Mais interessadas em ficar em suas bolhas

Eu já disse isso algumas vezes, mas vale repetir. Antes, eu achava que a internet poderia promover o diálogo e mesmo ser motor de mudanças sociais. Era uma forma de mantermos contatos mais próximos com quem está distante, de nos organizarmos e realizarmos mudanças.Ignorância e crendices podem ser contagiosos: Anti-vaxxers chegam ao Brasil

Mas na realidade a situação é muito menos colorida. Cheguei a escrever um capítulo em livro tratando sobre o tema do tecno-pragmatismo e de como a internet é importante e um potencial motor de mudanças. Mas que muitas vezes é só isso: um POTENCIAL motor. E não vai adiante.

As pessoas estão mais interessadas em ficar em suas bolhas, compartilhando suas fotos de gato e correntes de WhatsApp. Aliás, este não seria nem o maior dos problemas se essas correntes não acabassem espalhando hoax e desinformação  —  algumas com caráter criminoso.

A internet é um ponto de encontro das mentes humanas. Logo, também é um ponto de encontro de suas burrices.

A existência de grupos anti-vacinação é um atestado da nossa capacidade de pensar asneiras e de ter uma estúpida insensibilidade social. (via Caio Almendra)

Hoje, convivemos com pessoas que, a sério, acreditam que a terra é plana e espalham essa desinformação pelas redes sociais. O problema, aliás, não é alguém espalhar algo tosco, é ter quem acredite. Quem prefira acreditar em uma postagem de uma pessoa qualquer no Facebook a acreditar em evidências científicas.

As pessoas não abrem um livro, mas passam o dia lendo inverdades nas redes sociais, compartilhando e acreditando . E quando leem algo, é autoajuda ou o Olavão. Ou seja, é melhor nem ler mesmo.

No Brasil, um dos casos mais visíveis da propagação de ignorância pseudocientífica que tomou corpo nas redes foi a droga que supostamente curava o câncer, a fosfoetanolamina. Não cura câncer algum, mas as pessoas acreditavam, então bastava –  aliás, o mesmo princípio da homeopatia. Não importa quantas vezes se prove que não serve para nada, as pessoas seguem acreditando.

Agora a perigosa moda nos EUA dos anti-vaxxers chegou ao Brasil. Ela consiste em pais que decidem colocar em risco seus filhos e toda a população porque acreditam que vacinas causam autismo ou qualquer outra informação sem base científica.

“O enfermeiro me denunciou e os conselheiros bateram na minha casa, dizendo que eu era obrigada a dar a vacina. Eu imprimi a bula da vacina do rotavírus, notícias que diziam que ela tem metais pesados e ligação com o autismo”, conta a mãe. Todas as informações que ela apresentou haviam sido obtidas em grupos de Facebook.

Não há problema algum em se questionar. O problema é quando o questionamento vira uma certeza. E o “eu acho”, uma ação danosa a filhos que não têm a opção de dizer “não” diante das escolhas de seus pais.

As pessoas preferem acreditar no que leem no Facebook do que em seus próprios médicos. Não que médicos não sejam passíveis de erro, obviamente. A ciência está sujeita a erros e não está imune sequer a pressões ideológicas, mas aqui estamos falando de método científico comprovado versus “li na internet”.

Não surpreende, aliás, que a primeira entrevistada pela matéria do Estadão, que trouxe à tona o assunto, seja uma doula. Sempre me impressiona como é forte a ligação entre essa função  —  adorada pela militância justiceira social e pós moderna —  com ignorância importada.

A doula Gerusa Werner Monzo, de 33 anos, participa de um desses grupos. Ela afirma que há anos começou a ler sobre as vacinas e, por isso, sempre foi contrária a imunizar os filhos, hoje com 6 e 9 anos. “Tomaram as que são dadas nos primeiros meses de vida porque fui obrigada, mas não foram todas. O caçula, por exemplo, não tomou reforços da tríplice viral e a da poliomielite”, disse. Gerusa diz ser contra vacinar seus filhos por achar a imunização desnecessária em crianças saudáveis e por medo de possíveis reações.

“Não comento com ninguém sobre isso, nem com o meu marido, só a minha mãe sabe que eu parei de dar as vacinas. Não vou dizer nada para o médico nem na escola para evitar qualquer problema. Essa é uma decisão minha e sei que estou cuidando bem do meu filho de outra forma, com uma alimentação saudável e tratamento homeopático”, diz a reportagem.

Doulas (uma moda perigosa)*, criminalização de cesariana** e de mulheres que fizeram ou querem fazê-la, páginas de pessoas leigas “ensinando” sobre ginecologia e obstetrícia, sobre alimentação e saúde (que não passa de pregação de transtornos alimentares e de padrões doentios que podem levar à morte), misturam pregação empoderadora pós-moderna com ignorância pseudocientífica e crendices religiosas… O Facebook é um poço sem fundo de páginas do tipo.

Felizmente, no Brasil, a lei obriga a vacinação, mas vejam o que aconteceu nos EUA: doenças antes erradicadas estão voltando e causando vítimas. Quando um pai ou uma mãe decidem não vacinar seu filho, colocam em risco a vida dele e de outras crianças. Logo, não podem ter o direito a decidir sobre algo que efetivamente não entendem.

“A disseminação de informações contra as vacinas ocorre principalmente em grupos de pais nas redes sociais. O Estado encontrou no Facebook cinco deles, reunindo mais de 13,2 mil pessoas. Nesses espaços, os pais compartilham notícias publicadas em blogs, a maioria de outros países e em inglês, sobre as supostas reações às vacinas — por exemplo, relacionando-as ao autismo.

Os pais também trocam informações para não serem denunciados, como não informar aos pediatras sobre a decisão de não vacinar os filhos, e estratégias que eles acreditam que garantiram imunização das crianças de forma alternativa, com óleos, homeopatia e alimentos.”

Os pais devem decidir como educar seus filhos, mas não podem negar a eles direitos como os de não serem infectados por doenças com base em crenças pessoais . Os pais não são donos dos filhos.

E não estamos falando de pessoas que consideraríamos ignorantes, iletradas ou marginalizadas. São pessoas que optaram pelo caminho não-científico, com tempo livre demais para ficar no Facebook espalhando hoax e desinformação.

Vale lembrar que vacinação é obrigatória por lei e consta no Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos

§ 1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

No caso dos anti-vaxxers, caso se recusem a vacinar os filhos mesmo após recomendação médica e do Conselho Tutelar, devem perder a guarda das crianças e mesmo serem processados por colocar a saúde pública (e de seus filhos) em risco. Drástico? Talvez, mas estamos falando de saúde pública, não de uma decisão inofensiva.

O que defendo, para que não restem dúvidas, é que o Conselho Tutelar obrigue a vacinação de crianças mesmo que seus pais se oponham. Caso estes impeçam a imunização, aí sim devem correr o risco de perder a guarda ou mesmo de serem processados e presos.

Não é uma decisão pessoal, afeta a sociedade inteira.

*Não quer dizer que a função de doula em si seja negativa ou nociva; há estudos que demonstram que podem até ser benéficas. O problema está na proliferação sem qualquer regulação dentro dessa moda de militância de Facebook onde gente despreparada se acha capaz de tudo após ler meia dúzia de posts de pessoas igualmente despreparadas.

**Obviamente o parto normal e mesmo humanizado deve ser a regra, incentivado e o padrão do SUS. O que não significa criminalizar a cesariana ou quem a realiza, seja por necessidade ou mesmo opção. E sim, há inúmeros casos de “militância” ativamente criminalizando mães que fizeram cesariana.