Uma das funções centrais do jornalismo é o esclarecimento dos fatos, ajudar a entender fenômenos sociais. E nunca houve tanto a se explicar quanto agora, ao mesmo tempo que nunca existiu tanta polêmica por tão pouca coisa.
Bonecas ultrarrealistas, conhecidas como bebês reborn, ganharam espaço nas redes nas últimas semanas. Elas são um dos assuntos que requerem mediação do jornalismo. Até porque se trata de um “não assunto”, algo que ganhou muito mais importância do que merece.
Veja bem, não há nada que justifique a histeria em torno deste assunto, seja pela imprensa, seja pelos internautas. Não há evidência de que uma infinidade de pessoas esteja sofrendo uma realidade paralela ao tratar bonecas como crianças reais, a ponto disso se tornar um problema social que mereça reflexão. A polêmica reborn – ou melhor, o reborngate – é um fato inventado, é um “não assunto”.
Caixa de pandora
Há uma profusão de vídeos na internet sobre o tema, retratando pessoas a se relacionarem com bebês reborn como se humanos fossem. Nada além disso, e em um contexto inofensivo, lúdico ou sarcástico. Porém, a repercussão saiu do controle, a ponto de ficar difícil distinguir entre o real e o imaginário. Nem sequer cogitamos a possível explicação: os vídeos que iniciaram a polêmica são narrativas intencionais para um público muito específico que, ao estourar da bolha, foram interpretados de forma literal.
É claro que bebês reborn podem render boas análises culturais, como vi bastante na imprensa. Afinal, o que leva uma pessoa a gastar milhares de reais em uma boneca ultrarrealista? É fetiche? Terapia? Vontade de brincar? Escapismo? Eu amaria escrever sobre isso.
Mas não há um crime, não há um escândalo. Bebês reborn seguem como brinquedos infantis – o que não impede um ou outro adulto de possuí-los. E isso jamais justificaria um debate público aos moldes do que está ocorrendo. Nenhum projeto de lei é necessário. Nenhum psiquiatra precisa intervir.
Bebês reborn: de quem são?
Não existe um reborngate, mas uma ilusão coletiva alimentada pela incapacidade de distinguirmos o que é real ou fake na internet. E a coisa ganha força até mesmo na imprensa, que segue a lógica do agenda setting, quando um assunto ganha importância apenas porque teve ampla discussão, mas sem mérito.
Contudo, a reportagem do Jornal Midiamax publicada na sexta-feira (16) traz uma informação importante para montar o quebra-cabeça. A artesã campo-grandense que atua há 18 anos nesse mercado, e que possui um dos principais sites de e-commerce do país especializados nas bonecas ultrarrealistas, afirma que vendeu somente uma boneca para uma pessoa adulta no ano passado. Neste ano, ela ainda não vendeu nenhuma unidade a adultos.
Quer dizer, o público segue sendo infantil. Claro, como um brinquedo de luxo, já que arte reborn não é financeiramente acessível a todos. Arrisco dizer que, se fosse, estaria nas gôndolas das lojas de brinquedos em mesma quantidade que as bonecas tradicionais.
O tira-teima veio na sequência. Na mesma matéria, a artesã também relata que não é a primeira vez que a arte reborn vira febre nas redes. O tema vive um ciclo esperado de novidade e ostracismo que surge de tempos em tempos, desaparecendo com a mesma velocidade que emergiu. O próprio Fantástico já exibiu uma matéria em 2021 sobre o tema, apresentando as bonecas como terapia ocupacional para quem lida com o luto. Não havia histeria, só curiosidade. Nada mais.
O que mudou, então? Bebês reborn se tornarem a “coqueluche do momento” por uma razão mais contemporânea: a capacidade de viralização na internet, que reflete em ganhos financeiros a quem produz conteúdo on-line. Não estamos falando só de influencer ordinários, mas de youtubers, personalidades da mídia, políticos e até a imprensa, que também alimenta boa parte do conteúdo consumido nas redes.
Busca desenfreada por engajamento é palavra-chave
O que se viu depois disso foi o ciclo clássico de um fait divers: um tema lateral, carregado de imagens e sem importância, mas que desperta ira, mobiliza posicionamentos, gera engajamento, ganha as páginas de jornais e até mesmo repercutir na esfera política. Só que desta vez, em um formato diferente: não como uma fake news a ser desmentida, mas como um problema a ser enfrentado – mesmo que isso não seja verdade.
A esse ponto do samba muita gente deve estar próxima ao meu entendimento. O problema é que o dano social já foi feito. Milhões vão continuar acreditando que há pessoas levando bonecas reborn a postos de saúde ou criando conexões emocionais com algo inanimado para além do socialmente aceitável. A audiência seguirá a criar vínculos morais com o tema. Vai sentir ódio, repulsa, revolta. E não terá medo de se posicionar sobre isso.
Lembra da fake news do kit gay nas eleições de 2018? Em meio a uma imprensa desabituada a desmentir sistematicamente informações falsas, o boato de que itens adultos seriam distribuídos a crianças tornou-se preocupação real para os mais incautos – o que, infelizmente, ainda significa muita, muita gente. É num cenário semelhante que uma boneca reborn vira o centro de um escândalo que nunca existiu. E mais: ganha ares de ameaça global, culpabiliza mulheres, relativiza agendas individuais, nega as alteridades.
Alertas reais, debates imaginários
Assim, a falsa polêmica deságua em um campo crucial do debate: o desafio e a necessidade de regulamentar o que é publicado na internet diante de uma audiência que não tem capacidade de discernir entre o falso e o real. Sem esse marco regulatório, seguiremos a nos perder na imensidão dos “não assuntos”, transformando delírios em realidade. Não dá mais para viver em uma internet sem regulação mínima.
Felizmente, o reborngate logo vai sumir, mesmo que dando espaço a outra falsa polêmica, outro não assunto. Já o plástico utilizado nas bonecas vai demorar muito mais a desaparecer – este, sim, um problema de verdade.
*Guilherme Cavalcante é jornalista formado pela UFC (Universidade Federal do Ceará), analista de mídia e editor de pauta do Jornal Midiamax e cronicamente on-line. O artigo não refle necessariamente a opinião do jornal.
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