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Opinião

A Profissão do Advogado, seu Futuro e a Cultura Multiportas

*Prof. Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso
Opinião -

A profissão do advogado, uma das mais antigas e nobres da humanidade, está hoje diante de desafios inéditos, que exigem reflexão profunda e ação estratégica de nossa parte.

Nos últimos anos, assistimos uma crescente desjudicialização de conflitos, ampliação do uso da tecnologia em procedimentos jurídicos e a virtualização quase total de processos. Tudo isto visa a pacificação dos conflitos, de modo que, desjudicionalizar as disputas e agilizar as soluções, sempre encontrará nosso apaluso. Com isso, transformaram-se também as formas de atuação do advogado, exigindo novas habilidades, competências e até novas posturas éticas. Não seria exagero afirmar que estamos às portas de uma nova advocacia, mais complexa, mais exigente, mais desafiadora, mais tecnológica, mas também, mais necessária e compensadora.

O fenômeno das transformações tecnológicas impactam frontalmente a advocacia. A presença da inteligência artificial, dos sistemas de jurimetria, da automação contratual e das plataformas de resolução online de disputas, já não é mais um cenário do futuro, pois trata-se de uma realidade presente e concreta. Escritórios que não se adaptarem ao uso eficiente dessas tecnologias serão, inevitavelmente, superados. No entanto, é importante dizer com clareza que a tecnologia pode e deve ser aliada da advocacia, mas jamais poderá substituí-la, mesmo que em parte ou na sua essência, pois o que vamos testemunhar, hoje e em grau crescente, é a substituição de tarefas repetitivas que não se pode definir como exercício pleno da advocacia.

O que a máquina não faz, e talvez nunca fará, é compreender a dor humana, interpretar a vida que está por trás do processo, ouvir com empatia, argumentar com sutileza, convencer com ética e sentimento. O advogado é, sobretudo, um intérprete da condição humana. E é justamente por isso que, mesmo em um cenário de digitalização quase total, sua função permanece insubstituível, embora com modificações.

Contudo, para manter esse protagonismo, será preciso ir além do domínio do conhecimento técnico-jurídico. O advogado do futuro deverá ser um profissional interdisciplinar, que compreenda economia, tecnologia, sociologia, filosofia, comunicação, gestão e comportamento humano. Será a ponte entre o mundo normativo e a vida concreta, cada vez mais líquida e instável.

O advogado deixa de ser apenas aquele que leva o conflito ao Judiciário para se tornar um agente da pacificação social. Institutos como a mediação, conciliação e negociação passam a ser ferramentas indispensáveis e não mais opcionais. Esse novo cenário exige não apenas habilidades técnicas, mas também emocionais. Exige escuta ativa, empatia, ética relacional e, sobretudo, um compromisso profundo com a solução real dos problemas das partes.

Na verdade, muda o objetivo, que se desloca da busca pela vitória processual, para a vitória da pacificação. O advogado, portanto, não será mais apenas um operador do Direito, mas sim um artesão de soluções, atuando de maneira personalizada, estratégica e humanizada.

Diante do congestionamento judicial, por necessidade, amadureceu a ideia do sistema “multiportas” (multi-door courthouse), conceito desenvolvido pelo professor Frank Sander nos Estados Unidos na década de 1970. A lógica é clara, para cada tipo de conflito, existe um método mais adequado de solução. O processo judicial é apenas uma das portas e, em muitos casos, não é a melhor.

Dentre as alternativas de solução de conflitos que conhecemos, chama a atenção as Plataformas Digitais (ODR). O uso da tecnologia nos mecanismos consensuais ganhou força com o desenvolvimento da Online Dispute Resolution (ODR). No Brasil, a plataforma consumidor.gov.br, coordenada pela Secretaria Nacional do Consumidor, permite a solução direta entre consumidores e empresas. Em 2024, mais de 80% das reclamações foram resolvidas sem a necessidade de judicialização, todavia, há que ter a obrigatoriedade do advogado, para garantir o melhor resultado. Essa forma de resolução tem ampliado o acesso à justiça, especialmente para populações com dificuldade de deslocamento ou em áreas de menor cobertura judiciária.

É inegável que os mecanismos alternativos de solução de conflitos geram benefícios reais e muito vatajosos, propiciando o desafogamento do Judiciário, com menor volume de processos, maior celeridade na tramitação das causas residuais, além de diminuir o custo do processo e o seu tempo. Os procedimentos consensuais ou arbitrais são, em geral, mais rápidos e previsíveis.

Essa verdadeira revolução cria um novo mercado de trabalho e exige uma especialização técnica diversa, formando árbitros e personagens que detenham conhecimento técnico específico do setor. Também se preservam os vínculos, pois a mediação promove o diálogo, evitando a ruptura de relações contratuais, familiares ou institucionais. Uma desconfiança já superada era quanto à confidencialidade, especialmente na arbitragem e na mediação, garantindo-se sigilo e proteção à reputação das partes.

Inegável que o legislador brasileiro terá de se ocupar mais com sua tarefa, pois ainda existe uma ausência de legislação sobre tudo isso, especialmente sobre ODR, para regulamentar a validade dos acordos firmados por meios exclusivamente digitais.

Aqui temos um caminho sem volta. O Brasil caminha para a consolidação definitiva de uma cultura multiportas. Espera-se que a transição de um sistema centrado no processo judicial para uma justiça multiportas represente um dos mais relevantes avanços institucionais do direito contemporâneo.

O Estado brasileiro, ao reconhecer e regulamentar esses mecanismos alternativos, ampliou os horizontes do acesso à justiça e ofereceu à sociedade novos instrumentos de autocomposição, eficiência e civilidade. Mais do que desafogar o Judiciário, trata-se de transformar a cultura da litigiosidade em cultura da pacificação. E é nesse compromisso jurídico, ético e social, que os meios alternativos de solução de conflitos, assumem papel central na realização de uma justiça mais acessível, rápida e humana. Já dizia o grande Rui Barbosa, “justiça tardia é injustiça!”.

O tabuleiro jurídico foi redesenhado e continua em permanente mutação. As barreiras de entrada caíram para quem se dispõe a estudar profundamente os novos regimes normativos e a dialogar com engenheiros, cientistas de dados, biólogos e até astrofísicos.

A advocacia deixa de ser mono, para tornar-se rede, conectando especialidades, articulando saberes e solucionando problemas globais com ferramental técnico e visão humanística. Essa é a grande nova. Oportunidades abundam, da órbita terrestre às linhas de código, dos laboratórios genéticos às arenas esportivas, dos parques eólicos ao metaverso.

O mercado está escancarado para o profissional que, com curiosidade intelectual e coragem empreendedora, avança sobre essas fronteiras. Quem se especializa hoje não apenas garante espaço, torna-se protagonista de um Direito que ainda está sendo escrito.

A advocacia não pode se desumanizar. Se os sistemas se tornam mais ágeis, os ritos mais digitais e os contatos mais impessoais, é justamente o advogado quem deve resgatar o sentido humano do Direito. O advogado que se limita a “protocolar petições” e “manusear sistemas” será facilmente substituído. Mas, o advogado que compreende a realidade do seu cliente, que constrói pontes com o julgador, que toca a alma do processo, que busca soluções alternativas para a contenda, penso que este jamais será substituído por nenhuma inteligência artificial.

E isso só se constrói com valores. O futuro da advocacia será humanista ou não haverá futuro, tampouco advocacia. Precisamos de profissionais éticos, empáticos, corajosos, que compreendam sua missão social e o impacto da sua atuação na vida das pessoas. Isso deve ser ensinado desde os primeiros anos da faculdade de Direito e reiterado ao longo de toda a carreira. Não se pode perder o romantismo da profissão, pois a advocacia é sacerdócio e é missão.

Ser advogado não é apenas ter uma profissão, é na verdade um modo de vida. É um compromisso com a Justiça, com a Liberdade e com a Verdade. É levantar a voz pelos que não a têm. É defender o justo, mesmo quando tudo parece estar contra. É permanecer firme quando o medo se insinua.

Portanto, a meu sentir, só haverá um caminho, o de cultuar a tradição e o humanismo, para não ser atropelado pela inovação. Penso que um dos maiores erros que se desenha na atualidade é o desprezo pelo passado, pela história da construção do presente. Tenho convicção de que o futuro da profissão de advogado não está ameaçado, está em reconstrução. É hora de ajustar as velas, não de temer a tempestade. O mar jurídico mudou, mas a bússola da ética e do compromisso com a justiça permanece intacta. Viva a nova Advocacia!

*Prof. Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso é Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, Pós-Doutor pela Faculdade de Direito de Castilla-LaMancha (Espanha), Presidente da OAB/SP por três gestões (2004/2012), Presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), Presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), Vice-Presidente da Associação Comercial de SP (ACSP) e Conselheiro da Federação das Indústrias de SP (FIESP).

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