Artista foi ilustrador disputado quando computador ainda não existia
Entre dezenas de artesãos e sob as árvores da Praça dos Imigrantes, no centro de Campo Grande, um dos estandes chama atenção. Sui gêneris é a palavra que designa o material exposto, que em nada se assemelha com o dos colegas. São Pedras decoradas, telas com temática surrealista e pinturas sobre itens reciclados mostram que o que ali é produzido soa destoante do restante do artesanato. Resolvemos entrar.
Por trás do balcão, quem atende a reportagem e assina as peças é Valdeci Alves do Nascimento, 69, mais conhecido como Valdeco. Pernambucano de nascimento, ele deixou a terra natal muito cedo. Passou 15 anos no Paraná e em 1967 fez de Campo Grande sua morada. “Fiquei aqui até a década de 1990, depois fui pra Goiânia, fiquei 22 anos. Voltei depois da Copa, estou aqui há uns dois anos e pouco”, conta o artesão.
Sobre o balcão, destacam-se pedras com pinturas inteligentes, cujos desenhos tomam a forma da pedra. O relevo de uma delas dá a volumetria do cabelo de uma jovem. Outra, mais arredondada, tem as curvas de uma mulher. Outra, completamente assimétrica, é a caricatura de alguém que gargalha. Tudo baratinho, variando de R$ 2 a R$ 25 reais. “Vai depender do trabalho que a pedra me dá, mas é isso mesmo, eu tenho mania de ver forma em pedra”, revela o artesão.
Com o olhar apurado para reconhecer formas conhecidas em relevos de pedras, começou ali a ideia de aproveitá-las para fazer pintura. “Eu nem imaginava que o povo ia gostar disso, mas, no fim já vendi até para gringo. Pedra com formato de pé… Nossa, já vendi demais! Às vezes eu cato na rua e trago pra cá, fico olhando que forma aquilo tem, daí quando eu descubro e dou só a cor, porque a forma já tem, né?”, conta Valdeco.
Nas paredes do ateliê, a criatividade do artesão ganha outras formas. Um rosto esguio surgiu no selim de uma bicicleta. A tábua de um skate tornou-se tela para uma arara pantaneira, com direito a um arabesco talhado na parte inferior. No chão, algumas telas deixam claro que o talento do artesão transcende as pedras. Como um artista naif, todo o trabalho de Valdeco traz os traços da arte aprimorada através do tempo, por meio da tentativa e acerto, resultado refletido em duas telas no acervo do programa Talentos da Maturidade.
Ilustrador disputado
O que a vitrina do ateliê não mostra é que no passado de Valdeco estão serviços ora imprescindíveis para os tempos pré-computador. Por meio de suas mãos, ilustrações que faziam as vezes de publicidade na tevê da década de 70 ganham visibilidade. E assim Valdeco tornou-se ilustrador reconhecido e disputado. “Na época não tinha filmagem e eu fazia a ilustração em cartolina. A gente pegava a revista e se era uma propaganda de terno a gente recortava, pegava letra e decalcava tudo. Era um sofrimento, fiz demais ilustração desse tipo, porque na época não tinha computador”, afirma.
Em Campo Grande, o artista afirma ter trabalhado de 1976 a 1979 na TV Morena. “Quando eu sai de lá já estavam começando as primeiras filmagens, mas até quando o fotógrafo não ia, eu pegava o equipamento, fotografava, revelava… Eram 7 revelações, aí cortava, secava no ventilador. Para depois fazer as edições. Photoshop naquele tempo era na mão”, explica.
Atualmente, focado nas pinturas de pedras e reaproveitamento de peças para seu artesanato, Valdeco apenas lembra saudoso dos tempos de ilustrador. “Eu ainda faço letras, mexo até no computador. Mas uso Corel, ainda não aprendi o Photoshop. Estou bem aqui, vendendo minhas coisinhas. Fazer o que, né? A era digital tirou a gente da jogada”, conclui.