‘Para f… as empresas’: após flagra, Detran-MS alega que denúncias querem ‘trazer descrédito’
Depois que o Corregedor de Trânsito do Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul), delegado Fernando Villa de Paula, foi flagrado em vídeo se negando a receber informações sobre indícios de ilegalidade na inspeção veicular em MS, e classificando os flagrantes como ‘montagens para foder as empresas’, a Corregedoria do órgão atacou, […]
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Depois que o Corregedor de Trânsito do Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul), delegado Fernando Villa de Paula, foi flagrado em vídeo se negando a receber informações sobre indícios de ilegalidade na inspeção veicular em MS, e classificando os flagrantes como ‘montagens para foder as empresas’, a Corregedoria do órgão atacou, em nota oficial, o autor das denúncias.
Sem dados específicos sobre os fatos denunciados, que incluem flagrantes de vistoriadores fraudando a inspeção veicular e aprovando veículos com peças faltando e até com motor fundido, o documento emitido pela Corregedoria do Detran-MS ataca o denunciante, que, segundo o órgão estadual, ‘age com interesse próprio’, para ‘trazer descrédito’ ao Detran-MS.
A nota ainda se contradiz. Em um trecho, afirma que o denunciante agiria com “inconformismo” por não conseguir acesso às apurações. Mas em seguida garante que o denunciante “sempre teve suas pretensões atendidas devida e oportunamente protocoladas”.
A identidade do autor das denúncias havia sido preservada pelo Jornal Midiamax, mas a nota do Detran-MS identifica o denunciante já no começo, e ainda diz ‘estranhar porque o nome dele não foi divulgado’. A reportagem procurou o autor das denúncias, que comentou a acusação feita pelo delegado e aceitou ser identificado.
Vaderlei Scuira, um mecânico automobilístico, disse que ficou desapontado com a atitude do servidor público, pago justamente para garantir a atuação correicional no órgão estadual.
“Infelizmente, esperava outra atitude dele. Esse doutor Fernando Villa, na primeira vez que falei com ele, foi solícito, me tratou bem, me fez acreditar que ia fazer tudo o que está dentro da lei. Mas, agora parece que é só mais um que entrou lá e enrolou. A impressão que dá é que ficam enrolando a punição até prescrever. Eu me assustei com o jeito como ele me tratou nesta última vez. Me senti atacado como se eu que fosse o bandido, enquanto estava só tentando ajudar”, relata.
‘Bravata’ desnecessária e categoria exposta
A postura causou estranheza até entre colegas de Fernando Villa, que questionam a necessidade da ‘bravata’ do Corregedor de Trânsito do Detran-MS por expor toda a categoria dos delegados. Após ter certeza de que teria a identidade preservada, ao contrário do que houve com o denunciante, um delegado de polícia que já atuou na Corregedoria da Polícia Civil de MS conversou com o Jornal Midiamax sobre o episódio.
Ele diz que há, veladamente, grande pressão para preservar os delegados em situações de exposição pública. “Negar o corporativismo não dá. Ainda mais quando há outras relações implicadas, como amizade, parentescos… Mas é claro que uma atitude assim, depois que fica pública, não tem como não ter uma resposta para a sociedade”, analisa.
Segundo a Corregedora-geral da Polícia Civil, delegada Rosely Molina, um procedimento já foi instaurado contra Fernando Villa após ele ser gravado dizendo que os flagrantes de vistorias fraudulentas eram ‘montagens para fuder as empresas’. Ela informou que tem 30 dias para concluir, mas já avisou que pode prorrogar por mais 30 e ‘pedir mais, se entender que seja necessário’.
‘Falta de noção’ e corregedoria sob suspeição no Detran-MS
Para o delegado que falou com a reportagem, houve ‘falta de noção’ por parte do colega. “Esse é um caso daqueles bobos que vira esse b.o. todo por falta de noção. O doutor certamente não podia ter perdido o controle daquele jeito com um denunciante. Nem externado previamente a opinião dele sobre o fato que ainda não investigou e está sob jurisdição correicional dele. Agora fica difícil não falar de suspeição, ainda mais numa corregedoria”, pondera.
Segundo o delegado, que na Corregedoria atuou recebendo diariamente denúncias contra colegas policiais, o cargo implica na obrigação funcional de receber qualquer denúncia. “Nem que seja para arquivar no dia seguinte por ser algo sem pé nem cabeça, sem nexo… mas a obrigação é receber tudo, e tratar o cidadão com civilidade. A gente tem obrigação de tratar até bandido com respeito, imagina um cidadão que entra na minha sala falando que quer denunciar ilícitos”, diz sobre o flagrante do colega em vídeo.
E foi exatamente assim, falando que queria denunciar indícios de ilícitos que podem estar ocorrendo na atuação do Detran-MS, que Vaderlei Scuira, o empresário que gravou o vídeo, procurou o corregedor Fernando Villa.
Apesar de desapontado com o delegado Villa, o denunciante, conta que já enfrentou represálias por expor indícios de ilegalidade no Detran-MS. “Não é de hoje que sou perseguido porque peço para investigarem os erros de agentes públicos do Detran-MS. São centenas de casos que podem estar causando prejuízos para inocentes. Muitas vezes os cidadãos são obrigados a trocar motores sendo que são terceiros de boa fé, sem a mínima preocupação para estancar o problema, identificar, por exemplo, como esquentaram um motor adulterado”, afirma.
Scuira acha graça na acusação da Corregedoria de que agiria ‘com interesse próprio’. “Que interesse próprio eu teria? Isso já foi uma acusação batida há anos. Até o Ministério Público chegou a tentar me indiciar, mas provei na justiça que tudo que falo está documentado e procede. Tiveram que me absolver da acusação injusta que fizeram tentando me calar. Tudo que falo, posso provar linha por linha”, relata.
‘Tudo gravado por não confiar em ninguém’
Segundo ele, a primeira conversa com Fernando Villa, quando diz que o delegado foi ‘solícito’, aconteceu há um ano, aproximadamente. “O que esse vídeo mostra de mais grave pra mim nem é ele me tratando igual lixo e sendo ofensivo ou mal educado, mas sim ele se recusando a receber as minhas denúncias. Isso que é grave, porque ele recebe para isso, fez um juramento quando virou policial civil, e eu tenho prova de que ele tomou conhecimento de várias irregularidades”, diz Scuira.
“Espero que a Corregedoria da Polícia Civil me chame, se estão investigando mesmo. Tenho tudo gravado, porque aprendi a filmar tudo, já que não dá para confiar em ninguém. Até essa entrevista, eu gravo tudo para ter certeza que não vão deturpar”, diz.
A atitude, apesar de atípica, não é original e já foi notícia mundial em situação semelhante, com alguém desconfiando de ‘tudo e todos’. Nos anos 80, um deputado federal brasileiro, o índio Juruna, ficou famoso internacionalmente por andar com um gravador de fita cassete e gravar todas as conversas. Ele dizia que registrava tudo por não poder confiar no que conversava com os ‘homens brancos’.
De acordo com Vaderlei, que é branco, mas também diz desconfiar de um conluio entre autoridades para supostamente acobertar erros no Detran-MS, na primeira reunião com Fernando Villa, também gravada na íntegra, estavam presentes ainda o diretor de Registro e Controle de Veículos do Detran-MS, Agrícola Pedroso da Rosa Filho, e uma vítima de um erro em vistoria veicular.
“Levei um cidadão, dono de um caminhão, que foi obrigado a trocar uma plaqueta original do motor para remarcar. Expliquei tudo para eles, informei onde estava o equívoco com embasamento técnico. Realmente achei que esse delegado ia tratar a situação de forma diferente”, lamenta.
A suspeição sobre as atividades da Corregedoria de Trânsito, segundo o autor das denúncias, inclui diversos casos com flagrantes de erros na vistoria veicular que teriam sido relatados de forma a ignorar a investigação sobre eventual envolvimento de agentes públicos nos ilícitos.
“Há episódios em que veículos com motores suspeitos de adulteração foram documentados, ou veículos com motores originais foram apontados como suspeitos de adulteração. Na maioria, não há indicação nos inquéritos sobre a necessidade de investigar como essas irregularidades passaram em vistorias anteriores”, explica.
Portaria para moralizar
A luta de Scuira contra falta de padronização na inspeção veicular no Detran-MS e no tratamento de casos com suspeita de adulteração de sinal identificador de veículo não é nova. Ele chegou a participar, em conjunto com o então secretário de justiça Wantuir Jacini, da elaboração de portarias da Sejusp como a 583/2011, além de TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) que deveriam moralizar a atividade e até a investigação de casos suspeitos.
“Infelizmente, continuam relatando os casos sem atentar para a atuação de agente público que pode, por erro técnico, ou má fé mesmo, ter ajudado a esquentar veículos em Mato Grosso do Sul. Isso nunca parou e sem isso não estancam o problema. O que eu cobro, e já implorei medidas para delegados, para corregedores, na Polícia Civil, para promotores, procuradores, procurador-geral, no Ministério Público, para juízes, para diretores do Detran-MS, secretários estaduais e políticos, é só que passem a seguir o que manda a lei”, resume.
Segundo ele, as denúncias que faz não têm intenção de prejudicar ninguém. “O que não entendem é que eu não tenho um alvo. Não quero ‘ferrar’ ninguém, como já me disseram, nem ‘fuder’ as vistoriadoras, como o corregedor acha. Só quero que investiguem a cadeia dominial dos veículos em todos os casos, e apontem os envolvidos. Se foi má fé ou não, o inquérito tem que provar. Se tem servidor errando por incapacitação técnica, é obrigação do Detran-MS capacitar, investir, fazer concurso. Isso é muito grave. Se estão fazendo tudo errado, e causando prejuízo, precisam resolver”, detalha.
As denúncias já viraram inúmeros procedimentos no Ministério Público. Um deles, depois de 3 anos, foi arquivado com a promessa ao promotor de que o Detran-MS ‘já havia tomado medidas’ para resolver a situação. Em três semanas de investigação, com o apoio técnico de Vaderlei Scuira, que é mecânico automobilista, a reportagem voltou a flagrar um carro com motor fundido e carregado no guincho sendo aprovado pela vistoriadora Focar.
O caso foi reaberto pelo promotor Humberto Lapa Ferri. Mas, as denúncias de irregularidade e falta de padronização nas vistorias continuam chegando ao jornal.
‘Sugestão das devidas punições’
Na nota oficial em que ataca o denunciante, o corregedor nega que haja proteção ou enrolação na atividade da Corregedoria de Trânsito. Ele assegura que os fatos foram cabalmente apurados e os procedimentos concluídos “com a sugestão de devidas punições”. Mas se negou, diante de solicitação da reportagem, a fornecer detalhes e números de quantas punições foram aplicadas a vistoriadoras nos últimos seis meses.
Fernando Villa também reclamou de ter o salário, de R$ 32,8 mil em agosto, contextualizado. O servidor público considerou ‘desnecessária’ a divulgação dos proventos que recebe, na prática, para atuar como corregedor no órgão, recebendo todas as denúncias que chegarem. Os dados são públicos e foram fornecidos pelo Governo de MS, no Portal da Transparência.
Segundo o Estatuto do Servidor Civil de Mato Grosso do Sul, definido na Lei 1102, de outubro de 1990, é obrigação dos funcionários do Governo do Estado, ‘tratar com urbanidade os companheiros de serviço e as partes’. O dever está claramente detalhado no ítem VI do artigo 218 da lei estadual.
O artigo 218, aliás, inclui entre os deveres legais dos servidores públicos de MS, como Fernando Villa, “desempenhar com zelo e presteza os trabalhos de que for incumbido, proceder na vida pública e privada na forma que dignifique o cargo ou a função que exerce’, entre outros.
Mesmo assim, no vídeo, o delegado corregedor foi flagrado dando um recado explícito para o denunciante: “Eu vou te falar o seguinte. Não adianta você sair por aí garimpando problema aí e trazer pra (sic) mim que você não é representante legal dessas pessoas e eu não vou aceitar”, antecipa Fernando Villa.
Na verdade, no entanto, entre as atribuições do Corregedor de Trânsito, definidas e confirmadas pelo próprio Detran-MS, está ‘receber e apurar denúncias’, sem especificar se o denunciante precisa ou não ser representante legal.
‘Montagens para fod** empresas’
Sem saber que era gravado por um denunciante que tem colaborado com as reportagens do Jornal Midiamax sobre falhas no sistema de inspeção veicular em MS, o corregedor cuja atribuição funcional é justamente receber e investigar denúncias, não esconde a irritação por causa dos sucessivos casos flagrados e denunciados. Fernando Villa fala alto, gesticula, usa termos agressivos e chega, em determinado momento, a dizer ao cidadão que tenta ajudar: ‘não tem problema nenhum em te colocar em cana’.
O denunciante, Vaderlei Scuira, mecânico automobilístico, é conhecido no Detran-MS por cobrar, há décadas, a adoção de padrão técnico nas vistorias veiculares em Mato Grosso do Sul e punição para responsáveis por erros que causam prejuízo para motoristas e os cofres públicos, segundo ele. Ironicamente, chegou a ser processado pelo MP-MS por ‘denunciação caluniosa’, mas provou que estava certo e foi absolvido.
Demora, prescrição e ‘vista grossa’
Sobre as denúncias, no entanto, os resultados geralmente enroscam em tramitações burocráticas que garantem morosidade e adiam indefinidamente a punição. Em muitos casos, os crimes, mesmo provados após longos inquéritos, não geram penas porque prescrevem antes do encerramento.
Recentemente, inclusive, o mesmo Fernando Villa nervoso do vídeo informou em nota oficial da Corregedoria que a empresa Focar, flagrada aprovando em vistoria um carro com motor fundido e sem parte elétrica funcionando, não sofrera ainda qualquer tipo de sanção prevista em lei porque ‘recorreu à Sejusp’. Isso, mesmo após o próprio dono da empresa admitir ‘vista grossa’ em algumas vistorias.
A nota oficial do corregedor, em tom bem mais ameno do que o usado pelo delegado para falar com um denunciante sozinho na sala da COTRA, chegou a ser confundida com uma nota da defesa da empresa pela reportagem. Segundo o decreto 13.826, que define a estrutura do Detran-MS, em 3 de dezembro de 2013, no entanto, entre as atribuições da Corregedoria está justamente receber e apurar denúncias.
Mas, no vídeo, o Corregedor de Trânsito do Detran-MS chega a dizer ao denunciante que as denúncias incomodam. “O senhor, dependendo da reclamação que você vem, você está me incomodando”, dispara o servidor público ao cidadão.
Outra atribuição, segundo o artigo 14 do decreto, é propor medidas de prevenção e segurança para eliminar fragilidades que permitam fraude, ilegalidade e impunidade na área de competência do Detran-MS, elaborar planos de correição periódica, além de propor instauração de procedimentos de sindicância ou de processo administrativo disciplinar e apresentar relatórios de sua atividade.
‘O que eu tenho com isso?’: pergunta de um corregedor
O tom da última conversa com o delegado corregedor do órgão, Fernando Villa de Paula, foi estarrecedor. Com laudos em mãos, o cidadão tentou cobrar providências de um antigo caso, tocado pela corregedora anterior, cuja resolução, segundo ele, ninguém viu acontecer.
“Eu não tenho que saber disso daqui”, diz o corregedor, complementando: “eu não era corregedor, não era presidente do órgão, não era nada disso… (…) então, antes de ler, eu já sabia o que o senhor vinha fazer. Isso aqui não me interessa”.
No entanto, como corregedor, segundo o próprio Detran-MS confirma, Fernando Villa tem a ‘obrigação’ funcional de investigar, sim, casos que possam envolver denúncias de fatos anteriores à chegada dele ao cargo, inclusive se implicarem até mesmo o diretor do órgão, e mesmo que haja apenas indícios de crimes que não tenham prescrito.
‘(…) prá levar lá e foder com as empresas’…
O mecânico insiste, desta vez sobre um outro caso, onde um carro foi transferido com visíveis sinais de adulteração, segundo ele. “Ô Xavier, pega lá pra (sic) mim aquele procedimento que apurou aquelas placas, inclusive a placa que ele prepara os carros pra (sic) levar lá e foder (sic) com as empresas, vê pra (sic) mim a sindicância e tira uma cópia e fornece pra (sic) ele”, diz Fernando Villa na frente de outro servidor público estadual.
Cobrando resultados de um segundo caso, onde há, inclusive, laudos do Instituto de Perícias, apresentado ao corregedor, comprovando que um veículo com várias adulterações foi aprovado em vistoria por uma empresa terceirizada, Fernando Villa recusa o pedido de informações e, ainda, afirma que vai abrir uma representação contra o perito que forneceu cópia do laudo ao mecânico, primeiro a ter contato com o carro adulterado.
“Quem te autorizou a pegar essa cópia lá no IC?”, questiona o delegado. “É um documento público, qualquer um pode ter acesso”, responde o denunciante. “Negativo, meu amigo. Negativo. Vou representar o perito que te deu a cópia. Você não tem interesse, o carro não é seu. Isso não é um problema seu, vou representar o perito”, brada o delegado se projetando na direção do denunciante.
“É um documento público, recolhi quase 90 reais com guia paga na Agenfa e ele ainda me tomou o laudo sem um auto de apreensão, por exemplo”, reclama Vaderlei sobre o documento, que ficou com o delegado. A reportagem perguntou à Corregedoria de Trânsito se, de fato, o procedimento contra o perito foi instaurado, conforme disse Villa. Não houve resposta.
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