Testemunha da história de Campo Grande, Morada dos Baís definha à espera de solução
O fechamento da Morada reflete o descaso com os patrimônios históricos e o apagamento do legado de Lídia Baís
Lethycia Anjos –
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O desgaste das portas e a ausência dos puxadores são marcas de um local que, há três anos, vive à sombra do abandono. Como parte intrínseca da história de Campo Grande, o fechamento da Morada do Baís, reflete não só o descaso aos patrimônios históricos da cidade, mas o apagamento da memória e legado de Lídia Baís, uma das mais importantes artistas nascidas na Capital.
Passados três anos do fim da parceria entre o Sesc Cultura e a prefeitura de Campo Grande, em 2021, o icônico casarão amarelo da Avenida Afonso Pena, que por mais de um século resiste às transformações da cidade, se tornou mais um dos inúmeros pontos turísticos e culturais que caíram em desuso na Capital.
“Infelizmente a pandemia da Covid-19 trouxe consigo alguns obstáculos, principalmente no que concerne à realização de eventos destinados à participação do público, impossibilitando o desenvolvimento das ações de cultura propostas para a Morada dos Baís”, dizia a nota publicada em 2021.
106 anos de Morada
Fundada em 1918 pelo primeiro intendente (prefeito) de Campo Grande, Bernardo Franco Baís, a Morada nasceu marcando um importante capítulo na história da cidade, sendo o segundo sobrado do contexto urbano e o primeiro construído em alvenaria.
Além de sua importância arquitetônica, a Morada também foi o epicentro da cultura de Campo Grande. Foi lá que residiu Lídia Baís, pintora, compositora e escritora que, com sua visão artística audaciosa, confrontou o conservadorismo arraigado na cidade, mas que ainda ecoa nos dias atuais.
Em 1938, Bernardo Baís, que sofria de problemas de audição, morreu após ser atropelado por uma locomotiva da Noroeste do Brasil, ferrovia que ajudou a construir. Com a morte do patriarca, o prédio foi então alugado a Nominando Pimentel, que estabeleceu ali a Pensão Pimentel.
A pensão operou no local, com diferentes proprietários, até 1979. Anos antes, em 1974, um incêndio de grandes proporções devastou o prédio, destruindo toda a estrutura de madeira do telhado, bem como as telhas de ardósia e os pisos.
Ao longo de seus 106 anos de história, o edifício passou por inúmeras transformações, servindo a diversos propósitos, como uma sapataria, escola de rádio e televisão, casa lotérica e alfaiataria, antes de cair em um período de abandono e depredação.
Em 4 de julho de 1986, o casarão foi oficialmente tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural de Campo Grande, pelo Decreto n° 5390, durante a gestão do Prefeito Juvêncio César da Fonseca.
Marco arquitetônico
João Henrique dos Santos, superintendente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em Mato Grosso do Sul, descreve o casarão como um marco arquitetônico e urbanístico da cidade.
Para ele, a importância da Morada para Campo Grande é indiscutível e, assim como os demais imóveis de valor cultural, deve estar acessível ao público.
“É inegável a importância da edificação para Campo Grande, pois se trata de um belo exemplar de arquitetura do início do século XX, além de ser o que se demonstra pelo seu tombamento ao nível municipal”, ressalta.
Santos explica que, embora o edifício não esteja tombado pelo Iphan, está situado dentro dos limites da área de entorno do Complexo Ferroviário de Campo Grande.
“No momento não há nenhum projeto do Iphan/MS para a edificação. O que eu sei, via notícias, é que a prefeitura municipal, por meio da Sectur, irá reinaugurar o espaço para atividades culturais e que a medida já está em processo”, disse.
‘Por minha causa vocês vão ficar na história’
‘Por minha causa vocês vão ficar na história’, a provocadora frase dita por Lídia Baís transcendeu suas experiências mediúnicas e decretou o que, um dia, se tornaria uma verdade incontestável. Se hoje a Morada é um marco cultural, isso se deve à ousadia e ao pioneirismo de Lídia.
Nascida em Campo Grande, no dia 22 de abril de 1900, em uma das famílias mais abastadas da cidade, Lídia iniciou sua jornada artística em 1926, quando se mudou para o Rio de Janeiro para estudar pintura com Henrique Bernardelli.
No ano seguinte, embarcou para a Europa, percorrendo cidades como Paris e Berlim, onde teve contato com diversos artistas, como o também pintor Ismael Nery. Em 1929, realizou sua única exposição individual, na Policlínica Geral do Rio de Janeiro.
Artista à frente de seu tempo
Com uma trajetória marcada por contradições, Lídia foi considerada uma artista à frente de seu tempo. Suas obras, que exploravam as nuances entre o sagrado e o profano, causaram grande desconforto na sociedade conservadora da época.
Afinal, quem teria tamanha ousadia de retratar a si mesma ao lado de Jesus em uma recriação da Santa Ceia?
Tida como ‘louca’ tanto por sua arte quanto por seus relatos mediúnicos, Lídia foi internada em uma clínica psiquiátrica pela família. No entanto, Bernardo Franco Baís ofereceu à artista a possibilidade de deixar a clínica se ela se casasse. Lídia, então, casou-se com o advogado Ary Ferreira Vasconcelos, apenas para se divorciar cinco dias depois.
Em 1950, Lídia fundou o Museu Baís em Campo Grande – embora este não tenha chegado a ser aberto ao público. Anos mais tarde, entrou para a Ordem Terceira de São Francisco de Assis, adotando o nome de Irmã Trindade. A partir daí, dedicou-se aos estudos religiosos e filosóficos. Em 1960, publicou o livro “História de T. Lídia Baís”, sob o pseudônimo de Maria Tereza Trindade.
Portas fechadas
As portas fechadas guardam a imaginação de quem passa pelo local, mas nunca teve a oportunidade de conhecê-lo por dentro. Pelas frestas, a servente de limpeza Mariane Vieira, de 59 anos, tenta descobrir o que está por trás das enormes portas do casarão.
“Gosto muito de prédios antigos e sempre estou tirando fotos. Nunca tive a oportunidade de conhecer por dentro, mas fico imaginando como deve ser. Se reabrisse, com certeza visitaria”, diz.
Quem visitou a Morada na época em que o museu estava aberto, certamente, recordará da viagem no tempo proporcionada pelo contato com os objetos e obras da família. No entanto, todo o acervo foi retirado do local enquanto o mesmo permanece de portas fechadas. Lá, as únicas obras de arte que permaneceram ‘em casa’ foram as pinturas nas paredes feitas por Lídia.
Com o prédio fechado, o que restou a Mariane foram as fotos tiradas da fachada e a expectava de um dia encontrá-lo de portas abertas. Além disso, como o local abrigava todo o acervo da família Baís, seu fechamento resultou na transferência das peças para outros locais.
Atualmente, mais de 100 obras de Lídia Baís e 90 objetos tombados estão salvaguardados na Reserva Técnica do Marco (Museu de Arte Contemporânea de MS).
Promessa de reabertura
No início de março, a inclusão da Morada dos Baís na programação cultural da Semana do Artesão 2024 reascendeu a esperança de ver o casarão de portas abertas outra vez.
Questionada sobre os planos para o local, a Sectur (Secretaria Municipal de Cultura e Turismo) afirmou que o casarão está temporariamente fechado. Contudo, a edificação segue com seu anexo acessível para visitação e comercialização do artesanato local.
Apesar de não ter uma data definida para a reabertura, a Sectur informou que o local passou por vistoria e que a Sisep (Secretaria de Infraestrutura e Serviços Públicos) está elaborando o projeto de reforma pontual do casarão.
Mesmo com a estrutura fechada, turistas ainda podem visitar a parte externa do prédio para adquirir artes regionais: desde o ano passado, a loja anexa, que anteriormente abrigava a Casa do Artesão é lar daqueles que comercializavam seus artesanatos na Praça dos Imigrantes, enquanto o local passa por reformas.
“Quando a Casa do Artesão retornou as suas atividades para o antigo prédio, a Praça dos Imigrantes foi realocada para a Morada dos Baís. O casarão está temporariamente fechado. Contudo, o anexo segue acessível para visitação e comercialização do artesanato local”, esclareceu a Sectur.
Sem visitação, artesãos amargam prejuízos
Apesar da loja de artesanato estar aberta, o fechamento da Morada acaba distanciando os turistas, o que, por consequência, impacta as vendas para os artesãos.
A artesã Angelina está no local desde setembro e ressalta que a procura pelos produtos segue bem abaixo do esperado. Segundo ela, a possível reabertura da Morada traria oportunidade de impulsionar as vendas.
“Viemos da Praça dos Imigrantes, onde mais de 20 artesãos ficavam nos quiosques da praça. Lá, cada um tinha seu espaço. Sentimos falta. Aqui o movimento é mais fraco, fica escondido. Este mês está bem parado”, explica a artesã.
Segundo Angelina, é comum que turistas desavisados cheguem até a loja para pedir informações sobre a Morada.
“Muitas pessoas de fora da cidade perguntam se está aberto para visitação. Se estivesse, as pessoas iriam lá e depois poderiam passar aqui na loja para comprar uma lembrança”, conclui.
Portas e janelas completamente fechadas no local (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)
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