Patagônia, onde descobre-se um mundo imenso bem no fim do mundo

Parte 1: o lado Argentino

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Parte 1: o lado Argentino

 

 

Bruce Chatwin, na infância, tinha imenso interesse pelo pedaço de pele com chumaços de pelo avermelhado, guardado dentro do armário, atrás de uma porta de vidro, na casa de sua avó. Em seu livro Patagônia, descreve esse como o fato mais marcante de sua infância. O pedaço de pele, contou-lhe sua avó, era de um brontossauro, enviado por um parente dela que vivia nos confins do mundo, do outro lado do oceano, na Patagônia.

Patagônia, onde descobre-se um mundo imenso bem no fim do mundoNa escola, falando do pedaço de pele de brontossauro, a professora o desmente: brontossauro não tem pelo, só couro. É debochado pelos colegas por contar uma mentira. Quando a avó morre, os herdeiros se desfazem de todos seus pertences e ele perde o pedaço de pele que gostaria de ter guardado para si.

Ficara o enigma que só depois, como adulto, desvendou: sua avó errou, o pedaço de pele era de uma preguiça gigante, pré-histórica, encontrada nas geleiras da Patagônia por Charley Milward, capitão de um navio mercante que afundou no Estreito de Magalhães. Sobreviveu ao naufrágio e passou a viver em Punta Arenas. Quando encontrou a preguiça gigante, mandou à parente inglesa, distante, um pedaço de sua pele. É esse pedaço de pele que determinará o interesse, ainda menino, de Chatwin pela Patagônia.

 

O 'farol do fim do mundo', citado na obra de Julio Verne (Arquivo pessoal)

 

Quando adulto, Chatwin deixará um trabalho, deixará a Inglaterra, para uma viagem em busca dessa terra distante, inóspita, descrita por Júlio Verne em “O farol do fim do mundo”. Fará essa viagem como um viajante e não como um turista, percorrerá trechos de mata sozinho, lagos, encostas, pedirá carona em muitos lugares, dormirá em celeiros, junto com peões e ovelhas. Conversará com as pessoas do lugar, com ingleses, galeses, estrangeiros de muitos lugares do mundo, que antes dele, ficaram fascinados pela Patagônia e a escolheram para viver. História de mortes, aculturação e destruição dos índios, verdadeiros donos da terra, de revoluções; briga por terra, poder. Descrições de lugares maravilhosos. Li esse livro como um guia da Patagônia e um mapa para ir marcando os lugares por onde ele passou.

Patagônia, de Bruce Chatwin é um livro lindo, uma mapa que levei anos depois para essa viagem que fiz até lá. E que, nem de longe consegui fazer tudo o que ele fez. E nem conseguirei descrever aqui para vocês com a beleza que ele descreveu em seu livro.

 

(Arquivo pessoal)

 

O livro de Chatwin começa com uma epígrafe que é um verso do poema do poeta e novelista suiço Blaise Cendrars: “A Patagônia, somente a Patagônia convém à minha imensa tristeza”. Nesse poema, Cendrars – eu fui procurar que poema era esse depois de ler o livro de Bruce Chatwin – conta que passou sua infância em uma escola atrás da estação de trem e os trens estavam sempre de partida, isso fez com que, em sua vida, sempre corresse um trem atrás de si, de Bali a Tombouctou, de Paris a Nova York, de Madri a Estocolmo. A beleza é que é um trajeto ferroviário imaginário, impossível de ser feito de trem, pois em todos há um mar no meio do caminho. Eu o entendi imediatamente, pois eu já tive um sonho repetido em que ia de trem de Trieste a Bonifácio, também um trajeto com um mar no meio. E continuo em seu poema: e perdi todos meus pares, e não há mais do que a Patagônia, ela convêm a minha imensa tristeza, a Patagônia é uma viagem pelos mares do sul. “Eu estou nos trilhos, sempre estive nos trilhos. O trem faz um salto perigoso, mas novamente cai e retoma seu caminho, retoma seus trilhos.” É um poema lindo, o poeta faz uma metáfora: a vida é o trem com seus trilhos, mas ela tem acontecimentos inesperados, trajetos inesperados, aos quais ela salta, e depois volta aos trilhos. O mar é esse inesperado, misterioso, perigoso e incógnito. Mais ainda na Patagônia, com os imensos e gelados mares do sul. Na Patagônia os saltos perigosos são muito maiores. E convêm a uma tristeza imensa. Assim o entendi.

 

(Arquivo pessoal)

 

Depois de tudo isso que escrevo, constato e creio que meus leitores dessas crônicas já sabem desse óbvio: meus passeios pelos lugares do mundo são sempre, também, um passeio pela literatura. Aprendo muito com aqueles que estiveram lá antes de mim, são meu mapa. E já disse o que achei da Patagônia com Bruce Chatwin e Blaise Cendrars. Concordo completamente com o que eles escreveram. Só não estava nesse momento de grande tristeza, pois era um momento bom de minha vida – vejam que não escrevo depressão, para não adoentar e medicalizar as dores da alma e da existência que a modernidade vem fazendo – mas minha amiga estava, e compartilhei sua tristeza: ela tinha perdido o pai naquele ano e a Patagônia foi propícia para seu luto imenso. Ela estava lá, saltando sobre os Mares do Sul, como Blaise Cendrars. Diante da imensidão que é Perito Moreno, chorou a morte do pai. E quando, por um inesperado da vida, a geleira começou a ranger, barulhos secos, como de uma rachadura imensa, sentamos diante de Perito Moreno, as quatro amigas, e esperamos ele rachar. Quando um bloco imenso caiu, rachou e se perdeu no lago, deslizando para derreter no mar, minha amiga gritou, um grito pelo pai, em memória do pai.

 

Glaciar Perito Moreno, ponto mais conhecido da Patagônia (Arquivo pessoal)

 

Em dezembro de 2012, com Alba, Fabiana e Priscila, andei muito por suas terras, geleiras, estreitos, nesse lugar mais meridional do planeta, em uma viagem pela Patagônia argentina e brindamos a virada do ano na cidade de El Calafate, com os cacos de uma champagne cara que tínhamos comprado para comemorar e que eu, descuidadamente, quebrei. Improvisamos. Quatro amigas juntas em uma foto, assim veio para mim 2013, augúrio de um ano que se revelou excelente.

El Calafate é somente um ponto de parada para conhecer a natureza ao seu redor: o Glaciar Perito Moreno, El Chaltén e outros parques. Tem bons hotéis e bons restaurantes e Perito Moreno fica a setenta quilômetros, no Parque Nacional dos Glaciares. Fomos até El Calafate de avião, pois fica a quase três mil quilômetros ao sul de Buenos Aires. Ao sobrevoar o aeroporto, a paisagem é um espetáculo, pois viajamos margeando a Cordilheira dos Andes e ao pousar vimos o gigantesco Lago Argentino, nos arredores da cidade.

 

Um pouco mais de perto (Arquivo pessoal)

 

Deixamos El Calafate em outro voo e mais mil quilômetros abaixo, chegamos a Ushuaia, conhecida como a cidade do fim do mundo, a última, o ponto mais meridional do planeta. Depois dela só o Estreito de Magalhães, onde os oceanos encontram-se, o Atlântico e o Pacífico e, mais abaixo o Polo Sul, a Antártida. Fomos até lá no verão – cerca de 7 graus positivos, se é que se pode dizer que é um verão – pois no inverno a temperatura é de cerca de trinta graus negativos e até os aviões têm dificuldades de pousar no aeroporto. Estávamos lá nesse “verão”, na primeira semana de janeiro. Ushuaia é uma cidade muito bonita. O Parque Nacional Tierra del Fuego, nos seus arredores, tem paisagens que enchem os olhos: a Cordilheira dos Andes se intromete no nosso olhar para onde quer que viremos, lagos gelados, a floresta destruída pelos castores, as árvores todas retorcidas pela força do vento, com seus galhos retorcidos. O vento antártico é cruel, atroz. Não existe outro tão forte.

 

Ilha dos pinguins, no encontro dos oceanos (Arquivo pessoal)

 

Um imprevisto, um salto dos trilhos do programado: fizemos check-in e chegamos bem antes do embarque no aeroporto. Ele estava tumultuado. A companhia Aerolineas Argentinas fez over booking e colocou um grupo de passageiros, que chegou com um agente de viagem, no voo e a nós e outros tantos, colocou em um ônibus para irmos até a cidade de Rio Grande e lá, algumas horas depois, pegarmos o voo para Buenos Aires. Assim, entramos em um ônibus caindo aos pedaços, sem banheiro, sem cinto de segurança, para rodarmos por estradas ermas, montanhosas, contornando a onipresente cordilheira.

 

As viajantes (Arquivo pessoal)

 

Disse-nos a companhia que era perto até Rio Grande. Abri meu mapa, todas um tanto nervosas – Priscila Guimarães estava em outro voo, poderia ter ido de avião e ter nos esperado em Buenos Aires, mas abdicou de sua passagem aérea e foi no ônibus-sucata com as amigas. Abri meu mapa para procurar Rio Grande, Alba, sentada na primeira fila do ônibus – já fica um tanto nervosa no dia de viagem, isso quando tudo corre bem – vem até mim: você viu no seu mapa qual trajeto vamos fazer? Vamos subir ou descer? Começamos imediatamente a rir com a pergunta que só foi reflexo da preocupação: se descermos, nós sairemos do mapa, não há mais nada abaixo. E assim, duzentos e dez quilômetros depois, chegamos sãs e salvas a Rio Grande, pegamos o voo para Buenos Aires e dissemos adeus à Patagônia. Dissemos adeus a suas paisagens ermas e selvagens, ao seu frio, ao seu vento gelado, ao Estreito de Magalhães, onde passeamos de barco e com leões-marinhos e pinguins olhando-nos das pequenas ilhas, avistamos o encontro dos oceanos. Tudo tem outra dimensão, tudo é maior: a pequenez humana se agiganta, as alegrias podem virar euforias e a tristeza pode parecer imensa.

*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, funda­dora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.
 

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