Corumbá é porta de entrada de haitianos, mas de lá eles não conseguem sair
Mudanças na política migratória do Chile forçam haitianos a atravessarem a Bolívia clandestinamente para chegar ao Brasil, tendo Corumbá como porta de entrada.
Guilherme Cavalcante –
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Desde o terremoto que em 2010 avassalou Porto Príncipe, a capital do Haiti, o Chile tornou-se um dos destinos de acolhimento de refugiados daquele país. Mas, quando o presidente chileno Sebastián Piñera efetuou mudanças nas políticas migratórias, percebidas com mais intensidade entre o fim de 2017 e início de 2018, haitianos têm se deparado com imensa dificuldade para encontrar trabalho em território chileno.
Com isso, o fenômeno de uma nova diáspora em busca de sobrevivência tornou Corumbá a nova rota de entrada de imigrantes haitianos no Brasil.
Haitianos vindos do Chile chegam ao Brasil por recomendação de compatriotas, boa parte composta por familiares, com visto humanitário no Brasil. Segundo eles, é maior a chance de obter trabalho no país, que ocorre principalmente no ramo da construção civil. Além disso, o fato de existirem familiares – muitos deles residentes desde 2011 – acaba por lhes proporcionar maior sensação de segurança. Os principais destinos são Santa Catarina, São Paulo e Paraná.
O detalhe, porém, é que de Corumbá eles não têm como sair. O acolhimento de refugiados depende de visto humanitário concedido em Porto Príncipe. Assim, haitianos que chegam por Corumbá são considerados ilegais, e recebem notificação de 60 dias para saída do país.
Desde que a Polícia Federal diminuiu o número de notificações, que por bem ou mal, permitem aos imigrantes circularem pelo país, haitianos estão se amontoando na rodoviária da Cidade Branca. De dia, perambulam pela cidade. À noite, procuram abrigo no prédio ou com quem se sensibiliza e concede pouso. A situação desperta a compaixão dos corumbaenses. E medo na administração pública.
Conforme levantamento da Secretaria de Assistência Social de Corumbá, atualmente são ao menos 300 haitianos na cidade, divididos entre hotéis baratos, pousadas, garagens, instalações municipais, salões paroquiais, casas de família e na rodoviária. O número é muito maior que o suportado pela estrutura da cidade, cuja Casa de Passagem tem capacidade de abrigar apenas 20 pessoas por noite, por no máximo cinco dias seguidos, conforme o regimento municipal.
O engessamento das notificações parece ser o principal responsável pela permanência deles na cidade. O número crescente de haitianos também oculta diversos contextos, não só o diaspórico, mas também as condições de travessia. Do Chile, imigrantes pagam coiotes, muitas vezes taxistas, para transportá-los pela Bolívia até a fronteira com o Brasil.
A Bolívia não possui programa de acolhimento de refugiados, como aqui, mas é por lá que haitianos vencem mais de 2 mil km, em viagem que chega a durar três dias, até Porto Quijarro, cidade fronteiriça distante no máximo 30 min de Corumbá. Com medo de prejudicar outras pessoas em processo de vinda ao Brasil, haitianos evitam ao máximo detalhar essas condições a autoridades e à imprensa.
Todavia, os relatos chegam, de uma forma ou de outra. De acordo com membros do Comitê Estadual de Enfrentamento de Tráfico de Pessoas em Mato Grosso do Sul, haitianos são submetidos a todo tipo de abuso: sair do Chile rumo ao Brasil é uma via crucis marcada por violência, xenofobia, extorsão, roubos e até por abusos sexuais.
Chegam na fronteira sem dificuldade de entrada, já que veículos bolivianos atravessam o posto de imigração sem problemas até Corumbá. São despejados, literalmente, em frente a rodoviária. A pior parte da travessia foi vencida, mas as dificuldades estão longe de ter fim.
Travessia
“En Chile no hay trabajo, no hay nada… Y tengo mucho frío”, explica, em espanhol, o haitiano Wenddy Joseph, de 19 anos. Em 2017, ele saiu de Porto Príncipe para Santiago, no Chile, chegou pouco antes do rigoroso inverno. Permaneceu na cidade por cerca de um ano, onde trabalhou como pedreiro. Quando o serviço chegou ao fim e seu visto de turista – com o qual ficaria indefinidamente no país, conforme a política de imigração praticada no governo da ex-presidente Michelle Bachelet – passou a considerá-lo ilegal. Vir para o Brasil foi a solução encontrada. Está no país desde o início do mês e o destino final é Chapecó, em Santa Catarina, onde dois irmãos moram e também trabalham com construção civil.
Um dos poucos que atendeu a reportagem em espanhol, Wenddy age como outros haitianos e é hesitante quando perguntado sobre a travessia. Fornece informações vagas, omite fatos e muda o idioma, recorrendo ao crioulo haitiano, sua língua nativa. Força a incompreensão. Não há um dicionário português-crioulo. A decisão de não explicitar abusos da viagem que dura até três dias – num percurso de mais de 2 mil km a partir, geralmente, de São Pedro do Atacama – é motivado provavelmente pelo receio de prejudicar a vinda de haitianos ainda no Chile.
A estimativa da Secretaria de Assistência Social de Corumbá é que dos cerca de 100 mil imigrantes haitianos que moravam no Chile, cerca de 1.300, pelo menos, já tenham passado pela cidade sul-mato-grossense em 2018, chegando por Porto Quijarro e Porto Soares. Números da Polícia Federal revelam que na cidade 931 haitianos deram entrada no posto de imigração, de 1º de janeiro de 2018 até o dia 2 de julho. Em poder do padre Marco Antônio Ribeiro, representante da Missão Scalabriniana de Fronteira, cópias de documentos que são organizados e entregues na imigração mostram passaportes sem carimbo de saída do Chile e nenhum registro de passagem pela Bolívia.
“Como todo fluxo migratório, entre a origem e o destino há a passagem. E por serem passagem, esses países raramente impõe obstáculos, principalmente no nosso continente. Sair do Chile para chegar ao Brasil provavelmente fosse mais fácil em linha reta, passando pela Argentina e o Paraguai. Mas, a Argentina é um país de destino, que não facilitaria a passagem. Por isso eles passam pela Bolívia”, explica o professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Marco Aurélio Machado de Oliveira.
“Todo haitiano tiene que pasar por la Bolivia para llegar a Brasil”, diz Wenddy, sem mais detalhes. Mas, relatos fornecidos a uma comissão do Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que contou com um haitiano residente em Campo Grande e que fala português, confirmam a travessia violenta.
Roubos, extorsões, violência física e sexual são comuns. Atravessadores aproveitam-se da vulnerabilidade dos imigrantes, cobram taxas que podem chegar a US$ 500 ou mais. Durante o caminho, param em estradas ermas, apoderam-se, com uso de força e agressão, de bens como documentos, máquinas fotográficas e telefones celulares. Mulheres são abusadas e estupradas. O silêncio ante a possibilidade de denunciar violações evidencia profunda resignação e submissão aos abusos possíveis da travessia.
Provavelmente, haitianos estão cientes dos riscos aos quais estarão expostos. Com celulares nas mãos, eles passam o dia em comunicação numa espécie de rede, por mensagens de textos ou por envio de arquivos de áudio. Acessam a internet, assistem a vídeos no Youtube. Traduzem as informações locais conforme a língua nativa e conseguem, se quiserem, deslocar-se a endereços e acessar serviços como hospitais e supermercados. Conversam com amigos e familiares, trocam informações, relatam os problemas de notificação no posto de imigração da Polícia Federal. Não restam dúvidas de que há um circuito minimamente organizado.
“Essas pessoas não fazem uso e abuso de drogas ilegais, não há óbitos registrados em Corumbá, não há uma mulher grávida que tenha abortado. Não há uma tragédia, ainda, que ainda não ocorreu não porque as autoridades evitaram, mas porque há um mínimo de organização da rede deles”, detalha Oliveira, que também é coordenador no Circuito de Apoio ao Imigrante.
Para Oliveira, também há outros aspectos que promovem certa estabilidade ao fluxo migratório, como a forte presença de mulheres entre os haitianos. “Onde há fortes presenças femininas, há menos incidência de violência, de uso e abuso de drogas ilegais, de venda de filhos e de tráfico de pessoas. Acredito que esse seja um dos elementos que evita que tragédias aconteçam. Também estou convencido de que onde há elos familiares no transcurso do fluxo, os riscos são mais calculados por eles”, destaca o pesquisador.
Braços abertos
Por volta das 6h da manhã, o padre Marco Antônio Ribeiro levanta da cama. São cerca de seis horas de descanso que separam o término e início de uma rotina 100% dedicada ao amparo de imigrantes haitianos. Ele se divide entre atividades mais frugais, como transportar utensílios de cozinha para o preparo da refeição que oferecem, até a leva-los a hospitais e agendar atendimento na imigração. Recebe, das mãos dos haitianos, cópias do passaporte e de outros documentos, que são apresentados na Polícia Federal. A lista com os agendamentos é fixada nos locais onde eles passam a noite, como pensões, hotéis, garagens, sede da pastoral e outros espaços.
Com ele, dona Nilda Barbosa, proprietária do Hotel El Shaddai, no centro de Corumbá, também levanta cedo da cama. Na sala do estabelecimento, cerca de 40 haitianos estão alojados gratuitamente, assim como na garagem, onde horas depois o almoço é servido. Nos 42 quartos divididos nos quatro andares do hotel, quem tem algum dinheiro ainda consegue alugar um quarto por preço simbólico, R$ 20 a diária. Todos estão, de certa forma, amontoados e imersos na rotina de acolhimento.
Ribeiro atende a reportagem enquanto para num açougue para comprar cortes de frango, com dinheiro de doações feitas por corumbaenses. Em seguida, ele recebe um telefonema e transforma o semblante. Uma haitiana grávida de quatro meses caiu de uma cadeira na rodoviária e lesionou a bacia. Ribeiro é rápido e chega na unidade juntamente com a ambulância. O atendimento já foi realizado e ele retorna às atividades. “Todo dia é assim, essa correria”, diz, meio sem graça, pelo pouco tempo disponível para atender a equipe que o acompanha.
Ribeiro e Nilda se encontram por volta das 10h30 em frente ao El Shaddai. Ele traz mais vasilhas e ao descer do carro é fortemente assediado por haitianos. As perguntas mais comuns, feitas em espanhol, é sobre o agendamento na imigração. Eles precisam da notificação de saída para poder saírem de Corumbá rumo a seus destinos. Ribeiro lhes conta que o número de notificações diminuiu nas últimas semanas – o número caiu de 20 para 10 atendimentos no posto da imigração. Haitianos ficam sem entender. Na verdade, Ribeiro também.
“Esse novo fluxo ficou mais notório em fevereiro, quando foi detectado um grupo de 38 haitianos vivendo na cidade, de maneira precária. No último mês, a Polícia Federal deu uma parada no atendimento, que acumulou o número de pessoas. Estimamos que haja cerca de 300 na cidade”, conta. “Não sei explicar porque os atendimentos diminuíram”, completa.
Enquanto aguarda a comida, que é preparada numa cozinha industrial cedida para o acolhimento, dona Nilda fala sobre si e sobre o que pensa da situação. “Sou evangélica”, diz, rindo, após ser perguntada se é da paróquia do padre Ribeiro.
“Comecei há um tempo a fazer sopão. Quando os haitianos vieram resolvi distribuir para eles, também. Depois me envolvi com o padre e já tem três semanas que estamos dando o almoço aqui, porque o número aumentou demais e tem esse espaço. São 250 todos os dias que vêm comer, porque a gente conta pelos copos. Agora tá aumentando, porque eles sabem que o padre ajuda. Já teve táxi que deixou eles aqui na frente, agora tá assim. Todo dia de manhã chega gente”, revela Nilda.
O almoço é uma cena à parte. A rua, anteriormente tranquila, é tomada por haitianos que surgem de várias direções. Uma mesa com as panelas e vasilhas é montada à direita. Cadeiras são distribuídas do outro lado. A fila se forma e os imigrantes se alimentam. Depois ficam pela calçada, na espera do padre. Quem é recém-chegado se apresenta. “Não dá para decorar o nome de todos”, responde Ribeiro, já rodeado de gente.
Nova Brasileia
Um haitiano chamado Claude escuta, num fone de ouvido, a canção Pawol La, por Gazzman Couleur, um cantor de raggae gospel haitiano. Couleur é famoso entre os imigrantes. Há diversos vídeos na internet de haitianos dançando suas canções. Pawol La, por sua vez, é uma espécie de hino que é levado por onde passam os imigrantes. É bem possível que a música tenha sido tocada em Brasileia, cidade acriana que faz fronteira com a Bolívia.
Brasileia é o maior referencial do que pode ocorrer com uma localidade sem uma política adequada de acolhimento de imigrantes. Entre 2010 e 2014, o município foi a das principais rotas de entrada de haitianos que atravessavam o Equador, Peru e Bolívia até a localidade. Bem menor que Corumbá, o impacto social foi mais intenso. Tornar-se como ela é um pesadelo da administração de Corumbá.
“Hoje já entendemos que é um problema. A vinda desses haitianos não ocorreu bem de forma gradativa. Nossa estimativa é que passaram cerca de 1200 haitianos pela cidade, mas muitos ainda estão aqui, não conseguem seguir seus destinos. Se você caminhar pelas ruas vai ver que o número ainda é muito grande. É isso nos preocupa, pois não sabemos de onde vamos tirar o recurso e a forma de se adequar para fazer o recebimento”, destaca Glaucia Antonia Fonseca dos Santos Iunes, titular da Secretaria de Assistência Social do município.
Iunes destaca que houve encontro com diversos atores envolvidos no processo, desde as
organizações beneficentes à Polícia Federal. “Depois que notamos o aumento do fluxo, tivemos uma primeira reunião na Polícia Federal e dentro de uma composição, justamente
com a pastoral e o Ministério Público Federal, tentamos traçarmos uma maneira de poder fazer um atendimento e perceber o que realmente estava de fato acontecendo. E ficou de certa forma combinado que cada um dentro de seu órgão se comprometeria”, explica.
Cinco meses depois, pouco foi feito, a não ser os malabarismos para acolhimento. O número de imigrantes só cresceu na cidade, causando correria entre entidades a fim de
oferecer o mínimo de dignidade. Diariamente, haitianos que chegam à Corumbá variam entre 15 e 20. Na mesma frequência, apenas 10 conseguem notificação na imigração para seguirem seus destinos. A conta não fecha. Aparentemente, a Polícia Federal criou um gargalo na imigração quando reduziu o número de atendimentos. A Superintendência do órgão foi procurada pela reportagem a fim de explicar o porque da mudança de postura, mas não manifestou resposta até a publicação.
“Já nos tornamos uma Brasileia. O fluxo já está aí. O que nos diferencia dessa cidade é o fato de que ainda não temos acampamentos, mas falta muito pouco”, destaca o
professor Marco Aurélio Machado de Oliveira, que esteve na cidade há alguns anos.
“Em Brasileia o impacto foi muito grande, gerou na cidade um misto de solidariedade e de profundas irritações com a presença deles, algumas no campo xenofóbico. Brasileia tem que servir como exemplo de como que a fronteira, que é uma pauta nacional, é invertida e colocada como uma pauta local. Esses assuntos conseguem ser manipulados de tal forma a ponto das autoridades virarem às costas”, considera.
Para Oliveira, o problema dos acampamentos é que eles afastam o mínimo de controle do poder público. “Enquanto estivermos alojados em locais que o Estado organiza, há condições de dar uma assistência médica, social, enfim, de dignidade. Mas, na medida que o acampamento existe, como em Brasileia, afasta-se completamente a possibilidade de oferecimento de dignidade e segurança”, destaca.
O governo do Estado já estaria a par da situação. “Eles estão ciente, mas não obtivemos resposta, ainda. Esperamos que o governo Federal também olhe por Corumbá. Houve essa conversa de que o Chile deportará todos os imigrantes haitianos, que são cerca de 98 mil pessoas. Imagina esse fluxo daqui a mais um tempo, principalmente em Corumbá?”, finaliza.
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