O ‘falar’ indica riqueza étnica e geográfica
A linguagem é a casa onde mora o homem, pontuou Godard no filme ‘2 ou 3 coisas que sei dela’. Em Mato Grosso do Sul – que comemora 39 anos neste dia 11 – o ‘falar’ das pessoas em diferentes regiões mostra que o Estado tem, então, diferentes casas. O que se percebe, pelo sotaque e vocabulário, é que Mato Grosso do Sul é rico em grupos étnicos. O modo como se fala é uma espécie de ‘atlas linguístico’, que diz sobre as pessoas, características que, muitas vezes, nem elas percebem.
“A própria composição do estado, vieram os mineiros, os paulistas e os gaúchos. Então, aqui no estado, nós já teríamos um linguajar bem variado pela própria origem. Mas, se eu colocar um grupo de falantes de mineiros, um grupo de falantes de paulistas e um grupo de falantes de gaúchos, eles vão começar a conviver e essa mistura começa a produzir sotaques diferenciados”, explica a professora e pesquisadora do curso de Letras da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), Elisangela Leal da Silva Amaral.
Neli Betoni, coordenadora do curso de letra da UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), afirma que é possível notar, em cada região, a presença dos grupos que marcam os diferentes sotaques sul-mato-grossenses.
“O nosso estado, ele tem polos que a gente pode mencionar. Por exemplo, a região de Três Lagoas tem a influencia de Goiás, de Minas Gerais, a região do Bolsão, você percebe ali uma influência do estado de Goiás, dos mineiros, que é muito próximo, esse jeito de falar. Já no sul do estado você tem outras presenças, por exemplo, os gaúchos, os catarinenses, então são grupos que foram chegando e dando essas características”, comenta.
Elisangela também explica que, além das composições regionais, outros fatores multiplicam a variedade do ‘falar’ – que formam as “comunidades de fala”- , e levam em conta fatores como a classe social e outras variáveis. As comunidades de fala, segundo a professora, são produzidas a partir da relação entre a língua e o falante.
Campo Grande
Ana Cabrau é moradora antiga da Capital. A campo-grandense de 55 anos viveu na cidade durante toda a vida, detalhe que faz com que ela não repare que o próprio sotaque tem características bem marcadas. O sotaque de outras regiões, no entanto, ela repara bem. “Eu acho que não tem muito sotaque, corumbaense já tem”. “Ah, mas parece o jeito de falar do paulista sim, e não só o jeito que fala, mas o nariz empinado, também”, brinca ela.
O detalhe percebido por Ana, de que o campo-grandense é ‘fechado’ também é notado por muitas pessoas, e não é algo tão ‘estranho’ como parece. É o que explica Neli.
“No falar das pessoas tem muita interferência de São Paulo, muito influenciado pelos paulistas, mas também temos correntes que vem do sul e isso está ligado a colonização. Campo Grande, você vê até um comportamento das pessoas refletindo nessa identidade, não só do comportamento mas da linguagem, todo mundo comenta, a respeito de Campo Grande que as pessoas são mais fechadas, até mesmo pela presença desses grupos”, afirma.
É o que percebe a cuidadora Ceci Garcia. Gaúcha, Ceci vive em Campo Grande desde 1983 e já incorporou o jeito de falar da Capital. “Percebo muito essa diferença. O gaúcho é muito comunicativo e o campo-grandense é muito fechado. No começo eu achava muito engraçado, o sotaque. Se eu for hoje em Porto Alegre meus sobrinhos falam ‘a tia fala tão engraçado’”.
“O erre falado aqui na capital, não é o mesmo falado pelo pantaneiro ou por uma outra região específica, entende? E quanto mais você mergulha nessas variações pra fazer esse estudo, mais diferenças você vai descobrindo”, explica a pesquisadora Elisangela Leal.
O certo e o errado, o feio e o bonito
“Eu morava no Paraná. Eu acho bonito o jeito que se fala aqui porque o pessoal da minha terra fala feio, sei lá, meio cantado”, brinca Douglas Barreto, 62, que mora há 30 anos em Campo Grande.
“Olha, aqui, não”, respondeu Ana Cabrau, ao comentar sobre já ter ‘corrigido’ a fala de alguma pessoa. “Mas em outras cidades já vi e assim, não falei, pensei ‘que que é isso’”, afirma.
A questão comentada pelos dois, no entanto, é um mito, ainda comum, de acreditar que exista uma língua correta e outra errada ou uma língua bonita e outra feia. No olhar da ciência, toda manifestação linguística é correta e tem suas características.
“Durante muito tempo nos estudos linguísticos nós tínhamos que a língua portuguesa era uma só e isso produzia a questão do certo e do errado. Quem determina o padrão? A economia. Ninguém quer falar a variedade do pobre, por exemplo, quer a da elite. Mas em cada região nós temos comunidades diferentes e por que elas são diferentes? Por conta da idade diferente, classe, etc”, explica Elisangela.
A pesquisadora também pontua uma característica atual, a globalização, que aumentou os fluxos e as trocas entre os diferentes grupos. “Você vai observando essas diferenças na cidade. Em relação a classe social, por exemplo, você tem aqui em Campo Grande, é tido como um lugar mais desenvolvido, então está mais antenada com os grandes centros, agora temos uma questão que interfere muito nisso, chamada globalização”.
O preconceito linguístico, no entanto, produz suas marcas. A fronteira que separa Brasil e Paraguai no Mato Grosso do Sul, é outro fator que produz diferença no sotaque. Ainda assim, o diferente é visto, muitas vezes, como errado.
Natural de Ponta Porã, a diarista Claunice Alves Dauzker, 51, conta que o próprio sotaque é até motivo de riso. “Eles falam que eu falo diferente. Eles riam de mim, porque eu puxo muito o r. Eu acho que é próprio de lá né, o jeito de falar. Tem hora que a gente arrasta, apesar de não falar muito guarani, agora eu já estou mais acostumada, já moro há 27 anos, mas antes eu puxava”, conta.
“Eu vejo, presto atenção, eu procurei me adaptar mais aqui, vai procurando falar melhor. Eu acho que aí, as pessoas prestam atenção e ficam rindo da gente. As vezes eu falo e na hora eu quero corrigir. Tem vez que dá saudade do jeito de falar”, comenta Claunice, que ‘denuncia’, com qualificações como ‘melhor’, ou ações como ‘adaptar’, o preconceito com o diferente, que atinge até a língua.
“Se você pegar Bela Vista, Ponta Porã, você encontra, por exemplo, guarani, influenciando.Teve uma época que isso era tão latente, nessa língua falada, que até hoje existe, mas houve uma época que era ‘olha, essa língua é feia, você não pode falar’. Quer dizer, a gente sabe que a influencia é uma língua indígena. Hoje nós vivemos um tempo que você tem que valorizar essas diferenças, não é só valorizar a diversidade cultural, é valorizar também a diversidade linguística. É reconhecer todos esses povos e contribuições e não simplesmente separar, isso é adequado, isso é melhor”, explica Neli.
O que Neli explica é outro viés da formação linguística de Mato Grosso do Sul, mas que, pelo preconceito e segregação, muitas vezes, é visto com ojeriza ou negação: a presença indígena. As diversas etnias do estado deixam sua marca, e além do guarani falado na fronteira, os nomes de cidades no estado são lembranças da resistência desses povos. É o tema da pesquisa de uma das alunas de Elisangela, a acadêmica de letras Mayara Nascimento Alexandre, 22.
“A língua é o que dá o poder de afirmação desses povos. O primeiro [município] que comecei a pesquisar é Caarapó. Lá chegaram os gaúchos e já tinham os povos indígenas e o principal meio de sustento na região era a erva mate, e essa erva era chamada pelos indígenas de Caa e o rapó seria terra. E por que deram esse nome pra cidade? Qual a importância disso? É o que a semântica, é o que a pesquisa, vão mostrar”, conta.
“No Brasil nós temos aproximadamente 180 línguas indígenas, isso das que foram estudadas. Aqui no estado, somos o 2º em concentração de povos indígenas, nós temo oito etnias, sete reconhecidas. Então será que essa convivência de povos diversificados, diferenciados, não altera esse falar?”, questiona a professora, Elisangela.
Ainda assim, conforme pontua Neli, a presença indígena, muitas vezes, é mais forte no vocabulário do que no ‘falar’, já que, no Estado, a segregação das etnias originárias é marcante.
“Eu vejo que os povos indígenas contribuem muito mais pela questão do léxico e aí há também a questão do preconceito linguístico. Na região da fronteira, se você pegar as regiões de fronteira, o preconceito linguístico existe sempre. O que eu vou valorizar nessa fala? Aquilo que eu reconheço eu vou expressar. Até tem um texto da professora Rita, reitora da UFGD, que ela fala, que a aldeia em Dourados foi atravessada por um corredor. E os indígenas falam: nós queremos aprender o português que vocês falam, por que? Porque é a língua dominante. Mas estamos num tempo, também, de globalização, e aí as minorias ganham importância”, conta.
Confira a reportagem em vídeo:
O ‘S’ corumbaense
Muito comentado e objeto de diversas interpretações é o esse pronunciado pelos corumbaenses. As particularidades regionais, no entanto, não param por aí. Pertencente à família Cambará – tradicional na cidade – Luiz Mário Cambará, 58 -, é um entusiasta da cultura e do sotaque da antiga Corumbá.
“Corumbá é um caso a parte, né?”, começa ele. “Do jeito de falar ao modo de viver, é diferente de toda região do estado, é uma cidade bem antiga, então a cultura, os costumes, são outros. Vejo como o berço da cultura sul-mato-grossense. O sotaque é muito carregado, carrega muito no s. E tem umas coisa que é só lá. Que só o corumbaense entende. Lá tem umas manias, por exemplo, dizer que fulano é pancudo”, contou ele, que já emendou que a palavra indica uma pessoa ‘esnobe’.
“Nós carregamos no esse, a maneira de falar cantado, vou na casa de fulano, de ciclano, e falamos assim: ‘vou lá ni mario’. Fala cantado. Tem umas coisas que a gente não entende, por exemplo, ‘corre duro’, ‘tá chovendo duro’, o que é? Está chovendo forte. ‘Xexero’, ‘ ah, fulano é xexero’. O que é? Um picareta, ‘fulano me xexou’, ‘é ah, fulano me passou pra trás, que deu a volta em mim’”, ensinou Luiz Mário.
E o representante dos Cambará não está sozinho. As particularidades de Corumbá também foram notadas por Caciane Schmidt, 31, aluna do curso de letras da UEMS, que fez do esse corumbaense seu objeto de pesquisa.
“Eu não sou daqui, sou gaúcha, e quando eu vim morar aqui foi um choque bem grande, a forma como as pessoas aqui falam, justamente essa mistura, essa variedade linguística que tem aqui. E uma coisa que sempre me chamou atenção foi essa questão do esse dos corumbaenses, porque tirando o Rio de Janeiro, a gente não vê essa marca em outra cidade”, conta.
Correndo o risco de ‘balançar’ as certezas de muita gente, Caciane já adianta: o sotaque corumbaense não é copiado ou originado do carioca. A pronúncia do esse é sim, própria de Corumbá e diferente da pronunciada no Rio de Janeiro.
“Muita gente fala ‘ah é um forma caipira de imitar o carioca’, justamente pra desprestigiar um pouco. Eu ainda não terminei o trabalho e não podemos afirmar se essa variação foi deixada somente pelos portugueses, na época da colonização da cidade – que tem a ver com a questão da criação dos fortes, com a vinda de militares portugueses -, ou uma mistura, com a vinda da marinha pra cá, mas o que podemos afirmar é que é própria do corumbaense, é diferente de outros lugares”, contou.