Ondas de calor completam aniversário, afetam todos os setores e devem ser mais frequentes em MS

Entre outubro de 2023 e junho de 2024, todas as médias de temperatura máxima registraram valores acima da média histórica em MS

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar
horário de verão
Céu com sol intenso (Foto: Marcos Erminio, Midiamax).

Em setembro de 2023 fomos apresentados para uma nova expressão climática: onda de calor. Em um ano, o fenômeno passou de novidade para ‘velho conhecido’ dos sul-mato-grossenses. Já são 12 meses consecutivos vivenciando ondas de calor e com o clima impactando cada vez mais a rotina. Além do calor até 5°C acima da média, a rotina agora inclui umidade relativa do ar desértica e fumaça de incêndios florestais.

Os impactos desse novo clima são vastos e atingem desde a saúde humana até a produção agrícola. Para sobrevivermos às condições climáticas atuais, precisamos sobrecarregar serviços essenciais, como energia e água. As consequências chegam, no corpo, no bolso e na mesa.

Nesta semana, o Jornal Midiamax apresenta uma série de reportagens especiais sobre o clima. Neste primeiro conteúdo da série, vamos contextualizar o que são as ondas de calor e suas consequências mais imediatas, como ‘boom’ no consumo de energia e água, além de problemas na produção de alimentos.

O que é onda de calor

De acordo com o meteorologista Vinicius Sperling, do Cemtec (Centro de Monitoramento do Tempo e do Clima de Mato Grosso do Sul), não existe consenso na comunidade científica sobre a definição de onda de calor. No entanto, dentre as definições mais utilizadas, destaca-se o limiar 5.

Limiar 5 é quando as temperaturas ficam ao menos 5°C acima da média e por um período de, no mínimo, 5 dias, atingindo uma ampla área. 

Como se forma uma onda de calor

Quando há bloqueio atmosférico, aliado a uma intensa massa de ar quente e seca, a entrada de frentes frias e outros sistemas meteorológicos acaba impedida. 

“Essa massa de ar quente e seca facilita a entrada dos raios solares, pois, na ausência de nuvens e chuvas, os raios solares atravessam a atmosfera com mais facilidade. Assim, as temperaturas tendem a ficar mais elevadas”, detalha o meteorologista.

Com maior incidência da radiação solar, a umidade relativa do ar tende a ficar muito baixa, o que também gera consequências.

“As temperaturas mais elevadas também tendem a acelerar o processo de evapotranspiração das plantas e evaporação das superfícies de água, acentuando a seca tanto meteorológica (da atmosfera), quanto a seca hidrológica, de rios, lagos, etc.”, amplia o especialista. 

Mas por que as ondas de calor ficaram mais frequentes em Mato Grosso do Sul e no Brasil?

O meteorologista explica que, em geral, as ondas de calor se tornaram mais frequentes a partir de 2023 devido à influência de um fenômeno natural, o El Niño, que foi muito forte. 

“Geralmente, episódios de El Niño forte ou muito forte tendem a deixar as temperaturas globais mais altas que o normal. Além dessa condição climática natural, as massas de ar quente e seca, aliadas a bloqueios atmosféricos, foram mais frequentes, o que favoreceu a formação de ondas de calor em MS”, descreve Sperling.

Mas os motivos não param aqui. Para ele, as mudanças climáticas também são um fator. “As mudanças climáticas estão tendendo a deixar os períodos secos cada vez mais prolongados”, explica.

As mudanças climáticas

Segundo ele, períodos secos cada vez mais longos facilitam muito a formação de ondas de calor devido à ausência de nuvens e chuvas durante esses períodos. Projeções dos modelos climáticos já indicavam isso no passado e, hoje, esses sinais são percebidos na prática.

“Agora, por exemplo, não estamos em momento de El Niño, mas a seca prolongada e as massas de ar quente e seco favorecem a formação dessas ondas de calor, mesmo que não estejamos em El Niño, pois estamos em épocas de mudanças climáticas”, detalha o meteorologista.

Ou seja, mesmo sem atuação de El Niño, estamos tendo ondas de calor.

Calor recorde

Entre outubro de 2023 e junho de 2024, todas as medições de temperatura máxima média mensal do estado registraram valores acima da média histórica.

Isso significa que o calor foi muito acima da média histórica durante todo esse período. As temperaturas mínimas também seguiram a tendência de alta, segundo o Cemtec.

Junho de 2024 foi particularmente crítico porque não registrou nenhuma chuva e se destacou pela presença de massas de ar quente e seco.

Essa realidade se repetiu por todo o Brasil. Conforme o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), foram 9 ondas de calor no país no decorrer de 2023. Já em 2024, até o momento, foram 7 ondas de calor. Em resumo, foram contabilizadas 16 ondas de calor no Brasil entre 2023 e 2024.

No mundo como um todo a realidade é catastrófica. Sperling pontua que, segundo a OMM (Organização Meteorológica Mundial), o ano de 2023 é considerado o mais quente da série histórica no mundo, inclusive no Brasil, de acordo como Inmet.

“Mas, no ritmo atual, 2024 pode ser o ano mais quente na história do mundo”, completa o meteorologista.

Tentamos obter o número exato de ondas de calor entre agosto de 2023 e setembro de 2024 em Mato Grosso do Sul, mas não foi possível. Para isso, o Cemtec precisaria realizar uma análise mês a mês, município a município, o que não seria possível até o fechamento desta matéria.

A situação também expõe a fragilidade das estruturas de análise meteorológica que dispomos no estado. Em tempos de mudanças climáticas, investimentos em força de trabalho, tecnologias e ampliação e capacidade técnica já é questão de gerenciamento de perdas e preservação da vida.

Realidade de Mato Grosso do Sul

No entanto, quando os dados são analisados por uma perspectiva macro, mas considerando apenas Mato Grosso do Sul, nota-se que o estado teve, desde setembro de 2023 até agosto de 2024, praticamente todos os meses com temperaturas acima da média.

Não se tratam de ondas de calor todos os meses, mas de temperatura acima da média, acima do comum, todos os meses durante praticamente 1 ano.

Céu de Campo Grande (Foto: Ana Laura Menegat, Midiamax).

“Isso traz impactos, tanto para a população, quanto para a produção agropecuária do estado, e isso é mais importante que a classificação em si da onda de calor”, destaca o meteorologista.

Ele detalha que outubro de 2023 tenha sido talvez um dos piores da história para o estado, com destaque para o Pantanal, que teve temperaturas de 3,5 a 4,0°C acima da média no mês todo. 

Ou seja, apesar desses números não determinarem onda de calor, apontam o quanto o mês foi mais quente que o normal. 

Não à toa, como consequência, Mato Grosso do Sul atingiu recorde de consumo de energia elétrica no final de setembro do ano passado, com os índices mais altos já computados pela companhia até então.

Somente com a diferença da elevação no consumo registrado entre os dias 25 e 26 de agosto de 2023, a concessionária de energia seria capaz de abastecer toda a cidade de Dourados por mais de um dia. 

A onda de calor que atingiu o estado na época fez o uso de energia elétrica atingir a marca de 1.403 watts por hora no dia 26 de agosto de 2023.

Dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica mostram que nos últimos meses de 2023 o consumo de energia elétrica subiu mais de 20%, na comparação com 2022. Setembro, outubro e novembro tiveram aumentos de 20%, 26% e 25%, respectivamente, no consumo de energia por residências e pequenos negócios, como o Midiamax também noticiou.

Incêndios como consequência

Esse calor e a baixa umidade do ar também representam cenário ideal para a ocorrência de queimadas, tanto florestais, como urbanas.

Incêndios, fumaça e destruição em Corumbá (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax).

No meio ambiente, o calorão favorece o aquecimento de materiais orgânicos em decomposição, que podem aumentar ainda mais de temperatura à medida que bactérias e microrganismos liberam calor ao se decomporem.

Se o calor não puder ser liberado de maneira adequada, a temperatura pode subir até o ponto de combustão. Agora, se a chama for iniciada de maneira intencional, como no caso de incêndios criminosos, esse ambiente é ainda mais favorável para o alastramento devastador do fogo.

Em entrevista em rede nacional no último dia 11 de setembro, o governador de Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, discorreu sobre a severidade dos incêndios que assolam o estado e, principalmente, o Pantanal de MS. 

Áreas do Pantanal viram cemitério a céu aberto após incêndios. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax).

“Neste ano, o número de focos de incêndio é 50% maior que o de 2020. Se as condições continuarem as mesmas, podemos chegar à extensão de destruição registrada em 2020”, afirmou.

Para se ter ideia da destruição, naquele ano foram registrados 4.790 focos de incêndio no bioma. Já em 2024, já foram contabilizados 6.700 focos.

Segundo o governador, as condições climáticas de 2024 são piores que o cenário observado em 2020, quando a maior planície alagável do mundo ganhou atenção mundial diante dos incêndios. 

O problema da escassez de chuva

Sol e fumaça na capital (Foto: Ana Laura Menegat, Midiamax).

Tudo isso se agrava ainda mais quando analisados os índices de precipitações acumuladas mês a mês no estado, que revelam situação preocupante em relação à escassez hídrica. 

De acordo com o Cemtec, em outubro de 2023 choveu apenas 15,4 mm, muito abaixo dos 150,6 mm esperados. Ou seja, choveu apenas 10% do que devia ter chovido em outubro, mês que, inclusive, é fundamental para a agricultura de Mato Grosso do Sul, sendo o principal para o período de plantio da maior safra do estado, que é a de soja.

Janeiro e março de 2024 também foram marcados por precipitações significativamente abaixo da média, com janeiro registrando apenas 93,2 mm comparado aos 225,4 mm esperados, um déficit de 135,2%.

Esses períodos se destacam de maneira especial por se tratar do período que deveria ser, na prática, o mais chuvoso do ano. Mas não foi o que aconteceu de outubro do ano passado para cá.

Ampliando a comparação, entre outubro de 2023 e junho de 2024, Campo Grande acumulou apenas 710,6 mm de chuva, cerca de 55% do esperado, segundo dados climatológicos do Inmet. 

Isso representa uma escassez de aproximadamente 45%, ou 585,9 mm a menos do que o esperado.

Impacto no consumo de água

A falta de chuvas e o calorão também geram pressão sobre o abastecimento de água. Neste ano, segundo a concessionária Águas Guariroba, foram captados 8.636.626 m³ de água em julho, e 8.860.452 m³ de água em agosto. 

As captações são realizadas nos córregos Guariroba, Lageado, além de poços e super poços. 

Quando esses números são comparados com 2023, em julho do ano passado foram captados 8.212.256 m³ de água, e 8.355.314 m³ de água em agosto. Isso indica aumento de 424.370 m³ na comparação de um mês de julho para o outro, e de 505.138 m³ de um mês de agosto para o outro.

Para se ter ideia do que significa esse aumento de captação para dar conta da demanda, vamos tomar como exemplo o bairro Los Angeles, em Campo Grande. Nesse bairro, o consumo médio é de 100 mil m³ de água.

Ao considerarmos o aumento de 505.138 m³ de água captador de agosto de 2023 para o mesmo mês de 2024 esse aumento equivaleria a 5 meses de consumo do bairro Los Angeles.

Impacto nos alimentos

No entanto, o aumento na demanda de água não vem apenas dos domicílios. A produção de alimentos também sofre consequências do calor extremo e da falta de chuvas. 

As altas temperaturas no cultivo de hortaliças e frutas, por exemplo, podem gerar problemas e até mesmo perdas, especialmente nas culturas mais sensíveis a variações bruscas de temperatura, como é o caso das folhosas. 

As perdas por causa das altas temperaturas já atingem cerca de 40% da produção. Em uma horta hidropônica no bairro Aero Rancho, o produtor Laércio de Souza contou ao Midiamax que a alta temperatura da água desenvolve um fungo na raiz das hortaliças, causando prejuízos.

O agrônomo Dorly Pavei, do Senar/MS (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural de MS), explica que é comum, nessas condições, que as plantas sofram estresse térmico.

“Alface, rúcula e agrião, por exemplo, são plantas bastante delicadas e têm seu desenvolvimento prejudicado com temperaturas elevadas. Nessas condições, as plantas tendem a sofrer estresse térmico, o que resulta em atrasos no crescimento e, muitas vezes, compromete a qualidade do produto final”, detalha o especialista.

Técnicas para driblar perdas

Cultivo protegido (Foto: Divulgação Famasul).

Coordenador da ATeG (Assistência Técnica e Gerencial) em Horticultura e Fruticultura, Dorly explica que é possível minimizar esses prejuízos.

Uma das medidas sugeridas é a adoção do cultivo protegido, que ameniza os impactos da variação térmica, criando um ambiente com condições ideais para o desenvolvimento das culturas. 

“Há uma melhoria na qualidade dos produtos e diminuição das perdas de até 30% em relação ao método convencional”, explica.

A tecnologia gera economia de água e insumos; controle do ambiente, que permite a produção de diversas culturas em diferentes regiões e épocas do ano; proteção contra a chuva, granizo e geadas, controle do vento e da radiação solar; melhor condição de trabalho para os funcionários, além da possibilidade de produzir e comercializar produtos diferenciados.

Além dessa opção, o uso de sistemas de irrigação ajustados à demanda hídrica também contribui com a manutenção da produtividade e do controle sobre as condições de cultivo.

Essa opção, inclusive, é usada por grandes produtores rurais. Nos últimos 10 anos, na agricultura de Mato Grosso do Sul, a área irrigada aumentou significativamente, crescendo 63% entre 2015 e 2024, saltando de 196 mil para mais de 320 mil hectares, de acordo com a Famasul.

Desse total, excluindo áreas fertirrigadas, cerca de 115 mil hectares estão equipados para irrigação. O arroz ocupa 9,5% da área irrigada, a cana-de-açúcar 9,1%, culturas anuais em pivôs centrais 73%, e outras culturas e sistemas 8,4%.

Potencial a ser explorado

Segundo a ANA (Agência Nacional de Águas), embora a expansão da utilização de irrigação na agricultura aumente o uso da água, o recurso promove diversos benefícios, como a otimização do uso do solo e de insumos (máquinas, implementos, mão-de-obra etc.), assim como aumento e a regularidade na oferta de produtos agrícolas, o estímulo à implantação de agroindústrias e a minimização de riscos meteorológicos e climáticos. 

Atualmente, 6,95 milhões de hectares do Brasil estão equipados para irrigação, fazendo com que o país esteja entre os 10 países com maior área equipada para irrigação do mundo, conforme a ANA.

No entanto, ainda segundo o órgão, a irrigação ainda é pequena frente ao potencial estimado do país, que pode expandir mais 45% até 2030, atingindo 10 milhões de hectares.

Apesar do otimismo, a realidade ainda é de perdas crescentes nas lavouras devido à ocorrência frequente de ondas de calor e temperaturas médias acima do normal.

Perdas na agricultura e prejuízo no agro

É isso que aconteceu na safra de soja 2023/2024 de Mato Grosso do Sul, a última. Em setembro de 2023 o ciclo começou com uma projeção otimista, com a Famasul (Federação de Agricultura e Pecuária de MS) estimando aumento de 6,5% na safra em relação à produção anterior (2022/2023).

A produtividade esperada era de 54 sacas por hectare e a produção era de 13,818 milhões de toneladas. No entanto, nenhum desses números se confirmaram. Segundo a Circular nº 560 da Casa Rural, a retração da produção foi de 8% após o estado alcançar produção de 12,347 milhões de toneladas de soja e produtividade de 48,84 sacas por hectare.

Queda nas vendas

A soja em grão é o principal produto exportado por Mato Grosso do Sul. O resultado das vendas dessa commodity entre janeiro e agosto de 2023 foi de US$ 3.245 bilhões, com 6,283 milhões de toneladas exportadas. Nesse período, os resultados da safra de soja tinham sido muito bons, rendendo ótimas negociações ao estado.

No entanto, no mesmo período de 2024, o resultado foi 20,85% menor, já que MS vendeu US$ 2.568 bilhões, com 5,915 milhões de toneladas exportadas.

Tudo isso foi resultado dos prejuízos climáticos. O efeito é cascata: com perdas no campo, se vende menos soja e, assim, entra menos dinheiro para ‘o bolso’ do Estado e de grandes produtores, reduzindo o dinheiro que circula em MS.

Segundo a Famasul, a produtividade média da safra de soja de Mato Grosso do Sul, alcançada nesta temporada que encerrou no início do ano, foi uma das menores dos últimos 10 anos.

“Este resultado foi influenciado principalmente por condições climáticas adversas, como altas temperaturas e déficit hídrico que afetaram grande parte do estado”, registrou a entidade na Circular.

Esse tipo de prejuízo deverá se repetir agora, no final de setembro de 2024, no encerramento da 2ª safra de milho. No início do ciclo, projetava-se produção de 11,485 milhões de toneladas do grão e produtividade de 86,3 sacas por hectare.

No entanto, em julho, diante das condições climáticas e da realidade observada no campo, os números precisaram ser atualizados. Assim, a Federação reduziu a projeção em 19%, para uma produção de 9,285 milhões e toneladas e produtividade de 69,77 sacas por hectare.

Os números consolidados da 2ª safra de milho serão divulgados nos próximos dias pela entidade.

Confira como ficou a produção das safras de soja e milho em Mato Grosso do Sul no ciclo 2023/2024.

(Imagem: Midiamax)



Conteúdos relacionados