Uma tipagem sanguínea errada, feita por laboratório terceirizado que presta serviços à Santa Casa de Campo Grande, poderia ter causado a morte de oito pessoas. Mesmo depois do incidente, ocorrido em janeiro de 2021, o laboratório continua prestando serviços para o maior de , e principal responsável por transplantes de órgão no Estado. O erro no exame gerou uma notificação de ocorrência interna na Santa Casa. 

Documento obtido com exclusividade pelo Jornal Midiamax revela que o exame de tipagem sanguínea feito pelo laboratório CientíficaLab errou em classificar um potencial doador como B+. O erro foi constatado após nova tipagem feita pelo Hemosul, um dia depois da constatação da morte encefálica do paciente. O resultado do Hemosul foi O+. 

Segundo o relatório do atendimento, o paciente foi vítima de um acidente vascular cerebral em cidade do interior do Estado e veio transferido para Santa Casa de Campo Grande, com morte cerebral constatada em janeiro deste ano. Após autorização de familiares para doação de órgãos, setor do hospital solicitou exame de tipagem sanguínea, procedimento que é feito para que ocorra a seleção de pacientes que aguardam na fila por transplante de órgãos. O primeiro resultado do laboratório terceirizado apontou que a tipagem do paciente era B+.

O documento prossegue afirmando que foi solicitada uma nova tipagem ao laboratório da Santa Casa, que constatou resultado diferente do primeiro, e certificou que a tipagem certa era mesmo a feita pelo Hemosul, ou seja, O+. A ficha de notificação de ocorrência, assinada por profissionais de saúde, afirma que “tipagem errada de doadores pode levar receptores de órgãos ao óbito e podem levar às equipes não aceitarem realizar transplantes”. O documento finaliza com a frase: “lembrando que o ocorrido já aconteceu outras vezes”.

O relatório, assinado por chefia do setor de Organização de Procura de Órgãos, afirma que o erro na tipagem poderia ter causado a morte de oito pacientes que receberiam os órgãos do doador e aguardam na fila de transplantes. Seria feita captação do coração, pulmão, fígado, rins direito e esquerdo, pâncreas e córneas do paciente que sofreu morte encefálica. Por fim, depois de descoberto o erro e confirmado o tipo sanguíneo correto do paciente, o processo de transplante seguiu com destinação dos órgãos a pacientes compatíveis com a tipagem sanguínea correta. 

Notificação da ocorrência

A Santa Casa informou, em relação ao erro na tipagem sanguínea, que houve uma notificação formal à empresa [CientíficaLab], e que os profissionais fizeram reuniões, incluindo atividades sobre alinhamento e revisão de processos e treinamento das equipes. O caso foi repassado e esclarecido em conversa com os familiares do doador.

Questionados sobre a frase final do documento –“lembrando que o ocorrido já aconteceu outras vezes” – o hospital informou que não houve óbito relacionado exclusivamente a erro em tipagens sanguíneas. Além disso, explicou que o procedimento adotado é realizar as três tipagens feitas no caso aqui citado: duas pela CientíficaLab e uma pelo Hemosul.

Por fim, a Santa Casa esclareceu que os setores responsáveis pelo processo receberam uma notificação, e que os casos de eventos adversos no hospital são acompanhados pelo Núcleo de Segurança do Paciente. “No que se refere ao ocorrido citado sobre ter influenciado na segurança de outros pacientes, informamos que os técnicos do hospital acompanharam todos os processos e não foi verificado manifestação de erros”, finaliza a nota.

Por sua vez, o Hemosul esclareceu que não recebe justificativas para o pedido de retipagem, e por isso não é possível quantificar se houve outros casos semelhantes. E reafirmou, conforme o hospital já havia sinalizado, que em todos as doações de órgãos, o Hemosul faz “uma contraprova do tipo sanguíneo, ocorrendo dúvidas ou não em relação ao laboratório”.

Com sede em Barueri-SP, o CientíficaLab foi contatado pela reportagem, por meio de sua assessoria de imprensa, e questionado se houve notificação do erro, se o caso ocorrido na Santa Casa foi isolado, e quais medidas foram tomadas após o ocorrido na Capital. Contudo, após cinco dias, não houve retorno da empresa. O espaço continua aberto para posicionamento.

Mesmo com estrutura própria, serviço foi terceirizado

À reportagem, a Santa Casa de Campo Grande afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que o serviço de análises clínicas do hospital é terceirizada e pertence ao grupo DASA. O grupo possui certificação ONA (Organização Nacional de Acreditação) e, como consta em seu site oficial, atende mais de 30 hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde).

A Santa Casa informou que o laboratório é responsável, além dos exames de tipagem sanguínea, por outros exames laboratoriais, como gasometria, hemograma completo, urina, enzimas cardíacas e dosagens de medicação em geral. 

Contudo, em 14 de outubro de 2019, a Santa Casa reassumiu os serviços de laboratório e tomografia, antes feito por empresas terceirizadas desde o ano de 2010. Conforme nota divulgada no próprio site da instituição, à época, no dia 1º de julho, o hospital assumiu os serviços de coleta e a expectativa era que a partir de 1º de novembro daquele ano “todos os serviços de análises clínicas do laboratório e tomografias” fossem da Santa Casa. Os valores investidos na retomada dos serviços próprios não foram divulgados pelo hospital. 

Segundo a própria nota divulgada no início das adequações do hospital, “por mês, a Santa Casa chega a fazer uma média de 80 mil exames no laboratório, 3.500 tomografias, 15 mil raios x e 1.500 ultrassons”.

Apesar de toda estrutura própria, os serviços próprios em laboratório duraram pouco mais de 1 ano, quando novamente os exames laboratoriais foram terceirizados. Segundo o hospital, em setembro de 2020 o laboratório CientíficaLab começou a operar como unidade terceirizada “e desde então tem realizado os serviços de diagnósticos”.

De acordo com o contrato assinado entre a Santa Casa e o laboratório em julho do ano passado, que pode ser consultado neste link, o prazo de vigência da prestação dos serviços é de 5 anos. Para prestar os serviços, o laboratório teve unidade instalada no prédio a Santa Casa e, conforme o contrato, investiu R$ 588,6 mil para mobiliário, equipamentos e adequação do espaço. 

O pagamento mensal da Santa Casa ao laboratório ficou acordado conforme a demanda de exames, que seguem remuneração estabelecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e pela AMB (Associação Médica Brasileira). Portanto, o montante pago mensalmento à CientíficaLab varia conforme o fluxo dos serviços e não há detalhamento no fluxo de caixa mensal publicado pelo hospital sobre o valor da quantia repassada ao laboratório. Em média, 86.415 mil exames mensais estão previstos no contrato. O documento foi assinado pelo então presidente da ABCG (Associação Beneficente de Campo Grande) Heber Xavier, diretores do hospital e Eduardo Câmara Rodrigues, identificado como procurador do laboratório. 

Conselhos de saúde

A reportagem também entrou em contato com os conselhos de Medicina e Enfermagem. Questionados se receberam denúncias de profissionais que atuam na Santa Casa sobre erros nas tipagens de pacientes, o Coren (Conselho Regional de Enfermagem) de Mato Grosso do Sul afirmou, por meio de nota, que “os dados são protegidos por sigilo e por isso não poderão ser informados”.

Já o CRM-MS (Conselho de Medicina de Mato Grosso do Sul) explicou que “o conselho atua somente em relação a assuntos voltados à ética e ao comportamento médico”, e que “situações relacionados à área da saúde, como a questão laboratorial, não é um procedimento médico, onde pode ocorrer a suspeita de que o profissional tenha praticado a medicina de uma maneira que acreditassem que poderia estar errada”.