O Centro Acadêmico Camilo Ermelindo da Silva (CACES) e a Liga Acadêmica de Psiquiatria (LAP), que congregam estudantes do curso de Medicina da UFGD, publicaram nesta semana o “Manifesto Pela Saúde Mental e ”.

O texto aborda o tema que é trazido à tona pela campanha setembro amarelo, mas também ressalta a situação de isolamento social na e o contexto da assistência à saúde mental enfrentado no Brasil.

O documento está publicado em formato de livreto virtual, com imagens, obras de arte e poemas integrando o conteúdo. O texto, na íntegra segue abaixo:

MANIFESTO PELA SAÚDE MENTAL E PREVENÇÃO AO SUICÍDIO

Centro Acadêmico Camilo Ermelindo da Silva (CACES)
Liga Acadêmica de Psiquiatria (LAP)

Um vírus altamente infectante e que se espalhou rapidamente por todo o globo colocou em xeque incongruências de uma sociedade que se diz em pleno desenvolvimento capitalista. Dados anteriores a essa crise sanitária e social, como o de que o Brasil, entre 2000 e 2012, teve um aumento de 10,4% na taxa de suicídio e que, considerando apenas o ano de 2015, o suicídio foi a maior causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos, revelam que o enfrentamento ao Coronavírus não é o único problema de saúde pública em que as políticas governamentais têm sido falhas. O saúde mental na sociedade brasileira é negligenciada, e, agora, em meio a retirada de direitos fundamentais à dignidade humana como acesso e permanência à educação pública, moradia, alimentação, trabalhos formais e com estabilidade e, considerando a pandemia, a negação ao distanciamento social feita pela lógica produtivista, ela se deteriora ainda mais.

Sendo assim, frente a essa conjuntura e à chegada do “Setembro Amarelo”, mês da campanha de prevenção ao suicídio, o Centro Acadêmico de Medicina Camilo Ermelindo da Silva (CACES) em parceria com a Liga Acadêmica de Psiquiatria (LAP) da Universidade Federal da Grande (UFGD), se manifestam a favor não só de melhorias nas condições de saúde da população, como também necessariamente nas diversas esferas da vida, como a econômica, social, política e educacional, porque entendemos que saúde vai muito além da ausência de doença.

O QUE É SAÚDE?
Entendemos saúde pela ótica da Determinação Social do Processo Saúde Doença e, sendo assim, acreditamos que a saúde mental é expressão particular de um processo geral, em que a vida e a morte, a saúde e a doença, são fenômenos de uma totalidade, determinados socialmente.

Resumidamente, tal conceito foi teorizado na década de 70 e é um dos pilares do pensamento crítico que fundamentou a saúde coletiva e o projeto inicial da reforma sanitária brasileira que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Por meio dele, o entendimento do processo saúde-doença, seja ele físico ou mental, é determinado pelas relações de produção e reprodução da vida existentes na sociedade.

Desse modo, tal compreensão é fundamental para que não simplifiquemos processos que são históricos, complexos e constituídos por interesses de classes. Assim, é possível compreender diferenças geográficas, políticas, sociais e entender que os processos de adoecimento, em geral, não são democráticos justamente porque não vivemos sob as mesmas condições dentro da estrutura social – e que o acesso à saúde também é determinado por interesse de terceiros e não de forma isonômica. Assim, os fatores que impactam a saúde mental dos estudantes e da população vão muito além da simples patologização de situações pelos guide lines de psiquiatria. Suas implicações na vida de determinado indivíduo possuem nuances e particularidades que são inerentes à realidade vivenciada por ele.

O momento de pandemia sem dúvidas é um período de desafios não só por ser, talvez, a maior crise sanitária dos últimos 100 anos – que, agora, acentuou as contradições da sociedade – mas também pelo processo de enfrentamento à doença ser novidade para maioria da população. Frente a isso, uma das principais medidas de combate à Covid-19 tem sido o distanciamento social. O ir e vir já não ocorre da mesma forma. O ser humano é um ser social que se constrói a partir da vivência em sociedade e que o “eu” depende da interação com o “outro” para ser pleno, tal medida, ou a não possibilidade de se cumprir ela, somada a outros fatores, pode causar angústia e sofrimento psíquico aos indivíduos.

Além disso, nota-se que o mal-estar relacionado ao distanciamento social possui outros agravantes como a incapacidade de se estar consigo mesmo e a lógica produtivista instaurada na sociedade. Agora, em regime de “home office”, as jornadas de trabalho se tornam ainda mais exaustivas e alienadoras. A constante busca por produção e bem-estar, muitas vezes preconizados de forma extenuante nas redes sociais e meios de comunicação, além de causarem sofrimentos psíquicos ao indivíduo o consolidam ainda mais na engrenagem de produção, não lhe dando tempo para autorreflexão e o aprofunda em um abismo de perda da razão social, a identidade e prejudica a autoconsciência.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

No âmbito acadêmico a situação é semelhante. A universidade, enquanto instituição imersa na sociedade capitalista, é instrumento de reprodução e manutenção das contradições presentes no resto da sociedade. Historicamente sendo um ambiente elitizado, inacessível à maioria da população, possui sérias dificuldades estruturais como as relacionados à sua função social de gerar conhecimentos e suprir as demandas da população nas diversas esferas da vida, tais como saúde, educação, cultura, etc. Tais falhas contribuem diretamente para o adoecimento mental da comunidade acadêmica e, somando-se a isso, medidas como implementação de metodologias de ensino remoto, cortes de bolsas de pesquisa e de auxílio permanência, a situação se torna ainda mais grave aos estudantes.

Vale ressaltar que a educação já não é prioridade nas universidades públicas há algum tempo. Em um contexto de progressivo desinvestimento dos Institutos de Ensino Superior (IES) públicos, mais evidente nos governos recentes, a sobrecarga por falta de contratação de docentes e servidores técnico-administrativos com consequente sucateamento do educação – abrindo brecha para o discurso privatista – é uma realidade intencional.

Cada vez mais os estudantes são sufocados por demandas constantes de produção acadêmica em meio a condições precárias para o seu desenvolvimento. Atrelado a isso, tem-se a estrutura universitária em constante desmonte que, ao mesmo tempo que exige alta desenvoltura do aluno, dificulta o seu acesso a editais de bolsas que, em sua maioria, são baseados em critérios puramente “meritocráticos”, ignorando as desigualdades sociais que permeiam a categoria estudantil.

Observa-se o ingresso de estudantes de baixa renda nessas instituições em decorrência de políticas públicas de acesso como as ações afirmativas. Contudo, esse processo não foi acompanhado pela implementação adequada de medidas de permanência estudantil. Assim, tanto nas universidades públicas quanto, principalmente, nas universidades privadas, inúmeros estudantes precisam lidar com a angústia constante frente à falta de auxílios, acesso à moradia estudantil, creches para as filhas e filhos de estudantes, suporte psicopedagógico adequado, restaurantes universitários, moradia e transporte. Uma lógica que claramente não atende às reais necessidades da população e contribui para o seu adoecimento. Permanência estudantil é um direito que deve ser assegurado a todos que acessam o ensino. Tal como o acesso ao ensino é base para vidas dignas.

ESTUDANTES E O FUTURO NA MEDICINA

Em um recorte mais específico, estudantes de medicina possuem algumas particularidades quanto a essa situação. Constituem um grupo que está inserido numa educação com altíssima carga horária e formação curricular de modelo biomédico, o qual prioriza o tecnicismo e certo determinismo biológico, negligenciando as questões sociais e subjetivas. Dessa maneira, possuir boas notas e um currículo diverso de atividades implica na aquisição de status e ao mesmo tempo produz uma construção social de uma formação que negligencia a saúde dos discentes e encontra apoio, muitas vezes, no discurso hegemônico de que o médico é um profissional que não pode cometer falhas.

Ademais, professores e até outros estudantes disseminam recorrentemente a ideia de que é necessária uma formação opressora, baseada na máxima do “estude enquanto os outros se divertem” e outros bordões produtivistas, para que o aluno se torne um bom profissional, corroborando ainda mais para que o estudante negligencie sua saúde mental. Em consequência disso, muitos alunos irão apresentar seu primeiro episódio psiquiátrico durante a . Em média 30% dos estudantes de medicina no Brasil apresentaram a Síndrome de Burnout, que é o estágio de despersonalização dos indivíduos devido a uma dedicação exclusiva para a obrigação de uma resposta social associados ao estresse crônico, depressão e tentativas de suicídio. Não é por acaso que recorrentemente manchetes noticiam de formas irresponsáveis o suicídio de algum estudante de medicina e que, de acordo com um levantamento publicado no American Journal of Preventive Medicine, a categoria médica está entre as profissões mais relacionadas ao suicídio.

Diante disso, neste período de pandemia e distanciamento, todas essas problemáticas se exacerbam somadas às incertezas inerentes ao momento: atraso da formatura e permanência adicional na universidade, o que muitas vezes gera mais gastos em uma conjuntura já de comprometimento da renda familiar; implementação de atividades via ensino remoto pelas IES, com opressiva carga de estudo, juntamente à torrente de informações sobre a Covid-19 e avaliações valendo nota que desconsideram as importantes limitações de parte dos estudantes; adoecimento individual ou de entes queridos pela Covid-19 – o qual por si só já causa grande sofrimento – entre outros fatores. Todas essas questões materiais, de alguma forma, impactam severamente na saúde mental, gerando ansiedade, culpa, depressão e tantas outras formas de sofrimento psíquico.

É imprescindível entender que o processo de adoecimento mental vai muito além da patologia que o indivíduo possa vir a carregar como agravante. Ele é determinado por inúmeros fatores que perpassam esferas políticas, educacionais, de classe, gênero, e dar atenção a tais fatores é lutar por uma saúde mais democrática e que sirva às necessidades da população. A problemática da saúde mental não pode ser colocada de lado em meio à normalização de dados como os que mostram que, anualmente, no mundo, 800 mil pessoas cometem suicídio e que o Brasil é o país com maior taxa de pessoas diagnosticadas com transtorno de ansiedade no mundo e o quinto em casos de depressão, segundo a OMS.

Sendo assim, discutir o processo de saúde e adoecimento mental assim como todos fatores que implicam na conduta e ato suicida é umas das formas de se combater ativamente essa mazela. O amparo psicológico diante do contexto em que vivemos, junto a outros aspectos do capitalismo somados à pandemia, revela-se como urgente e demanda atenção da sociedade em lutar pela saúde mental nas mais diversas esferas da vida. Fornecer aos indivíduos instrumentos para que possam desenvolver suas potencialidades é essencial para isso.

Desse modo, o CACES e a LAP UFGD reiteram sua posição em favor de uma sociedade que dê mais atenção ao processo de saúde-doença como uma determinação social. Para nós, parafraseando-se as palavras de Nise de Silveira, “A saúde mental é um estado profundo de ser. Não concordamos com o conceito de doença mental denunciado como crônica. Vemos os capazes de finuras e nem todos nós somos capazes de finuras”. É preciso ter coragem de debatermos saúde! Lembre-se, você não está sozinho! (Informações da assessoria)