Sentimento de liberdade, expansão dos sentidos e a ‘viagem’ que intensifica sensações. Foi com toda essa propaganda positiva que Juliano de Freitas* decidiu experimentar ecstasy pela primeira vez, doze anos atrás em uma balada de Campo Grande. O comprimido colorido, que mais parecia um remédio, fez corpo e mente flutuar e até ajudou no entrosamento social. 

MAS, CALMA

Antes de a gente contar a história do nosso entrevistado é preciso esclarecer algo importante. A realidade do uso de drogas não é colorida e feliz assim, na verdade, a viagem que leva a mente às alturas é igualmente proporcional à agressividade da queda, que pode destruir emocional, financeiro e tudo que estiver ao redor.

Por mais forte e consciente que você julgue ser, quando o assunto é droga, a dependência não diz respeito apenas a você, mas também ao poder altamente viciante dela. Por isso, a dica de ouro sempre será: não experimente! E isso não é uma especulação.

Especialista em dependência química, o médico psiquiatra Marcos Estevão aponta os riscos do uso de drogas por recreação, prática que se popularizou nas baladas de Campo Grande e tem atraído público cada vez mais jovem. “Existe uma linha muito tênue entre a dependência química e o chamado uso recreativo, que muitos jovens fazem nas baladas. A dependência chega, a qualquer momento ela pode chegar”, alerta.

E sabe o ditado que diz que uma droga é porta de entrada para outra? De acordo com o especialista, ele é comprovado na prática e tem justificativa científica. “Nós temos um mecanismo de recompensa cerebral que precisa cada vez mais da ativação da droga usada. Então, as pessoas acabam tendo a necessidade de buscar outros tipos de drogas e saem de uma para outra com muita facilidade”, explica.

As ‘balas’ são algumas das drogas que circulam nas baladas da Capital (Foto: Reprodução, ChromaTox)

Apenas por diversão

Esclarecidos esses pontos, vamos voltar à história do Juliano. Há 12 anos, quando experimentou ecstasy pela primeira vez, ele até resistiu por um tempo, mas com a droga “rolando solta”, inclusive entre amigos, decidiu ceder às repetidas ofertas.

“Via muitas pessoas usando e tinha medo, mas um dia um amigo trouxe e acabei experimentando”, relata. 

Hoje, ele descarta ser adicto – termo associado a pessoas que consomem álcool e drogas de maneira abusiva – e se define como usuário recreativo. “Coloquei na cabeça que vou usar apenas nos rolês, quando tem música, pessoas e diversão. Meu uso é recreativo, nunca vou usar em casa vendo um filme ou para ter disposição, como já vi algumas pessoas fazerem”, garante. 

Embora não se veja como dependente químico, Juliano admite que após a experiência com o ecstasy se sentiu mais tranquilo para experimentar outras drogas. “Disseram que key [ketamina] prolongava o efeito do ecstasy e acabei usando para conhecer o efeito, depois veio a cocaína. Hoje são as três drogas que uso quando vou para a balada”, pontua. 

Entre os amigos próximos, o rapaz tem exemplos de quem começou assim como ele, mas perdeu o controle com o passar do tempo. “Eles passaram a consumir todos os dias e chegaram ao extremo de se endividar, perder carro, casa e família. Percebo que pelo menos 10% chegam a esse ponto de não conseguir mais se controlar”, acrescenta. 

Fácil de encontrar

Baladeiro de carteirinha, nosso entrevistado conta que preferencialmente frequenta boates de música eletrônica, pop e funk. Nos diferentes ambientes, avalia que o acesso às drogas é fácil e com variedades que atendem todos os gostos e bolsos.

“Há 12 anos quando comecei a usar, bala e key eram mais restritos a determinados grupos, hoje a coisa expandiu bastante e é muito fácil encontrar. Se você for nos banheiros das boates com certeza vai encontrar alguém parado vendendo”, analisa. 

De acordo com Juliano, nas festas da Capital um comprimido de ecstasy custa em média R$ 50, mesmo valor de um pino com aproximadamente 1 grama de cocaína. Já a ketamina, popularmente chamada de key, varia entre porções de R$ 50 e R$ 250, dependendo da quantidade de cada papelote.

São drogas variadas e de fácil acesso, que ‘fazem a cabeça’ de pessoas de diferentes idades ao longo de festas que começam por volta da meia-noite e se estendem até o raiar do dia.

Entre os adeptos, a falta de sono e apetite provocadas pela droga também é justificativa para ir além. Nos chamados ‘afters’, encontros pós-boate, o rolê é prolongado e pode se estender por muito mais tempo.

Para quem está na casa dos 30 anos, o novo jeito de se divertir assusta. Enquanto até a década passada se drogar era motivo de vergonha e acontecia na mais rigorosa discrição, hoje ganhou tom de normalidade e faz parte da rotina noturna. 

“Nas festas você vê pessoas entrando em grupos no banheiro, outras limpando o nariz na pista. São trejeitos e códigos claros de pessoas que estão usando algo”, finaliza Juliano.

Marcos Estevão dos Santos Moura escreveu livro "Távola de Palavras e Silêncios"
Marcos Estevão é médico psiquiatra (Foto: Raquel de Souza)

Mas final, o que é a dependência química?

Voltamos ao médico Marcos Estevão. De acordo com ele, a dependência química é o momento em que o usuário tem a necessidade de determinadas substâncias e já não consegue mais ficar sem. 

Até chegar à dependência, existem dois outros estágios. “De um modo geral a pessoa vai passar pelos estágios de uso, depois vai usar de uma forma abusiva, que é o abuso, até chegar ao estado de dependência química”, pontua. 

O espaço de tempo entre um e outro estágio é uma incógnita e envolve outros fatores, entre eles, genéticos. “Algumas pessoas adquirem a dependência muito mais rápido por causa de uma predisposição genética ou por serem filhos de mães que usaram drogas na gravidez. Em apenas um uso eles já podem desenvolver a dependência a determinada substância. A rapidez desse processo depende da predisposição genética”, relata o médico.

Qual a pior?

O tipo de substância usada também pode determinar a rapidez com que se atinge a dependência. “Praticamente todas as drogas ilícitas levam à dependência, claro que existem aquelas com maior potencial, que são as metanfetaminas, cocaína pura ou cocaína impura, como é o caso do crack, pasta base, oxi e a merla, que são fumados. Essas têm alto poder de dependência e nos primeiros dias de uso a pessoa já passa a abusar e a depender da substância”, aponta. 

Caso dependentes fiquem sem usar drogas ou reduzam a quantidade, entram em um estado chamado de síndrome de privação ou síndrome de abstinência, onde há um alto grau de ansiedade que pode envolver hostilidade, agressividade e chegar a alterações da pulsação e até convulsão. A retirada é feita com tratamento médico e uso de medicação.

Segundo o médico, existe a exceção de pessoas que demoram um pouco mais para chegar ao estágio mais crítico, no entanto, em razão do alto poder de dependência, o alerta sempre deve permanecer. 

“Está muito comum entre os jovens o uso de drogas sintéticas e cada vez mais drogas vão aparecer no mercado. Claro que algumas pessoas fazem o experimento e conseguem sair desse uso recreativo, mas outras permanecem nisso com grande risco à saúde, risco de overdose e mortes por desidratação, como é o caso do ecstasy. Também é comum a mistura com álcool e outros medicamentos para ter um pouco mais ainda de euforia e o risco vai ficando cada vez maior”.

Delegado Bruno Santacatharina é titular da Denar (Foto: Fábio Ourê, Midiamax, Arquivo)

“Droga de riquinho”

Delegado-adjunto da Denar (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico) de Campo Grande, Bruno Santacatharina afirma que na Capital a maior parte das apreensões de drogas em baladas é feita em festas raves, de música eletrônica e funk.

Nesses ambientes, a mais encontrada pela Denar é o ecstasy, no entanto, as drogas apreendidas variam de acordo com o ambiente.

“Nas festas eletrônicas a gente percebe maior tendência do LDS, conhecido como doce, e do ecstasy, chamado de bala. Já em festas particulares, algumas baladas de funk e até outros gêneros, especificamente, existem pessoas de uma classe média para alta que costuma fazer o uso da cocaína, que é uma droga mais cara. Eles dizem que é droga de ‘riquinho’”, revela.

É crime sim

Mas afinal, usar e portar pequenas porções de drogas para uso pessoal é ou não considerado crime?

Na avaliação sobre o assunto, o delegado Bruno Santacatharina derruba por terra crença que se espalhou entre a sociedade.

“Muitas pessoas pensam que uso de drogas não é uma conduta criminosa, pensam que usuário não pode ser punido quando pego com pequenas porções. Isso é um mito que está enraizado no senso comum”, avalia.

No entanto, o delegado explica que a coisa não é bem assim. “No Brasil não houve a descriminalização do porte e consumo pessoal de drogas, continua sendo crime, apenas é uma infração com menor potencial ofensivo. A lei não prevê pena de prisão, mas existem penas alternativas como a prestação de serviços à sociedade, por exemplo”, esclarece o adjunto da Denar. 

De acordo com Bruno, quem é pego em flagrante é levado para a delegacia e só é liberado após assinar termo de ocorrência se comprometendo a se apresentar à Justiça sempre que solicitado.

“A pessoa fica fichada na polícia. Se no futuro cometer outro crime, no segundo processo isso será levado em consideração para fixação de pena”, pontua.

Confira no decorrer desta semana a série de reportagens do Jornal Midiamax sobre o ciclo das drogas em Campo Grande, do uso recreativo nas festas até o fundo do poço onde vivem aqueles que não conseguem se livrar do vício e perdem tudo.

*Juliano Freitas é um nome fictício, criado por nossa reportagem para preservar a identidade do entrevistado