rio de Janeiro e em São Paulo. 

“Todos nós do projeto somos ex-presidiários”, conta João Paulo Garcia, “Nesse percurso, a gente entendeu que atender ao familiar do egresso ajuda ele diretamente.” Garcia ressalta que muitas reincidências ao crime ocorrem quando a família do egresso passa por dificuldades financeiras, e não há qualificação, emprego e às vezes até documentos. “Em uma família desestruturada, onde ninguém trabalha, a porta do crime fica escancarada.”

De 2012 para cá, foram 2.382 egressos atendidos pela agência Segunda Chance,  3.941 encaminhamentos a vagas, e 789 empregos conquistados, um “número ruim”, lamenta João Paulo Garcia. A marca AfroReggae ajuda na aproximação com o empresariado e a “quebrar algumas barreiras”, mas as dificuldades permanecem. Além disso, as vagas geralmente são relacionadas a áreas operacionais, como operador de loja e auxiliar de carga e descarga, com remunerações mais baixas.

“A gente quebra o preconceito inicial [de abertura do processo seletivo], mas o egresso [quando é encaminhado para a vaga] passa a disputar com pessoas que já estão inseridas no mercado. É muito difícil, mas a gente acredita neste trabalho, e isto não pode parar.” Hoje, no Rio de Janeiro, a agência conta com apenas 25 empresas ativas. Entre 2012 e 2014, o número chegava a ser o dobro. 

De acordo com Garcia, muitas empresas aceitam empregar familiares de ex-detentos, mas não estes. “O preconceito é muito grande.” “Cada pessoa que a gente tira do crime, evita cometer um novo crime. Se cada um fizesse um pouco a sua parte… Se a gente não mudar e sensibilizar, a criminalidade só vai aumentar. Qual a diferença de um traficante para um criminoso de colarinho branco, por exemplo?”, provoca.

De acordo com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) do Rio de Janeiro, 2.177 egressos se declaram inseridos no mercado de trabalho. A secretaria defende que o Patronato Magarinos Torres tem buscado garantir “oportunidades de um futuro melhor” para os egressos do sistema penitenciário fluminense.

“Em qualquer sociedade o homem precisa do trabalho para ser útil, para ter valor enquanto ser humano e ser social. Então é, através do trabalho, que o egresso do Sistema Penitenciário vislumbra a possibilidade de se ver reintegrado à sociedade, tendo na ocupação lícita e remunerada um instrumento capaz de despertar a sua autoconfiança, a sua capacidade criativa e sua força transformadora da natureza”, diz a diretora do Patronato Magarinos Torres, Mariangela Pavão.

“A maioria dos apenados que deixam o cárcere desejam refazer suas vidas de forma digna e honesta, porém as dificuldades são muitas, entre elas a falta de qualificação profissional, o preconceito, por exemplo”, completa a diretora.

Campanha

O psicólogo Alvino Augusto de Sá, professor sênior de criminologia clínica na Faculdade de Direito da USP, defende que uma grande campanha de conscientização do empresariado poderia ajudar. “É uma situação muito difícil. De fato, os empresários têm o seu preconceito, a sua predisposição negativa, e é de se compreender isto”, comenta. “As campanhas podem gerar efeitos positivos, vide a campanha contra o cigarro. Hoje em dia, seria uma surpresa alguém fumar numa estação, coisa que há 10 anos não era.”

Por outro lado, além da necessidade de combater uma resistência dos empresários, ainda é preciso lidar com a situação psicológica e emocional do ex-detento. O egresso sai das cadeias brasileiras muito vulnerável, pois o cárcere “mortifica”, “destrói a pessoa, acaba com a sua identidade”, explica o professor. 

Alvino Augusto de Sá desenvolve um projeto chamado Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade – GDUCC, que leva acadêmicos para penitenciárias, “não para ensinar nem para levar lição”, mas promover um encontro semanal de debates com os presos, para que estes desenvolvam uma consciência mais positiva de si. Trata-se da importância do preso ter sua autoestima elevada, e poder sair de lá em condições de diálogo com igualdade, quando cumprir sua pena. 

Muito se fala sobre a necessidade também de oficinas de trabalho em penitenciárias. Para o professor, elas seriam importantes, sim, e ajudariam os presos, desde que acompanhadas por dinâmicas e reflexão. Não há, contudo, espaço físico para isto. “Diante da superlotação, do estado de calamidade, isso tudo que eu estou dizendo é um sonho irrealizável.”

A urgência, defende, seria “reduzir o máximo possível o nível de encarceramento”, que já leva o país para a quarta posição entre as maiores populações carcerárias. Enquanto há 10 ou 15 anos a taxa de presos por habitantes no Brasil era de 80 para 100 mil, hoje chega a 200 para 100 mil. Não é possível afirmar, acredita o professor, que a taxa de crescimento é gerada pelo aumento da taxa de criminalidade. É o aumento da taxa de encarceramento que aumenta a taxa de criminalidade, diz o professor. 

Três soluções

Alvino Augusto de Sá alerta que três passos seriam essenciais para lidar com a crise do sistema penitenciário e as dificuldades encontradas por ex-detentos: campanhas de conscientização na sociedade junto aos empresários; trabalho efetivo junto com a população carcerária de aumento da autoestima e redescoberta da condição cidadã perdida no cárcere; e redução drástica no índice de encarceramento.

“São soluções difíceis? Sim. Mas não existe solução fácil para problemas difíceis”, alerta. 

Uma solução fácil, que por sua vez não resolveria, seria transferir líderes de facções, criar presídios de segurança máxima, separar presidiários entre violentos e não violentos — “tudo uma besteira”, diz o professor, que destaca que um criminoso de colarinho branco que desvia grandes montantes para o próprio bolso, enquanto tantos servidores ficam sem salários, não deixa também de provocar uma violência. 

“Essas distinções são soluções improvisadas. Afinal, o que é o violento e o não-violento? Às vezes, é necessário construir mais cadeias, mas isso também não vai resolver o problema, porque se triplicar o número de vagas, todas elas serão ocupadas em um ano, levando a superlotação novamente.”