O Anjo de Hamburgo

Anjo de HamburgoJusta ‒ Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil

A jovem casou-se com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess em 1930. O casal teve um único filho, mas a união não durou.

Em 5 de março de 1934, Aracy embarcou com o menino para Hamburgo, na Alemanha, a fim de residir na casa da tia, Lucy Luttmer, irmã de sua mãe, e do marido dela, Dietrich. Um ano depois, retornou ao Brasil para formalizar o desquite (o Brasil só instituiria o divórcio em 1977).

“Uma coisa salta aos olhos: Aracy era uma intrépida. Uma pessoa corajosa, não só pelo salvamento dos judeus, que é o clímax dessa história. Uma moça de 26 anos que, no Brasil tão provinciano e misógino dos anos 1930, se desquita, vira as costas e vai embora para a Alemanha com um menino de cinco anos. Tenta se virar e ganhar a vida sozinha, se adapta”, diz Mônica Schpun.

A chegada de Aracy à Alemanha coincidia com um período turbulento na história do país. Adolf Hitler fora eleito chanceler (chefe de governo) da Alemanha pouco mais de um ano antes e não tardara em liquidar os vestígios da República de Weimar, como ficou conhecido o regime democrático constitucional instaurado após a queda da monarquia, em 1918.

No rastro da ordem fascista em vigor na Itália sob Benito Mussolini, a Alemanha, assim como outros países, caminhava rapidamente em direção ao totalitarismo.

Frontalmente oposta ao comunismo e à União Soviética, a ideologia dos novos donos do poder pregava a supremacia de uma mítica “raça ariana”, da qual os alemães seriam expoentes, purificada de judeus, eslavos e outras “raças inferiores”.

Em 1933, quando Hitler chegou ao poder, havia cerca de 500 mil alemães de origem judaica no Reich. Eram uma minoria tradicional e assimilada, pela qual Goethe, Lessing e Humboldt nutriam admiração.

A Alemanha havia sido o centro da Haskalá (Iluminismo, em hebraico), movimento modernizador do século 18, influenciado pela Revolução Francesa, que pregava a integração dos judeus à cultura laica europeia.

Era um ambiente muito distante do vivido pelos Ostjuden (judeus orientais) na Polônia e na Rússia, na maioria restritos ao shtetl (aldeia), falando iídiche e com severas dificuldades de acesso a escolas, universidades, profissões liberais ou carreiras no serviço público.

Alguns dos mais proeminentes políticos, empresários, médicos, advogados, professores, cientistas e artistas alemães dos séculos 19 e 20 eram judeus ou tinham origem judaica.

Como não havia entraves à mobilidade social dos judeus, eles estavam em toda parte; e, por estarem em toda a parte, era ainda mais irracional culpá-los pelos males da Alemanha.

Ao chegar ao governo, Hitler e os nazistas seguiram por algum tempo o mesmo padrão adotado enquanto foram um pequeno partido oposicionista de extrema-direita: promovendo campanhas, montando operações de provocação, organizando ataques coordenados contra alvos visíveis como pequenos negócios.

Em 1º de abril de 1933, os nazistas lançaram um boicote a empresas judaicas, que deu pouco resultado.

Em 7 de abril, funcionários públicos que não comprovassem origem ariana foram exonerados (embora veteranos da Primeira Guerra e seus parentes tenham sido poupados a pedido do presidente Paul von Hindenburg), e logo judeus foram igualmente proibidos de exercer advocacia e magistratura ou de, como médicos, atenderem pacientes não-judeus.

Em 1935, as Leis de Nuremberg transformaram os judeus em párias. Casamento ou relações íntimas entre “arianos” e judeus passaram a ser crime, e mulheres alemãs de menos de 45 anos não podiam ser empregadas por judeus.

Filha de alemã sem ancestralidade judaica, Aracy estava a salvo das leis que passaram a impor severas restrições à existência dos judeus alemães. Sua correspondência da época não registra maior desconforto com a situação. Em 1936, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Berlim, Hitler refreiou demonstrações mais explícitas de hostilidade aos judeus para evitar críticas no exterior.

“Berlim está maravilhosa”, escreve Aracy à mãe em agosto daquele ano, de passagem pela capital.

Fluente em alemão, inglês e francês, ela obtivera no ano anterior uma nomeação como funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, indicada por um amigo da família ao ministro das Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soares, e assumira a vaga no mesmo mês em que escrevera à mãe.

Os vencimentos iniciais, de 20 libras esterlinas, segundo Mônica Schpun, permitiram-lhe mudar-se com o filho da casa da tia para um apartamento alugado no bairro de Mundsburg.

“O que a gente vai perceber é um deslumbramento de Aracy com o nazismo. Ela vê suásticas por todos os lados, soldados. O próprio filho dela, que foi para lá com cinco anos, vê e se aproxima de Hitler em uma das suas visitas a Hamburgo. Ela não tem noção das ações contra os judeus, das perseguições. É um mundo que ela vai descobrindo aos poucos”, afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP que atuou como consultora da produção de O Anjo de Hamburgo.

A historiadora, que idealizou o Arquivo Virtual sobre Holocausto (Arqshoah) da , prepara o livro Hamburgo durante o nazismo, que focaliza a vida na cidade naquele período.

A situação torna-se mais dramática depois de 9 de novembro de 1938, com a Noite dos Cristais (Kristallnacht), quando ocorreu uma série de ataques contra indivíduos, associações, templos e empresas judaicas em todo o país em resposta ao assassinato de um diplomata alemão por um jovem judeu polonês na França.

Se antes a emigração era estimulada pelos nazistas (cerca de 150 mil judeus, ou 30% da comunidade, haviam deixado a Alemanha legalmente entre 1933 e 1938), as restrições aumentaram a partir da Noite dos Cristais.

Mônica Schpun pesquisou a trajetória de 16 indivíduos, incluindo dois casais com um filho pequeno cada, que foram atendidos por Aracy no consulado de Hamburgo.

“Fui localizando essas pessoas através de referências que encontrava nos arquivos. Alguns foi por bola de neve: um conhecia e me falou de outro, em alguns casos”, relata a historiadora.

No acervo de Aracy, havia pelo menos duas correspondências de migrantes que passaram pelo consulado.

“Encontrei documentação escrita de duas pessoas que agradeceram a Aracy depois que chegaram ao Brasil. Quiseram agradecer por escrito a ajuda que ela tinha dado. Isso encontrei nos arquivos dela. Fui atrás dessas famílias. As duas pessoas em questão já tinham falecido e os descendentes não conheciam essa história. Então, muitas vezes as entrevistas foram ao contrário: eles é que me entrevistavam”, diz Mônica.

É o caso de Hans Hochfeld, que desembarcou do navio Monte Pascoal no Brasil em 11 de janeiro de 1939.

Trazia um passaporte alemão com a letra J (de “judeu”, identificação obrigatória em documentos a partir de 1938). O documento continha visto temporário emitido pelo cônsul adjunto Guimarães Rosa e assinado pelo cônsul Antônio de Souza Ribeiro. Sua filha, Maria Julia Hochfeld, jamais ouviu-o pronunciar o nome de Aracy.

A única lembrança dessa época relatada por Hans, que morreu em 1991, era a da partida do navio no porto de Hamburgo.

“Ele se lembrava de avistar, do convés do navio, os pais que lhe acenavam. Foi a última vez que os viu, e seus olhos se encheram de lágrimas”, relata a filha.

No acervo de Aracy, há um cartão em que Hochfeld e o amigo que o acompanhou na viagem, Hans Brauer, enviaram à ex-funcionária do consulado.

“Estavam mandando flores a dona Aracy depois que ela voltou da Alemanha agradecendo o trabalho dela”, afirma Maria Julia.

“A ordem do governo brasileiro, por circulares secretas, já orientava que judeus cujo passaporte tivesse um J na capa ou que tivessem os nomes Sara ou tinham de ser destacados, não podiam dar o visto. E aí acho que é o momento em que ela começa, sensibilizada com essa negação, a orientar a falsificar os passaportes”, diz Maria Luiz Tucci Carneiro.

Uma das sugestões de Aracy, segundo a historiadora, era que, ao encaminhar o pedido de visto, os migrantes fornecessem endereços de Hamburgo. “Com um endereço (de Hamburgo), mesmo que falso, seria mais fácil conseguir um visto do que se dissesse que morava na Polônia”, afirma.

“Lista de Schindler”

Os documentos do consulado de Hamburgo foram destruídos por Rosa, já então cônsul, e Aracy depois do rompimento de relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha, em janeiro de 1942.

“É difícil falar quando ela liberou o primeiro visto. Temos apenas os documentos com cópias no Itamaraty. Esse risco que ela corre a partir de 1938, quando chega Guimarães Rosa e já um pouco antes, é algo de que ela tem plena noção porque ela está no meio daquele furacão das perseguições”, sustenta Maria Luiza Tucci Carneiro.

A historiadora diz que, diferentemente de outros casos de responsáveis por salvar judeus, como o empresário alemão Oskar Schindler (1908-1974), não há uma lista de beneficiados pela ação de Aracy.

“Não existe (no caso de Aracy) uma lista como a de Schindler, exatamente por ser uma atividade dentro do consulado. Como é que estamos chegando a essa lista? Através de testemunhos. Com isso, chegamos ao que eu falo que é uma lista em aberto. Nas entrevistas que fizemos do ano passado para cá já apareceram mais duas pessoas que receberam o visto graças a Aracy. A lista é uma lista em aberto, que eu chamo de ‘lista incompleta de Aracy'”, explica.

A produção de O Anjo de Hamburgo foi suspensa em razão da pandemia do novo coronavírus. Com direção artística de Jayme Monjardim, a série não tem data prevista para exibição.

“Aracy sempre foi uma pessoa extremamente discreta. Hoje, é nosso trabalho mostrar como, com coragem, determinação e um amor sem igual pelas pessoas, ela conseguiu mudar o destino de tanta gente”, afirma o diretor em nota emitida pela assessoria de comunicação da Globo.

*Com informações da BBC.