Emaranhados: Furto de fios em Campo Grande expõe ciclo complexo do uso de drogas

Usuários de drogas estão entre os principais envolvidos no furto de fios, o que revela ciclo complexo de desafios sociais e econômicos

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Usuário de drogas – (Leonardo de França, Arquivo, Midiamax)
23/08/2024 – Victória Bissaco

Neste ano, a Polícia prendeu Wellington Silva em flagrante por furtar fios de uma empresa no bairro Aero Rancho. Contudo, durante interrogatório na Depac (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário) do Cepol, ele não estava em condições psicológicas de responder às perguntas que os policiais realizaram. Isso porque aparentava ser usuário de drogas e estar sob efeito de entorpecentes.

Uma viatura da PM (Polícia Militar) o abordou na região, mas, momentos antes, seguia para a Antiga Rodoviária, conhecida pela concentração de usuários de droga. Esse cenário, apesar de não representar todos os casos, pode ilustrar a maioria dos enquadrados pelo crime de furto de fios.

O furto de fios de cobre pode parecer um crime simples – e até bobo, quando comparado a outros, como estelionato ou roubo à mão armada – contudo, é somente um dos nós emaranhados. Essa prática não só compromete a estrutura urbana, mas também ressalta a urgência de abordagens integradas para lidar tanto com a segurança pública quanto com a saúde, de forma a evidenciar um ciclo complexo de desafios sociais e econômicos.

Nessa série de reportagens do Jornal Midiamax, você vai conhecer os caminhos desses dois crimes distintos, praticados com o mesmo intuito, mesmo que se diferenciem em alguns pontos: obtenção de lucro. Essa terceira e última reportagem aborda as questões sociais que envolvem esses delitos.

Como abordado na primeira reportagem da série, não há um perfil exato para quem é autor desses crimes, mas algumas características são comuns entre quem comete o furto de fios, principalmente no quesito dos criminosos dependentes.

Esse tipo de autor, ou seja, o usuário de drogas comete o furto de fios para sustentar o ‘vício’ em entorpecentes e bebidas. É importante ressaltar que a dependência em drogas é uma doença que traz males para o organismo e para toda a sociedade, conforme define a OMS (Organização Mundial da Saúde).

O secretário municipal de Assistência Social, José Mário Antunes da Silva, explica que um dos agentes de ação da pasta é o Seas (Serviço Especializado em Abordagem Social). “São pessoas que são treinadas e capacitadas, que usam o argumento e até o poder de convencimento para acolher as pessoas que estão nessa situação pelos logradouros da nossa cidade”.

Secretário da SAS, José Mário Antunes da Silva – (Foto: Midiamax)

O que compete à SAS (Secretaria Municipal de Assistência Social) é oferecimento de ajuda para as pessoas em situação de rua que são usuárias de drogas, na tentativa de convencê-las a aceitar o acolhimento em alguma unidade. “Também trabalhamos para que o usuário aceite a ajuda, saia dessa situação e consiga acessar os benefícios socioassistenciais que hoje são ofertados a todos”, explica o secretário.

De janeiro a maio deste ano, o Seas realizou 1.538 abordagens a pessoas em situação de rua. As abordagens ocorrem diariamente nas sete regiões da Capital, sendo intensificadas na região central, viadutos, pontes, entroncamentos, praças, na região da Avenida Ernesto Geisel nas proximidades do bairro Nhánhá, enfim, locais onde há maior concentração dessa população.

Cabe ressaltar que as equipes de abordagem da Política de Assistência Social fazem a oferta dos serviços à pessoa em situação de rua, que tem por opção aceitar ou não os serviços da Rede. A recusa de atendimento é um direito garantido pelo Artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Perigo aos autores

O furto de fios é um crime que oferece risco aos autores e muitos, inclusive, já morreram por causa dessa modalidade. O mês de março também registrou um caso que repercutiu entre a população campo-grandense. O furto ocorreu na subestação de energia Campo Grande Progresso, próximo ao Estádio Morenão, e deixou 40 mil casas sem energia elétrica.

Na ação, Jorge Hermenegildo Staskowian Júnior, de 35 anos, morreu após receber choque de cerca de 130 mil quilovolts, nível de alta tensão. O valor representa mais de 130 mil vezes a tensão da rede de uma residência de 220 volts.

O homem invadiu o local durante a madrugada do dia 5 de fevereiro e causou incêndio e um curto-circuito. O diretor de operações da Energisa, Helier Fioravante informou na ocasião que a subestação possui placas sobre o aviso de perigo.

  • “Infelizmente uma pessoa veio a óbito. Essas placas não estão ali à toa. É um ambiente estritamente controlado com acesso autorizado só de profissionais capacitados. Não tinha vigia, mas é um local monitorado 24h por videomonitoramento”, disse Helier Fioravante ao Jornal Midiamax no dia do ocorrido.

O subcomandante da Guarda e coordenador de Operações da GCM, Alexandre Pedroso, lembra quando um outro homem morreu ao tentar furtar fios do Parque Ayrton Senna, no bairro Aero Rancho, em março de 2023. O suspeito morreu carbonizado.

“Ao cortar o cabeamento, essa pessoa acabou sendo eletrocutada no Parque Ayrton Senna. A gente vê que é um prejuízo à sociedade, mas também à pessoa, até porque o cabeamento não vai desligar uma rede, ele vai trabalhar em uma rede ativa”, explicou.

Homem morreu carbonizado – (Foto: Arquivo, Midiamax)

As autoridade encontraram, perto do corpo, diversas ferramentas como alicate, chave de fenda, que o homem teria usado para cortar os fios. Quando recebeu uma descarga elétrica, morreu no local.

O homem estava sem documentos, mas tinha tatuagens de palhaço nas costas, uma tatuagem de meia-lua no tornozelo esquerdo e uma tatuagem de caveira no braço. Não há informações se a perícia conseguiu ou não identificá-lo.

Drogas x Ciclo perigoso

Equipes da GCM conduzem os usuários autores do furto de fios de cobre para as delegacias. Contudo, a Justiça concede liberdade aos suspeitos poucos dias – ou até horas – depois. Isso porque o furto de fios não é um crime violento e muitos juízes optam por não deixar os autores presos.

O subcomandante da Guarda, Alexandre Pedroso, inclusive, explicou que já realizou abordagens de pessoas reincidentes no crime, isto é, que voltam a praticá-lo mesmo depois da prisão. “Já tivemos que abordar novamente esses autores pelo mesmo crime, mas é dessa forma que caminha. O processo continua em andamento, até a pessoa ser responsabilizada”.

E é justamente a necessidade de sustentar o vício que movimenta grande parte dos usuários a recair no crime. “A dependência química é como qualquer vício. Tem pessoa que está deixando de fumar e fica uma semana sem, mas daqui a pouco tem uma recaída e fuma um cigarro. A dependência química é igual”, explica José Mário Antunes da Silva. O secretário da SAS comenta também que, mesmo com taxa de reincidência, muitos conseguem se manter em tratamento e, com isso, mudar completamente de vida.

Secretário debate reincidência no vício em drogas – (Foto: Divulgação)
  • “Tem muitos casos de reincidência sim, mas temos casos de sucesso, de pessoas que conseguiram se libertar e ser reinseridas no convívio social e familiar. Elas, inclusive, hoje já têm o seu próprio salário, estão inseridas no mercado de trabalho, morando no seu próprio imóvel. Então, infelizmente, há essa possibilidade sim [de reincidência ]. Trabalhamos muito arduamente para que isso não aconteça”.

Segundo o secretário, há estrutura suficiente para atender e acolher usuários de drogas. “Nós temos dois equipamentos. O UAIFA I [Unidade de Acolhimento Institucional para Adultos e Famílias], que acolhe 150 pessoas, o UAIFA II, que acolhe 50 pessoas. Temos a Casa de Passagem e Resgate, que acolhe 80 pessoas, também a Casa de Apoio São Francisco de Assis, com mais 50 vagas, além da parceria com as comunidades terapêuticas que ofertam 300 vagas através da SDHU (Subsecretaria de Defesa dos Direitos Humanos)”.

Trabalho de muitos

A luta por tirar pessoas em situação de rua da dependência em drogas é diária para os servidores da SAS. Contudo, eles não batalham sozinhos. O trabalho demanda o acompanhamento intersetorial envolvendo, especialmente, a Secretaria de Saúde, através do projeto Atenda, para que seja trabalhada essa pessoa, medicada, encaminhada para um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) para a desintoxicação e posterior acolhimento aos equipamentos da Assistência Social.

“Também trabalhamos por meio do serviço socioassistencial com demais pastas, como a Educação, a Funsat, procuramos fortalecer os vínculos familiares e sociais do território onde a pessoa está e dar sequência a essa inclusão da pessoa à sociedade e também, depois de ela trabalhada e liberta do uso das drogas, encaminhá-la para o serviço da Funsat para o mercado de trabalho”, explica o secretário.

A população também pode ajudar nesse trabalho de acolhimento e acionar o Seas. “Quando alguém avistar uma pessoa que precise ser atendida, é só ligar no celular do Seas. Ligue e dê informações de onde essa pessoa está. É muito importante que a população informe com bastante clareza para que a gente consiga ter êxito. Em muitas situações, somos acionados, a equipe se desloca e o morador em situação de rua não é encontrado. Então, eu peço a colaboração de todos os nossos munícipes quanto a essa denúncia”.

O GCM Alexandre Pedroso também ressalta o trabalho da população para tentar combater o furto de fios.

Subcomandante da Guarda, Alexandre Pedroso – (Foto: Nathalia Alcântara)
  • “Um grande problema nosso é, justamente, a falta de denúncias da população. Então, se você estiver passando por algum local e flagrar o furto de fios, pode acionar nossas equipes”. O número para contato é 153.

O Serviço Especializado em Abordagem Social atua por meio das equipes, 24 horas por dia, nos sete dias da semana, realizando abordagens em todas as sete regiões da Capital. As ações são realizadas por meio de buscas ativas, denúncias pelos dois celulares e mapeamento das regiões conforme as demandas, a fim de ofertar os serviços às pessoas em situação de rua. Para denunciar pessoas em situação de rua, basta acionar o Seas pelos telefones (67) 99660-6539 e 99660-1469.

*Nome alterado para preservar a identidade do autor

Assista à reportagem em vídeo: