Projeto Nova começou após pedido de ajuda de prostitutas

“Eu morava numa fazenda, minha mãe morreu de câncer e quando eu tinha oito anos um dos meus irmãos mais velhos me abusou”. Esse é o início de um do depoimento de R*, 39 anos, uma das 3 mulheres que foram abusadas sexual e psicologicamente durante a infância, e que relataram as violências à equipe do Projeto Nova. Além da infância, as três mulheres têm em comum a vida na prostituição, que, muitas vezes, é o único caminho que se apresenta em meio à vulnerabilidade das vítimas de abuso e exploração sexual infantil.

O Projeto Nova, criado em agosto de 2011, teve sua origem a partir de 10 mulheres que se prostituíam. Elas acionaram a psicóloga e coordenadora do Projeto, Viviane Vaz, pois queriam deixar a vida nas ruas e precisavam de ajuda. Desde então, cerca de 100 pessoas – entre crianças e adultos – já foram atendidos.Do abuso sexual à prostituição: ‘sobreviventes' narram violências sofridas na infância

“Nosso trabalho é psicossocial, então a gente tem atendimento psicológico, orientação profissional, na parte da psicologia, grupos terapêuticos e temos a parte social, porque atendemos vítima de abuso que estejam em vulnerabilidade social. Na parte social oferece curso de geração de renda, tem cesta básica, toda uma assistência para essa pessoa se reinserir socialmente e sair dessa situação de vulnerabilidade”, comenta a coordenadora.

No dia 18 de maio de 1973, uma menina de 8 anos foi sequestrada, violentada e cruelmente assassinada no Espirito Santo. Seu corpo apareceu seis dias depois carbonizado e os seus agressores, jovens de classe média alta, nunca foram punidos. A data ficou instituída como o “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” a partir da aprovação da Lei Federal nº. 9.970/2000.

Números que assustam

*1% dos casos de abuso sexual em Campo Grande com menores de 19 anos ocorreram em ambiente doméstico (Shutterstock)Em Mato Grosso do Sul, dados do MPF-MS (Ministério Público Federal) mostram que em 2014, foram registrados 980 casos envolvendo estupro de menores de 18 anos; destes, um terço foram notificados em e mais de 80% envolveram menores de 14 anos. Na Capital foram registradas 207 notificações de violência sexual, sendo 71% das vítimas menores de 19 anos.

Dos casos de abuso sexual, 81% ocorreram em ambiente doméstico – o que reforça a constatação de que, em geral, o abusador é alguém muito próximo da vítima. O abuso dentro da própria casa é outro ponto em comum entre as 3 mulheres. R* tem 39 anos. Após a mãe morrer de câncer, ela sofreu abuso dos irmãos e fugiu de casa, com apenas 8 anos de idade:

–  Depois de um tempo fui pra prostituição, encontrei uma cafetina e lá me deram banho, roupa, comida, cuidaram de mim. As meninas e eu usávamos crack, bebida e quando acabava o efeito da droga, você só via lágrima escorrendo. Tem menina lá que foi estuprada pelo pai, que fez vários abortos, que o pai matou a mãe. É cada história pior que a outra. Lá eu fiquei grávida e hoje tenho três filhos. Um foi sequestrado e hoje ele tem 21 anos. Todo dia eu sonho com ele, não sei se tá vivo, se mataram, onde ele tá. Eu tinha tudo pra ser ninguém na vida, mas eu lutei e confiei em Deus. Meu sonho é sempre ir mais além. Um dia eu quero falar pra todas essas prostitutas que elas são alguém sim, que são uma joia rara. Mulher de programa precisa de ajuda, mas o que mais a gente precisa é de amor e carinho, porque pedrada tem de monte aí fora. Hoje eu sou dona do meu próprio negócio, tenho onde morar. Eu quero desejar boa sorte pra todo mundo. Nunca desista do seu sonho, você não paga nada pra sonhar”.

Abuso sexual e prostituição

Abuso e exploração são coisas diferentes. O abuso sexual ocorre com a utilização da sexualidade de uma criança ou adolescente para a prática de qualquer ato de natureza sexual. Já a utilização de crianças e adolescentes para fins sexuais mediada por lucro, objetos de valor ou outros elementos de troca configura exploração, que pode acontecer de 4 formas: no contexto da prostituição, na pornografia, nas redes de tráfico e no turismo com motivação sexual.

Ainda assim, abuso, exploração e a prostituição na vida adulta têm muito em comum. Viviane afirma que “quase 100% das mulheres que se prostituem tem histórico de abuso na infância”. A cura, conforme explicou, pode vir da fala. Uma das ações do Projeto Nova é um trabalho de escuta, por meio da psicanálise e da terapia.

“O principal é ouvir. A vítima de abuso tem uma característica que é silenciar a dor, porque o abusador acaba trazendo uma carga de culpa para a pessoa de medo, vergonha, porque é algo vergonhoso. Então as pessoas têm dificuldade de falar. E na psicanálise tem toda uma habilidade de tratar isso, mostrando para essa pessoa como isso tem influenciado na vida dela hoje e como ela pode tomar um outro caminho diante disso”, explicou Viviane.

O projeto tem mais de 20 voluntários, entre equipes de psicologia – incluindo estagiárias da UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) -, médicos e advogados, e se mantém apenas com doações.

P*, 39 anos, sofreu abuso na infância. Aos 14 anos, conheceu um pedófilo, com quem casou, relação que foi marcada pela violência física, sexual e psicológica. Desde os 13 ela vive da prostituição.

(Ilustração - Amanda Amaral)

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– Primeiramente eu acho que a opinião das pessoas por nós não vai mudar. Porque a sociedade vê assim: primeiro vem o ladrão, em segundo lugar o assassino e depois a prostituta, infelizmente. Eu nasci num lar no começo até legal, daí meu pai ficou ainda mais agressivo, começou a estuprar eu e minha irmã mais velha. Depois caí na mão de um pedófilo mais velho e aos 14 anos casei com ele. Antes, eu tava acostumada a ser tratada a pontapés, surras e estupros, mas ele me dava presente, eu era tratada como uma princesa. Vivi bastante tempo com ele, mas ele usava e abusava de mim e só fui perceber isso depois que me tornei uma mulher. Fui procurar emprego, mas não consegui porque tenho só até a terceira série. Foi quando comecei a me prostituir. De lá até então, eu já passei treze anos trabalhando como prostituta. Essa vida é tão obscura que hoje eu tenho depressão, bipolaridade, um monte de problema.

O relato dela mostra que apesar de viver na margem ‘feia' de um mundo violento, a vontade é de não habitá-lo:

– Perante a sociedade eu comecei a me excluir e preferi me tornar invisível, porque não quero me tornar parte desse mundo podre que a gente vive. O homem pra mim é uma figura horrível. E a forma que eu vejo o sexo? Tem a visão que aprendi na igreja que o sexo é pra ser bonito, prazeroso e cúmplice um do outro, mas eu acho que é o mal do século. Tá levando a perder conceitos, princípios, família. E mesmo eu tendo levado uma vida toda promíscua, de fazer sete programas numa noite, eu ainda acho um absurdo você ver na esquina uma guriazinha de treze anos com a bunda pra cima, rebolando, dançando aqueles funk, um absurdo.

O abuso e a violência sexual vitimaram pelo menos 15 mil meninos e meninas brasileiros em 2016. O dado é da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos de abril, e mostra que estes casos equivalem a 10,9% do total de queixas recebidas pelos canais da Ouvidoria. Das 133.061 denúncias de violação de direitos atendidas no ano de 2016, pelo Disque 100, foram 76 mil atendimentos relacionados a menores de 18 anos, somando 58% do total. Entre as violações registradas contra crianças e adolescentes estão ainda negligência, que mostra a ausência ou ineficiência no cuidado (37,6%), seguida de violência psicológica (23,4%) e violência física (22,2%).

A psicóloga explica as diferenças entre o atendimento das crianças e dos adultos. “Quando a gente tem um caso de abuso infantil surge em mim essa necessidade de urgência, porque há uma possibilidade dessa criança ter um futuro melhor do que aquela que já está na vida adulta”.

(Ilustração - Amanda Amaral)

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“No caso dos adultos, a pessoa já passou por um histórico complicado, então fica um trabalho mais demorado, um processo mais lento e também muito importante, porque essa pessoa já passou muito tempo com essa dor, então ela precisa se libertar disso”, comenta ela. São casos como de P*, 37:

 – O começo da minha vida não foi nada fácil. Minha mãe era prostituta, tentou me abortar, não conseguiu e com 15 minutos de vida me jogou no lixão de São Paulo como se eu fosse um lixo – na verdade um lixo é melhor do que eu, eu acho. Fui criada pelos catador de lixo que as pessoas chamam de mendigo. A gente catava latinha, sobrevivia do jeito que podia. Uma vez fui catar latinha e quando eu voltei vi nosso barraquinho pegando fogo e os dois tava lá dentro (os pais de criação). Eles me ensinaram uma coisa: a gente nunca perde por ser honesto e limpo, e eu sou. Aí, eu conheci umas pessoas que falaram que iam me dar serviço, que eu ia ser gente, mas eles me usaram pra prostituir, me batia e tomava meu dinheiro. Eu consegui fugir de lá e me enrosquei com um homem. Ele me dava de tudo, mas me batia, me espancava, me estuprava. Então fugi dele e vim pra Campo Grande. Na viagem de lá pra cá eu era obrigada a ter relação sexual com quem me dava carona, se não eles me batia ou me largava na estrada. Me sentia uma pessoa pra baixo, eu não tinha amor por mim, eu não queria mais viver, que vida era essa? A mãe não aceitava eu, o pai não aceitava eu, eu não tinha quem me amasse, pensei então que preferia morrer. Foi quando entrei nas drogas, arrumava confusão com todo mundo pra ver se alguém me matava logo, mas Deus é tão bom que não deixou eu morrer. Tentei ficar com esse homem porque meu sonho era ter uma criança, mas acabei pegando HIV. Tentei muito tempo ter filho, mas não conseguia e me afundava ainda mais na droga porque eu pensava que nem pra ter filho eu prestava. Eu fiz uma promessa e foi quando o médico disse que eu já tava de quatro meses. Nunca mais coloquei cigarro e bebida na boca. Mas hoje vivo com medo porque eu já vi morte, já enganei muita gente, fiz coisas que eu nunca quis fazer e hoje eu pago por isso. O que é o sexo pra mim? Sexo não presta. Lembro de tudo que passei na rua, dos estrupo, da maldade que as pessoas fizeram comigo. Me sinto suja. Se um dia eu largar do meu marido eu não quero outro homem não. Eu quero só carinho, me sentir amada, pra mim isso é suficiente.

O Projeto, conforme explicou Viviane, costuma atender mais mulheres do que homens. Essa diferença, no entanto, é permeada pela dúvida em relação aos casos. A psicóloga conta que não há como saber se o abuso e a exploração atingem mais mulheres ou mais homens. Isso porque os homens têm mais dificuldade em falar sobre o assunto.

“O homem tem muito mais dificuldade de falar, mas vem menos casos para mim. Eu acredito que eles sofrem tanto quanto as mulheres. É muito mais vergonhoso para o homem falar que sofreu abuso do que pra mulher, então ainda é um mito afirmar que é mais mulher ou que é mais homem, porque a gente não tem noção se os homens tem sofrido mais calados do que as mulheres”, comentou.