Retificação de nome é conquista para mulheres trans, mas desafio maior é vencer a transfobia
Desemprego, discriminação social, dificuldade de acesso a serviços básicos, altos índices de violência reportados e expectativa de vida estimada em apenas 35 anos. Este é um resumo possível dos algozes de mulheres trans do Brasil, o país que mais mata LGBT em todo o mundo. Mas, o último dia 8 de março teve um sabor […]
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Desemprego, discriminação social, dificuldade de acesso a serviços básicos, altos índices de violência reportados e expectativa de vida estimada em apenas 35 anos. Este é um resumo possível dos algozes de mulheres trans do Brasil, o país que mais mata LGBT em todo o mundo.
Mas, o último dia 8 de março teve um sabor especial para elas. Foi a primeira vez que muitas delas tiveram a identidade de gênero reconhecida de forma institucional e incontestável.
A conquista foi possível devido ao Provimento 73/2018 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que em 29 de junho do ano passado regulamentou ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 4275 do STF (Supremo Tribunal Federal) e facilitou a retificação do registro de nascimento – e dos demais documentos – sem a necessidade de laudo médico ou cirurgia de mudança de sexo.
Na prática, foi necessário apenas comparecer ao cartório de registro civil onde a pessoa foi registrada e solicitar a retificação. A medida foi estendida para pessoas trans maiores de 18 anos.
Apesar do provimento do CNJ, quem havia judicializado a questão seguiu enfrentando dissabores, já que muitos cartórios engessaram a emissão das retificações a quem ingressou com ações judiciais, tornando o processo de mudança de prenome e gênero mais longo.
Página virada
A estudante de direito Maria Paula Bonifácio de Oliveira, de 26 anos, foi uma das mulheres trans beneficiadas com o provimento. Ela recorreu à retificação há cerca de um ano, o que fez deste 8 de Março a primeira vez em que ela celebrou a data com sua identidade de gênero reconhecida.
“O dia em que eu solicitei essa retificação não foi bom. Mas não sei nem descrever a emoção que senti quando meu novo registro ficou pronto. Eu chorei no cartório, porque estava virando uma página da minha vida. A sensação foi de liberdade, de poder dizer para todo mundo que finalmente eu era o que sempre me senti e que ninguém poderia me dizer o contrário”, detalha.
Há um ano e meio atuando no MP-MS (Ministério Público Estadual), Maria Paula será bacharel em direito ainda neste ano. Para ela, um leque de oportunidades será aberto, já que a fase dos constrangimentos acabou.
“Eu sempre fui bem acolhida na 20ª Promotoria, principalmente pelo meu chefe, o Dr. Douglas Oldegardo Cavalheiro dos Santos. Toda a equipe foi receptiva e respeitou minha identidade de gênero, mesmo antes da retificação. Porém, os obstáculos surgiam, mesmo com o regimento da Casa permitindo o uso do nome social. Eu encontrei resistência no setor administrativo, no começo. E é muito difícil você não querer desistir quando tem uma estrutura te dizendo que você não pode ser o que você é. Por muitos anos eu esquivei de me reconhecer mulher, mas agora eu tenho esse direito garantido. É maravilhoso, é libertador”, conta.
Desafios que seguem
Formada em direito, Amanda Anderson, de 37 anos, foi a primeira advogada transexual de Mato Grosso do Sul. Atualmente licenciada da advocacia, ela é presidente nacional do PDT Diversidade e integra a comissão que defende, junto ao STF, a criminalização da homofobia e da transfobia. Assim como Maria Paula, este foi o primeiro 8 de Março no qual ela conquistou o reconhecimento institucional de sua identidade de gênero.
“Mas, a possibilidade de retificação não é um pó de ‘pirlimpimpim’, porque o preconceito segue existindo. Não é mudar o registro de nascimento e seus documentos que faz automaticamente as pessoas te respeitarem. Nem todas as mulheres trans são percebidas como mulheres e os obstáculos seguem”, descreve a ativista.
Segundo Amanda, tem sido muito comum que mulheres trans sejam preteridas em vagas de emprego, por exemplo, após recrutadores perceberem que se trata de uma pessoa transexual. “A transfobia ainda existe nesses espaços e isso só vai ser superado quando conseguirmos criminalizar a discriminação contra LGBT. Enquanto isso ocorrer, vamos continuar sem acesso aos serviços mais básicos, como a saúde e educação, e sem eles vamos continuar sendo empurradas à marginalidade˜, pontua.
Amanda cita a baixa expectativa de vida de travestis e transexuais, estimada em 35 anos. “Isso acontece porque para evitar o constrangimento de ser chamada por um nome que não é compatível com o gênero, nossa comunidade evita ir a um posto de saúde, por exemplo. Evita ir a escola. E mesmo quem supera esses obstáculos, ainda vai encontrar resistência mais na frente. O mercado formal de trabalho não contrata pessoas trans”, diz.
Uma das soluções parece estar a caminho. Será o julgamento da criminalização da homofobia e da transfobia, que segue em curso no STF, e que busca equiparar essa discriminação ao crime de racismo.
“Com a criminalização, isso vai começar a mudar. Quando, por exemplo, tivermos a competência para uma vaga e mesmo assim formos preteridas, poderemos alegar que houve a discriminação. É uma grande expectativa para todas as pessoas trans, mas principalmente para as mulheres, que por muito tempo só encontraram na prostituição uma forma de sobrevivência”, conclui.
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