reflete sobre limites e possibilidades em sua crônica

 

Em 2011, em Estoril, o escritor moçambicano Mia Couto – não descreverei aqui as qualificações desse grande escritor de língua portuguesa, com uma escrita sensível que fala ao coração, pois muitos brasileiros sabem quem é e o amam – deu uma conferência chamada “Murar o medo”. Resumirei o que ele falou. Começa contando seus medos de menino, com fantasmas, monstros e demônios, e de como os anjos, agentes de segurança privada das almas, vinham e lhe protegiam. É uma analogia que usa para mostrar como construímos defesas contra os medos. Com a ingenuidade dos anjos da guarda, se acreditava mais seguro porque não se aventurava “para além das fronteiras da minha língua, da minha cultura e do meu território”. Cabo da Roca, onde o mundo 'acabava'l / Andrea Brunetto

O medo foi um mestre que o fez desaprender. Cresceu na Moçambique colonial, onde se criaram muitos fantasmas. Dá dois exemplos, o velho ateu barbudo (que no Brasil também causa medo na versão de sapo) e os chineses que comiam criancinhas. Com essa construção de terror, atrocidades foram feitas no continente africano. “Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades”. Ele não está defendendo o comunismo. Aliás, nem eu. Acabei de ler “O fim do homem soviético”, de Svetlana Aleksievitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura do ano passado, e nesse livro, as atrocidades da ditadura de esquerda, estão lá descritas. Toda ditadura é um calar de boca. De esquerda ou de direita.

Na conferência, Mia Couto afirma que há uma arma de destruição em massa sendo usada o tempo todo, chama-se fome. “Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos, passa fome”. E dessa violência, passa a outra: “uma em cada três mulheres foi – ou será – vítima de violência”. Mas a indignação é menor que o medo. “Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade”. Isso servia para explicar a Moçambique que queria deixar de ser uma colônia. Vale para o momento que estamos vivendo, agora, no Brasil?

E alega que seja sintomático que a única construção humana que possa ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha da China. Erguida para proteger a China de guerras, invasões e, claro, dos estrangeiros. E que a história mostrou, não protegeu de nada.

Continuo com Mia Couto: “Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo, um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivem todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente”.

A foto em frente a prefeitura ocasionou a descoberta / Andrea BrunettoEu não conhecia esse texto de Mia Couto e só o descobri por causa de uma viagem. Há quinze dias fui ao Cabo da Roca, essa ponta mais ocidental do continente europeu, onde Camões escreveu “aqui termina a terra e começa o mar”. À época, um muro intransponível: o fim da terra. De lá rumei para a praia de Cascais, meio sem gosto e sem ânimo, pelo dia frio e porque praias não me interessam muito no exterior. Continuo achando as praias brasileiras insuperáveis.

Andando pelo mercado do peixe, no cais de Cascais, digo a minha sobrinha “fica ali, vamos tirar uma foto de frente à prefeitura”. Olho ao lado e enxergo a exposição “Murar o medo” – exposição em que os artistas plásticos, juntamente com muitos jovens, foram convidados para representarem seus medos, tendo como norte a conferência de Mia Couto. Primeiro vi a exposição, me detive no quadro feito a muitas mãos, em que se sobressai uma muralha. E o sangue corre de um lado e do outro, vermelho dos dois lados. Meu primeiro pensamento foi: um muro assim, Trump quer construir para separar os de sangue azul dos latinos. Mas não, lendo a conferência, imagino que os jovens desenharam a Muralha da China. Muros, na atualidade, há em abundância, construídos ou a serem construídos (talvez): o que separa os judeus dos palestinos, em Jerusalém; os que uns tantos políticos pensam em construir na Europa, para deixarem os refugiados de fora; um muro separa os prós dos contra impeachment, no Brasil do momento, etc.

Viajar é permitir-se a descobrir o mundo e 'derrubar' os muros do medoSaio da exposição, atravesso a praça, interessada numa bela casa e vejo uma placa que diz que ali viveu a escritora e poetisa portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho. Não tinha nem ideia de quem fosse. Volto para Lisboa e começo a pesquisar. Publicou muitos livros de poesia, ensaios, biografias e escreveu para jornais portugueses e brasileiros, inclusive. Primeira mulher a integrar a Academia de Ciências de Lisboa. Foi uma das primeiras escritoras portuguesas a lutar pelos direitos das mulheres. “A mulher é um poder e é preciso aproveitá-la na construção comum da civilização”. Escreveu isso no final do século XIX. Se hoje parece dispensável escrever algo assim, à época não era.

Uma viagem é isso, descobrir coisas novas, lugares, escritores, conferências, paisagens. É conversar com pessoas. Essa é para mim a melhor paisagem de uma viagem. E eu que nem estava muito animada para ir a Cascais.

Uma viagem permite a uma pessoa estender suas fronteiras, linguísticas, inclusive. Permite ultrapassar muros e medos e construir pontes. Aliás, isso Francisco tem feito muito bem e por isso, dia-a-dia ganha mais admiradores. E assim termino, com as pontes. Somente elas derrubam esses muros.

 

*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, funda­dora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.

*A conferência de Mia Couto, ‘Murar o Medo’, pode ser assistida clicando AQUI.