“Venham com fome”, disse ele por telefone ao marcarmos nossa conversa. O mesmo sorriso audível na ligação nos recebeu em seu restaurante, o Yallah. Saindo da cozinha, de avental e mãos vestidas de massa de esfiha, Paco Kawijian contou um pouco de sua história, que começa antes até de seu nascimento, pois é entremeada com a vida de sua mãe, de quem herdou o zelo por fazer e servir comida.

Em meio a ditadura e a guerra, da mãe, ele herdou o amor pela cozinha

Quem o vê, não imagina que teve uma infância privada, não só de conforto, mas também do básico. Nascido no Líbano, criado na Líbia de Muamar Kadhafi e refugiado na Grécia, quando criança ele e o irmão mais velho não imaginavam que viviam em uma ditadura e na iminência de bombardeios.

“Meus pais nos poupavam da situação. Na Líbia, morávamos perto do quartel e, não importava se estava frio ou se estava calor, as janelas sempre permaneciam abertas”, conta Paco explicando que os pais não revelavam o real motivo: em caso de bombardeio, se estivessem fechadas, seriam feridos pelos estilhaços de vidro.

Sem dinheiro, refugiados na Grécia, não podiam tomar táxi e até para se alimentarem. Certa vez, tiveram de andar 15 quilômetros e em restaurantes, eles dividiam pratos. A caminhada era para conhecer “conhecer os lugares” e as porções servidas nos estabelecimentos eram “suficientes” para todos.

“Liberdade em frente ao fogão”

Na Líbia, antes do refúgio na Grécia, e mesmo depois que voltaram, a privação era constante. “Há uma grande diferença em ter uma fruta podre e não ter nenhuma fruta”, exemplifica Paco. A despeito da privação de tudo e das vontades de criança, como comer chocolate e ketchup, o chef relata que sua mãe adaptava receitas com o que havia disponível na época. “Ela encontrava a libertade na frente do fogão”, define. 

Em meio a ditadura e a guerra, da mãe, ele herdou o amor pela cozinha

A declaração pode parecer contraditória ou ser mal intrepretada, mas Paco explica. “A única coisa que tinhamos eram fotonovelas e sempre havia uma receita no verso da revista. Era tudo que minha mãe tinha para tentar sair do tédio. Ela tentava reproduzir o que viamos na TV”, relembra. O sinal de televisão recebido da Itália, chegava até a Líbia apenas por dois meses, durante o verão. O que significa que no restante do ano eles ficavam sem saber o que acontecia no resto do mundo.

“A minha mãe tentava e fazia de tudo para nos ver felizes. Se não tínhamos chocolate, ela fazia mousse de tâmaras, se não tínhamos ketchup, ela amassava tomates. Mal sabia eu que todos esses momentos, seriam a minha escola”, descreve. Ouvir os relatos ao aroma vindo da cozinha de seu restaurante projetava a visão de uma mulher de personalidade forte, como não poderia deixar de ser para uma descendente de armênios.

As mulheres de sua vida

Em meio a ditadura e a guerra, da mãe, ele herdou o amor pela cozinha

Durante a contação de sua vida, Paco deixa claro sua reverência, não somente à sua mãe, mas também à sua esposa – e sócia – Luciana Abes. “Amor, me ajuda a lembrar”, pede Paco. E ela descreve detalhadamente dona Margot Minassian, hoje com 65 anos, mesmo sem nunca tê-la conhecido pessoalmente. “Ela é aquela mulher armênia. Briga, mas é carinhosa e amorosa. Quando o Paco fala, não é coisa de filho coruja, é verdade. Sempre pronta, intensa”, diz Luciana.

Desde 2014 o casal toca o Yallah, mas com o dedo de dona Margot. “Ainda hoje ele liga para a mãe para perguntar sobre as receitas”, conta Luciana.

“Eu pergunto como faz, ou quanto devo colocar de algum ingrediente e ela diz ‘um pouquinho’”, ri Paco e abre espaço para uma pequena reclamação. “Até hoje ela não me ensinou a fazer o profiterolis dela”, aquela iguaria que conhecemos por Carolina.

Da coalhada, o prato que fica mais semelhante ao que a mãe fazia à baklava, um tipo de pastel doce folheado que leva tempo para fazer, Paco diz que a paciência de sua mãe é outra herança que aplica na cozinha. “Mas só na cozinha”, ressalta Luciana.

O resultado de tudo isso são pratos deliciosos da cozinha armênia, que não deixa de ser árabe e ao mesmo tempo com um toque peculiar. E antes que dois repórteres pudessem ir embora, Paco justificou o porquê de irmos com fome. Fomos servidos com alguns de seus melhores pratos, com destaque para o Saint Marrie. No final fomos agraciados com histórias e boa comida em uma mesa à sombra de guarda-sóis, sob um parreiral de uvas e um ambiente mediterrâneo.

 


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