Reconhecido pela ONU (Organização das Nações Unidas) como essencial para a dignidade humana, o acesso à água potável e ao saneamento básico perpassa questões que vão além de uma política pública, é uma condição de sobrevivência. Em Mato Grosso do Sul, porém, esse direito ainda enfrenta obstáculos concretos.
Das mudanças climáticas, que pressionam os recursos hídricos, até falhas estruturais e de manutenção que atrasam a universalização desses serviços, a falta de água ainda é um problema recorrente, mesmo no Estado, que abriga parte de um dos maiores reservatórios do mundo: o Aquífero Guarani.
Cotidiano de quem vive o problema
Tânia Santos mora há sete anos na Vila Glória, em Campo Grande, mas há pelo menos meia década convive com problemas recorrentes no abastecimento de água. No episódio mais recente, em 20 de setembro, a água até chegou às torneiras, mas veio acompanhada de barro e sujeira.
“Nesse dia, a caixa d’água ficou só com barro e ficamos sem água na rua o dia todo. Acionamos a concessionária, que se comprometeu a fazer a limpeza. O problema é que a água normalizou só de madrugada. Passamos o dia inteiro sem água na rua e, dentro de casa, com a água suja”, relata Tânia.
Segundo a moradora, esse não foi um caso isolado. Menos de dois meses antes, ela havia enfrentado um episódio semelhante.
“São reparos enormes na rua, mas deixam a população nessa situação. Não tem como tomar banho para ir trabalhar, não tem como lavar uma louça para o café, tudo porque a água estava absurdamente suja e não tinha na rua!”, desabafa.
A situação de Tânia expõe um problema mais amplo enfrentado pela população, que, mesmo vivendo sobre um dos maiores aquíferos do mundo, ainda sofre com interrupções e irregularidades no abastecimento.
O caminho das águas em Campo Grande

Embora a cidade seja banhada pelo Aquífero Guarani, o abastecimento urbano depende de um complexo sistema operado pela Águas Guariroba, com captações superficiais (represas) e subterrâneas (aquíferos).
Mais de 40% da água distribuída à população vem do Córrego Guariroba; outros 12% são captados do Córrego Lageado, e 48% são oriundos de cerca de 150 poços profundos espalhados pela cidade – sendo 10 deles do Aquífero Guarani (47%).
Ao todo, são 107 reservatórios, cada um com capacidade média de 1 milhão de litros, que funcionam como ‘pulmões’ do sistema de abastecimento, composto por duas ETAs (Estações de Tratamento de Água), a ETA Guariroba e a ETA Lageado.

Segundo a concessionária, o modelo é interligado, o que permite remanejar água entre bairros e garantir maior flexibilidade, mesmo em períodos de alta demanda ou estiagem.
“O CCO [Centro de Controle de Operação] monitora em tempo real o nível dos reservatórios e a vazão dos córregos Guariroba e Lageado. Com o apoio de inteligência artificial, o sistema consegue prever, com até seis meses de antecedência, cenários críticos, para intervir antes que falte água”, explica.
Além disso, a empresa afirma que nenhum bairro está sob risco de desabastecimento ou racionamento. Isso porque, desde 2020, investe em ampliação da produção e da distribuição de água, com a perfuração de novos poços de alta vazão e a construção de mais reservatórios.
Mas, se não há desabastecimento, por que falta água?

Apesar dessa estrutura, a população ainda enfrenta problemas de baixa pressão e interrupções temporárias no abastecimento. Questionada, a Águas Guariroba esclarece que o principal motivo para a falta de água atualmente são as manutenções emergenciais — que vão desde intervenções realizadas pela prefeitura até furtos de cabos de energia de equipamentos da rede de distribuição.
“Esses rompimentos ocorrem por diferentes motivos, como obras de drenagem, pavimentação asfáltica, implantação de rede de gás ou mesmo oscilações de energia elétrica. Cada intervenção pode comprometer o fornecimento por horas.”
Além disso, mesmo com o nível dos reservatórios dentro da normalidade, fatores como chuvas irregulares, estiagem prolongada e aumento do consumo influenciam diretamente o equilíbrio do sistema. Por isso, a concessionária diz adotar práticas de conservação e monitoramento das fontes de captação, para evitar maiores impactos, enquanto, na prática, moradores como Tânia seguem à espera de uma solução definitiva.
“Falta manutenção. Quando dá problema, precisam fazer reparo emergencial. São obras constantes que não deveriam ser necessárias se tivesse manutenção regular”, argumenta a moradora.
Segurança hídrica em Mato Grosso do Sul
Se em Campo Grande o abastecimento de água é responsabilidade da Águas Guariroba, no restante do Estado o trabalho cabe, principalmente, à Sanesul (Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul). A companhia afirma que, mesmo em meio à estiagem prolongada e à redução do nível de rios e aquíferos, neste ano, não há registros de impacto direto sobre a qualidade ou quantidade da água fornecida à população.
Atualmente, a Sanesul opera 14 sistemas de captação superficial em rios como Paraguai, Aquidauana, Miranda, Dourados e Taquarussu. Embora apresentem variações sazonais, os níveis desses cursos d’água permanecem dentro das séries históricas, o que, segundo a empresa, garante estabilidade. A maior parte, no entanto, vem de mananciais subterrâneos, sistema menos sujeito a flutuações imediatas, mas que também sente os efeitos da estiagem prolongada.
“Para assegurar o fornecimento, a companhia diversifica pontos de captação, realiza monitoramento diário da qualidade da água, acompanha níveis de poços e rios e consulta dados da Sala de Situação do Imasul (Instituto de Meio Ambiente de MS), que observa a situação hídrica de todo o Estado.”
Além disso, a empresa ressalta que investe em combate às perdas na rede e modernização da infraestrutura.
Falta de água é problema crônico para indígenas de Dourados

Longe das áreas urbanas, o acesso pleno à água ainda parece um sonho distante para os moradores da Reserva Indígena Federal de Dourados, que abrange as aldeias Bororó e Jaguapiru. Alí, a falta de abastecimento é um problema histórico e segue como um desafio persistente para as autoridades nas três esferas do poder público.
Em março deste ano, o Governo Federal anunciou a liberação de R$ 2 milhões para a perfuração de quatro poços — definidos com base em estudos realizados em dezembro de 2023 — e outros R$ 2 milhões destinados ao abastecimento de água da reserva.
O sistema de fornecimento de água foi implantado na Aldeia Jaguapiru (1 e 2), em 1997. Segundo o agente indígena de saneamento Edemir Machado, que atua há 17 anos na função, os principais fatores para as falhas no abastecimento são o crescimento populacional e a falta de manutenção da rede.
“Esse sistema está ultrapassado e não consegue mais suprir a demanda; a população cresceu. São 269 quilômetros de rede e algumas casas não têm ligação. Hoje, com apoio do Governo do Estado, contamos com caminhões-pipa e equipes que dão suporte”, explica Machado.
Queda de reservatório e falhas estruturais

No fim de junho, o desabamento da caixa d’água de 30 mil litros na Aldeia Jaguapiru evidenciou a morosidade na resolução do problema. A estrutura havia sido concluída em abril, com recursos da SEC (Secretaria de Estado da Cidadania), e estava em operação após os testes de vazão. A suspeita é de que infiltrações comprometeram a base. Na época, a SEC informou ter mobilizado uma equipe técnica para apurar o caso, mas, segundo lideranças locais, até o momento nenhuma medida concreta foi tomada para reconstruir o reservatório.
Apesar de um acordo firmado após o bloqueio de rodovia e confronto com tropas de choque, o desabastecimento de água na reserva continua. A situação voltou a preocupar os moradores e levou o capitão da Aldeia Jaguapiru, Ramão Fernandes, a pedir ajuda ao MPF (Ministério Público Federal).
Em agosto, lideranças indígenas denunciaram o descaso ao procurador da República Marco Antônio Delfino e cobraram a conclusão dos poços artesianos prometidos pelos governos federal e estadual no final do ano passado.
Na nova denúncia apresentada ao MPF, Fernandes relatou abandono de obras, falhas estruturais e a falta de compromisso de empresas contratadas para perfurar e manter os poços. Ele também relembrou a queda, em junho, do reservatório entregue pelo Governo do Estado.
“Além desse poço que caiu, há outro em construção que preocupa pela má estrutura. E um terceiro, que chegou a 294 metros de profundidade, teve desmoronamento e a empresa abandonou os trabalhos”, afirmou.
Enquanto aguardam pela resolução do problema os indígenas dependem de caminhões-pipa que, três vezes por semana, levam água às comunidades garantindo um mínimo de dignidade.
‘Normalidade’ que se perde com os anos
De volta ao contexto urbano, a situação aparentemente regular dos reservatórios transmite uma sensação de segurança. No entanto, Alcides Faria, presidente da ONG Ecoa, alerta para o cenário dos reservatórios e mananciais de Mato Grosso do Sul diante do desmatamento e das mudanças climáticas. Para ele, essa aparente normalidade não pode servir de pretexto para negligenciar a conservação dessas áreas.
Ele explica que, além de garantir o abastecimento de água e o saneamento, os reservatórios são fundamentais para o fornecimento de energia elétrica no país. Os principais estão localizados no Rio Paraná: Jupiá, Porto Primavera e Itaipu.
“Em território brasileiro, esses são os três últimos empreendimentos da grande ‘cascata’ de barragens para geração elétrica na bacia do Paraná. As águas captadas em sub-bacias de Minas Gerais, São Paulo e Goiás já passam por centenas de hidrelétricas antes de chegarem a essa região. Em Mato Grosso do Sul, destacam-se como contribuintes diretas os rios Sucuriú, Pardo, Ivinhema e Amambai”, pontua Faria.
De acordo com o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), os três reservatórios mantiveram níveis dentro da normalidade durante o último período seco, colocando o SIN (Sistema Interligado Nacional) em situação mais favorável do que no ano passado. Recentemente, o ONS determinou que Jupiá e Porto Primavera retivessem mais água, enquanto Itaipu intensificasse a geração de energia.
“Em tempos de normalidade climática, a bacia do Paraná responde por mais de 60% da energia elétrica produzida no país. No entanto, essa ‘normalidade’ vem se perdendo nos últimos dez anos, como apontam diversas análises”, reforça.
Cinco rios ao nível de estiagem

Segundo Faria, os mananciais das bacias hidrográficas de Mato Grosso do Sul estão cada vez mais vulneráveis às mudanças climáticas e aos eventos extremos, como secas prolongadas. Esse quadro se agrava pelo desmatamento, pelo uso intensivo do solo na agricultura industrial e pela pecuária extensiva de baixa tecnologia.
“No Estado, 4,3 milhões de hectares de pastagens estão degradados, área considerada recuperável para fins agrícolas, segundo a Embrapa. No Brasil, esse número chega a 109,7 milhões de hectares de pastagens com algum grau de degradação, de acordo com dados recentes da Embrapa e do Atlas das Pastagens”, conclui.
Um fator fundamental para evitar o desabastecimento é o monitoramento dos níveis dos rios. Em setembro, o Rio Miranda foi o quinto rio de Mato Grosso do Sul a atingir o nível de estiagem, segundo o Boletim Diário divulgado pelo Imasul.
Antes dele, os rios Aquidauana, Pardo e Dourados já estavam em estiagem desde agosto, enquanto o Rio Cuiabá entrou na lista em setembro. O Rio Miranda registrou 123 cm, atingindo exatamente a cota mínima para estiagem.
Outros rios seguem com níveis abaixo do limite de estiagem:
- Aquidauana: 156 cm (cota de estiagem 200 cm);
- Pardo (Fazenda Buriti): 272 cm (cota 303 cm);
- Dourados: 73 cm (cota 112 cm);
- Piquiri/Cuiabá (Pousada Taimã): 244 cm (cota 263 cm).
Por outro lado, alguns rios permanecem dentro da normalidade, como o Rio Paraguai (Porto Esperança): 178 cm; e o Rio Taquari (Coxim): 365 cm.
Aquífero Guarani: um gigante sob os pés de MS
Parte crucial desse sistema é o Aquífero Guarani, um dos maiores reservatórios subterrâneos do mundo. Ele se estende por 1,2 milhão de km² e abrange o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai — cerca de 70% dessa área está no subsolo brasileiro. Em Mato Grosso do Sul, o Aquífero Guarani ocupa 214 mil km², sendo 35,8 mil km² de áreas aflorantes (com acesso mais direto) e 178,2 mil km² confinados sob formações geológicas profundas.
Somente a Sanesul explora 110 poços ligados ao Guarani em cidades como Dourados, Ponta Porã, Sidrolândia, Maracaju, Paranaíba, Rio Brilhante. Assim, ele funciona como um ‘colchão hídrico’ para o abastecimento urbano, especialmente em períodos críticos de estiagem.

Mas o especialista alerta que, apesar do potencial quase inesgotável, aquíferos como o Guarani não são imunes à sobre-exploração nem às mudanças climáticas.
“É fundamental criar políticas para a preservação dessas reservas. Em tempos de mudanças climáticas, a regulação do uso e a proteção das zonas de recarga são estratégicas”, defende o presidente da ONG Ecoa.
O equilíbrio entre retirada e recarga natural é o que garante a sustentabilidade no longo prazo. Segundo Faria, sem planejamento, monitoramento e investimentos em conservação, a segurança hídrica pode ser colocada em risco, principalmente em áreas onde a pressão populacional e industrial é crescente.
Crise no Cerrado e impactos em Mato Grosso do Sul
Apesar do aparente equilíbrio, o Cerrado, maior bioma que cobre Mato Grosso do Sul, vive uma crise hídrica sem precedentes. Ele é a principal fonte de água do Rio Paraguai na porção brasileira, formando o Pantanal, e responde por cerca de 40% da água potável do país. No entanto, o bioma tem perdido o equivalente a pelo menos 30 piscinas olímpicas de água a cada minuto — volume suficiente para abastecer todo o Brasil por três dias e meio.
Os dados fazem parte do relatório ‘Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil’, resultado de 12 meses de investigação conduzida pela Ambiental Media, organização de jornalismo investigativo focada em questões ambientais e socioeconômicas. O levantamento se baseou em informações da ANA e do MapBiomas, considerando vazão, pluviosidade e evapotranspiração potencial para mapear a atual condição do bioma.
O impacto vai muito além do Pantanal. Sem o Cerrado, a seca ameaça oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras e coloca em risco a fauna e flora. Alcides Faria explica que, historicamente, o Cerrado ocupava cerca de 60% do território sul-mato-grossense. Já as áreas originalmente cobertas pela Mata Atlântica foram as primeiras a sofrer com a exploração madeireira, que financiou a ocupação por fazendas de gado.
A partir da década de 1980, a soja e a braquiária se expandiram sobre o Cerrado. Mais recentemente, extensas áreas com solos arenosos em sub-bacias próximas ao Rio Paraná foram ocupadas por plantações de eucalipto.
“Fica claro que o Cerrado é o grande fornecedor de água do Estado. É nele que nascem os cursos d’água que deságuam no Pantanal”, afirma.
Altas temperaturas reforçam uso consciente da água
Em Campo Grande, entretanto, o abastecimento de água não deve sofrer grandes impactos imediatos. Conforme a Águas Guariroba, a cidade conta com um sistema moderno e interligado, que permite monitoramento constante e remanejamento de água entre bairros.
“Os investimentos em produção e infraestrutura garantem eficiência na distribuição e reduzem o risco de desabastecimento, mesmo diante de cenários climáticos adversos.”

Contudo, com a previsão de novas ondas de calor em Mato Grosso do Sul, as companhias de abastecimento alertam que cada litro economizado ajuda a manter a regularidade do fornecimento e a preservar os mananciais que abastecem cidades inteiras.
Por isso, a Sanesul e a Águas Guariroba recomendam que a população adote medidas simples no dia a dia:
- Fechar a torneira ao escovar os dentes ou lavar louças;
- Reduzir o tempo de banho;
- Usar baldes no lugar de mangueiras para lavar calçadas ou veículos;
- Reaproveitar a água da máquina de lavar;
- Preferir regadores para molhar plantas.
Conforme as concessionárias, pequenas mudanças de hábito podem evitar sobrecarga no sistema, sobretudo em períodos de estiagem prolongada. Outra orientação é de que todos os imóveis mantenham caixas d’água instaladas para garantir reserva mínima em caso de manutenções emergenciais.

Riscos de escassez e caminhos para a recuperação

Para Alcides Faria, os principais riscos nos próximos anos são a continuidade dos eventos climáticos extremos, somada ao desmatamento e ao uso inadequado do solo. As secas registradas nos últimos anos, em todas as regiões do Estado, já seriam um sinal claro da gravidade da situação.
A solução, segundo ele, passa pela recuperação dos solos em cada microbacia e das áreas de abastecimento dos aquíferos.
“Muitas iniciativas importantes já estão em andamento, mas precisam ganhar escala. O reflorestamento e a recuperação da vegetação ciliar são fundamentais. Muitos agricultores precisam de apoio técnico para recuperar áreas e avançar rumo a uma produção mais sustentável”, conclui.
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(Revisão: Dáfini Lisboa)