Seis meses após o incêndio na Favela do Mandela, na região Norte de Campo Grande, as primeiras casas construídas para abrigar famílias entram em fase final. Ao todo, 126 famílias aguardam as chaves e anseiam pela realização do sonho de ter lugar digno para morar.

Mas nem tudo são flores: quem segue morando na comunidade atingida pelas chamas permanece a viver em meio à miséria e experimenta sensação de esquecimento durante essa espera: os dias passam em meio a fossas abertas e à falta de alimentos, roupas e remédios.

Na prática, após o incêndio – apesar da expectativa de terem casa -, a vida piorou para quem segue no Mandela. Isso porque as doações já não chegam como antes. Frio e as viroses da estação acometeram especialmente as crianças. As fossas dos barracos consumidos pelas chamas não foram fechadas corretamente, oferecendo risco à saúde de todos.

“Aqui dentro da comunidade nossas crianças vivem doentes, com broncoespasmo, ficam cheias de feridinha. Há contaminação na terra que já foi confirmada pelas universidades, não tem remédio no posto. Parece que todos os moradores foram incendiados”, afirma Greiciele Naiara, representante do Mandela que vive na comunidade há sete anos com suas três crianças.

Lixos jogados no meio da comunidade (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

A vida segue e resiste no Mandela

Dentre os 187 barracos que existiam na comunidade antes do incêndio, 61 foram atingidos pelo fogo. Ou seja: 61 famílias precisaram da noite para o dia encontrar um novo abrigo. As 126 famílias que ficaram não tiveram seus barracos queimados, mas sentem na pele, no estômago e na mente as ausências de viver em uma comunidade esquecida.

“Nós que estamos aqui não tivemos nenhum dano, em questão de perda [pelo fogo]. Mas, estamos tendo um pouquinho de dificuldade na questão de ajuda. As doações diminuíram bastante, parece que a comunidade não existe mais. Nós trabalhamos? Trabalhamos, mas a maioria ganha um salário mínimo, e hoje com um salário mínimo você não vive”, relata Greiciele.

Greiciele é uma entre as sete mulheres líderes da Comunidade Mandela (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

Ela afirma que mesmo sem os gastos de luz, água e aluguel, o preço de viver nessas condições é caro, pois as dificuldades não se limitam à questão financeira. A sujeira no local – há locais cobertos com lixos de todos os tipos, como pedaços de ventiladores, garrafas plásticas, telhas, sapatos e até pia e colchão – é cenário ideal para proliferação de muitas doenças.

Entramos na comunidade por meio da viela ao lado do Bar Pininho, construído com tábuas de madeira – algumas já pintadas e grafitadas. Na parede lateral, é possível ler “Comunidade Mandela” em letras grandes e coloridas. Um vira-lata caramelo tomava sol na calçada e pareceu não se incomodar com a nossa presença. Seguimos.

Greiciele nos conduziu comunidade adentro e nos mostrou onde ficavam os barracos que pegaram fogo, local hoje repleto de terra, lixos, galhos caídos e mato. Histórias que aconteciam diariamente na entrada, saída e permanência das pessoas em seus barracos agora se reduzem à areia. Até as cinzas já foram embora. Poucas árvores queimadas ainda permanecem no local, algumas, mesmo mortas, seguem em pé.

Ainda há vestígios do fogo na Comunidade Mandela (Ana Laura Menegat / Midiamax)

Doenças

As doenças chegaram até o barraco de Maria Elizia, moradora de 77 anos conhecida como “Avó”. Ela é mãe de quatro, avó de 16 e bisavó de seis, e sempre há uma de suas crianças gripada ou com febre.

“Olha o tanto de crianças, tanto de gente que tem aqui, nós somos seres humanos. Na verdade, eles tratam a gente como nada. Porque nós aqui com a nossa família, porque nós não temos para onde ir. Se nós tivéssemos como pagar um aluguel, uma casa, nós não ia para a favela. Eu pelo menos não vinha. Eu sei o que eu passo aqui. Lá dentro tem dois ventiladores ligados e tem uma criança com febre”.

Maria Elizia sonha com uma vida digna (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

Maria Elizia recebeu a equipe do Jornal Midiamax em seu barraco. Conversamos na varanda enquanto uma criança dormia no único quarto da casa e poucos pedaços de carne assavam na grelha ao nosso lado.

Era um dia quase bom. Ao contar sua história e mostrar suas feridas – da pele e do coração – Maria Elizia chorou. Pediu desculpas por chorar, mas agradeceu por ser ouvida. Ela disse que precisava desabafar.

“É muito grande essa dor, mas a dor na mente tá mais triste, porque eles que causaram isso pra mim. São eles que causaram essa dor pra nós”.

Ao falar “eles”, Maria Elizia se refere ao poder público. Ao ser perguntada sobre a fossa, ela desabafa sobre o descaso “deles” em relação ao Mandela. “Eles colocaram aquela terra ali como se fosse fazer algum benefício para nós. A gente pensou que eles iam esparramar aquela terra para tapar as fossas. As fossas que eles desmontaram já estão todas abertas. Do jeito que passou o fogo, ficou, e nós pensamos que eles iam tampar”.

O Jornal Midiamax entrou em contato com a Prefeitura de Campo Grande em busca de respostas. “A Sisep (Secretaria Municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos) informa que participou da ação emergencial durante e após o incêndio que atingiu as moradias da comunidade do Mandela, fazendo a limpeza e as curvas de nível para evitar o alagamento da área. Quanto às fossas, a Secretaria não foi informada do problema, mas está à disposição para as ações necessárias para sua solução”.

A Prefeitura também foi questionada sobre o suporte dado à comunidade no momento atual. A SAS (Secretaria de Assistência Social) informa que “as famílias da comunidade que necessitem de algum benefício eventual, como cobertores ou cestas básicas podem procurar o CRAS Estrela do Sul, que atende a região.

A pasta também destacou que a assistente social da unidade realiza busca ativa na região para detectar as necessidades dos moradores, “porém os moradores também podem se dirigir direto ao CRAS para realizar o Cadastro Único e solicitar algum benefício”, conclui a nota.

Fossa superficialmente coberta com terra colabora para a proliferação de doenças (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

Esperança em novas casas

As unidades habitacionais para a população do Mandela estão sendo construídas em cinco locais da cidade, sendo eles os bairros José Tavares, Jardim Talismã, Iguatemi 1, Iguatemi 2 e Oscar Salazar. O diretor-presidente da Emha (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários), Claudio Marques, afirma que o prazo para a entrega das unidades é dezembro deste ano.

Dentre os locais de obras, as áreas do Jardim Talismã e do José Tavares são as mais avançadas, com as casas em fase de acabamento e pintura.

“Conforme as unidades vão ficando prontas as famílias já vão entrando, não precisa esperar todo o empreendimento ficar pronto. Então a gente vai fazendo as entregas pontualmente conforme vai ficando pronta”, afirma Cláudio. 

As casas nos bairros José Tavares e Jardim Talismã estão em fase de acabamento e pintura (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

O presidente do José Tavares, Evanildo da Silva deseja boas-vindas aos futuros-novos moradores e cobra da prefeitura mais do que moradia, também espaços de lazer e esporte. “Sobre o pessoal do Mandela, que sejam bem-vindos, são novos vizinhos, e com certeza são pessoas trabalhadoras também”.

“Essa área onde estão construindo as casas são 23 mil metros quadrados, a gente tinha um campo de futebol, reduziu o nosso campo, agora a gente tem contrapartida do poder público também. Além das residências, tem que pensar também no lazer, na estrutura, na infraestrutura do bairro. Eu acho que é por aí que a gente começa a melhorar, porque a educação começa dentro de uma comunidade”, demanda Evanildo.

Liderança da comunidade, Greiciele se sente animada e esperançosa com a chegada das casas. “A sensação é de vitória, de agradecimento, de muita alegria, porque agora nós vamos ter lares dignos, uma casa própria para colocar nossos filhos, nossos filhos trazerem os amiguinhos deles em casa sem ter vergonha. Valeu a pena tudo que nós passamos aqui dentro da comunidade, pra hoje a gente tá realizando o nosso sonho de ter uma casa. Porque você tendo uma casa própria, você tem tudo”.

Barraco de Maria Elizia (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

A “Avó” da comunidade, Maria Elizia, sonha em ter seu lar cheio de comida para suas crianças cresceram felizes e saudáveis. “Meu sonho é ter a minha casa. Meu sonho é conseguir fazer pelo menos uma varanda grande, e a gente não pagar a nossa casa”.

Greiciele espera que a ajuda volte a chegar ao Mandela. “Seja com a roupa, seja com o móvel, seja com leite, seja com arroz, um pacote de feijão, que a gente vai ajuntando e vamos ali montando kits e ajudando essas famílias enquanto estão aqui. Porque nós sabemos que quando nós sair daqui não terá mais doação, mas enquanto nós estiver aqui, eu acredito que essa união que eles tiveram na época do incêndio, seria muito bom ainda persistir e ajudar a nossa comunidade nessa questão”.

Para doar

Doações de alimentos, roupas, cobertores e móveis podem ser entregues no Centro Comunitário do Mandela. Localizado na Rua Elmiria Ferreira de Lima, 147. O contato telefônico com a comunidade é possível por meio do número de Greiciele: (67) 99346-7696.

Confira a matéria audiovisual: