A saga de uma viagem inusitada, ‘presente’ do deus Kane

No aeroporto de Denver, depois de três horas de viagem a partir de Miami, eu e minha irmã Maristela estávamos esperando chamar nosso voo, sentadas ao lado da estátua de John Swigert Jr., astronauta da fatídica Apollo 13. Depois de deixar o espaço por um episódio um pouco obscuro de sua vida, resolveu ser político, republicano, e é homenageado com essa estátua no aeroporto da cidade onde nasceu. Logo escutamos a chamada de nosso voo, mais sete horas de voo até Honolulu, na ilha de Oahu, capital do Havaí, quinquagésimo Estado Americano. Vinte e oito horas depois de deixar , dezenove horas de voos, quatro voos, nove horas de espera em aeroportos e nós chegamos.

Nano Morais, o guia que foi nos esperar no aeroporto, é italiano, filho de espanhóis e morava há vinte e seis anos em Honolulu. Essa viagem cara, distante, com guia a nos esperar em aeroporto e city tour pela cidade, com hotel na Praia de Waikiki a duas quadras do mar, não foi paga por mim. Ganhei um concurso da Revista National Geographic. Quem escrevesse a melhor frase sobre o Havaí ganharia uma viagem para lá, com hospedagem na Praia de Waikiki, com tudo pago e direito a acompanhante. Escrevi uma frase boba e esqueci o assunto. Passaram-se quase seis meses quando me ligaram e achei que fosse trote. Desliguei o telefone na cara do sujeito que falava comigo. Ele ligou novamente. Explicou-se e repetiu para mim a frase boba que escrevi; disse que mandaria um telegrama para confirmar tudo e que conferisse meu nome, pois tinha sido publicado na revista daquele mês. A frase que enviei foi: “Eu mereço conhecer o Havaí, pois também sou filha de Kane”. Kane é o maior Deus, o Deus superior do politeísmo havaiano. Algo como Zeus.

Honolulu é uma cidade com mais de um milhão de habitantes, cheia de hotéis e lojas chiques, lotada de turistas – japoneses, sobretudo. A temperatura é como de Campo Grande. Com umidade. A maioria da fauna e flora foi levada para lá e se adaptou muito bem. As plantas se desenvolveram sem espinhos, não há mosquitos e outros insetos. Eles produzem poucas coisas, a maioria vem de fora. Vivem do turismo: mais de sete milhões de turistas por ano. O guia contava a grande novidade da fauna e flora: fícus strangulatis, buganvílias, flamboyants, plantações de abacaxi. E na região cafeeira, na Big Island, as mudas de café vieram do Brasil e da Etiópia. O que eles têm de próprio é um oceano imenso, com ondas gigantescas e praias que são baías e já foram vulcões. E há os vulcões ativos, também, como o Kilauea.

Duke Kahanamoku, nadador e ator havaiano conhecido como o pai do surfe, que conquistou 4 medalhas olímpicas (Arquivo pessoal)O Capitão Cook, inglês, desbravador dos mares, quando chegou à ilha, foi recebido com festa pelos nativos. Eles eram amistosos e acolhedores e acreditaram que os ingleses eram enviados do deus do mar, Lono, uma divindade pacífica. Mas os ingleses começaram a estuprar as mulheres e Kamehameha I, o rei havaiano que unificou todas as ilhas, percebeu que o Capitão Cook estava interessado nas terras, e os ingleses estavam também muito carnais, e aí mandou matá-lo. Os missionários americanos chegaram bem depois e colocaram roupas nos havaianos. E os proibiram de dançar a Ula, pois era uma dança muito sensual. Vim da Colômbia recentemente e, estudando como foi sua colonização religiosa espanhola, lembrei-me da doutrinação jesuítica nos índios do Brasil e agora escrevo sobre essa, dos americanos no Havaí, e é sempre a mesma a história do colonizador. É sempre o natural, o diferente de um povo que vive em contato com a natureza e com seu corpo, o que precisa ser domesticado. A sensualidade precisa ser banida, senão vai dar em estupros. E a culpa é dos nativos, não do estrangeiro que chega com uma gana de poder e conquista.

Tudo está organizado para turista ver, mas não para questionar, querer saber mais. Por exemplo, o Centro de Cultura da Polinésia apresenta os oito povos da Polinésia – Tonga, Samoa, Ilhas Marquesas, Havaí, Fiji, Nova Zelândia, Taiti e Rapa Nui – misturando os shows de dança e da história deles. Na barraca do Taiti estava um jovem havaiano que nunca tinha estado no Taiti; em Tonga a mesma coisa: o rapaz que fazia a dança do povo de Tonga só sabia que era uma ilha com onze mil habitantes, mas nunca tinha estado lá. Não quero decepcioná-los para essa viagem, pois vi coisas que lembrarei para sempre, mas esse centro de cultura foi um desperdício, uma chance perdida de ser um museu. Um musical mal feito e mal encenado para ganhar dinheiro de turistas.

Não há transporte de navio de uma ilha para outra, só de avião. As ondas são muito fortes e por segurança, o jeito é ir de avião. O engraçado é que os polinésios foram excelentes navegadores e construtores de navios, iam de navio de uma ilha para outra e há indícios de que tenham chegado ao Chile e à Ilha da Páscoa.

Em onze de setembro de 2003, dois anos depois do ataque às Torres Gêmeas, eu e Maristela estávamos em Pearl Harbor. Chegando lá, pegamos uma balsa para ir ao Arizona Memorial, que foi construído sobre o navio afundado. Olha-se para o chão, com vidro em muitos lugares e vemos o navio afundado abaixo da superfície do mar. Maristela conversou com um combatente de setenta e cinco anos, que serviu em Pearl Harbor logo depois do ocorrido. Vários combatentes da época ficam lá, fardados, andando pelo hall e conversando com os visitantes.

Eu diante da estátua de Kamehameha I, que unificou as ilhas. Em frente ao Palácio do Governo, em Honolulu (Arquivo pessoal)Pegamos um avião e chegamos a Big Island. Essa ilha é a que se chama realmente Havaí, a maior ilha. É bem distante de Oahu, onde fica a capital, Honolulu. Pagamos um passeio de dia inteiro na ilha – foi a única coisa que pagamos com nosso dinheiro nesse passeio todo – e quando o transporte chegou foi uma satisfação, pois apareceu o primeiro havaiano autêntico: Nick, nosso guia do dia todo. Primeira pessoa que conhecemos que sabia falar a língua havaiana e nos explicou que ela é composta de sete consoantes e cinco vogais, por isso que as sílabas se repetem e as palavras são compostas, significando uma terceira coisa.

O passeio começou por KealaKekua bay, baía onde o Capitão Cook aportou. Depois paramos em Ka Lae, também conhecido como Ponto Sul, é o ponto mais meridional não só da ilha do Havaí, mas de todos os cinquenta Estados americanos. Continuamos o passeio. À nossa esquerda estava o Mauna Kea (montanha branca, em havaiano). Com quatro mil e duzentos metros de altura, é um vulcão adormecido desde o Século XIX e em seu pico estão dois observatórios, os W. M. Keck. Como dois globos oculares, são duas esferas brancas de onde se tem a melhor visão do céu em todo o mundo.

E chegamos ao principal: o Parque Nacional dos Vulcões, onde está o Kilauea, o vulcão mais ativo do mundo. De todo o chão do parque, mesmo onde tem vegetações, saem pequenos jatos quentes de ácido sulfúrico. Há uma cratera enorme, que foi da última explosão em 1986. Depois disso, a lava encontrou outro caminho, um atalho: sai por baixo, caindo permanentemente no mar e aumentando, aos poucos, a ilha.

Em nosso hotel, em Waikiki, conheci uma médica brasileira, da aeronáutica, que trabalhava em Brasília e, por essas coincidências da vida, era colega de trabalho de um homem que gostei muito quando tinha uns vinte anos; depois ele foi embora de Campo Grande e perdemos contato. Pois lá, deitada na praia de Waikiki, por essa moça, fiquei sabendo dele, de sua vida, dos caminhos que trilhou depois que deixou Campo Grande. Esse é um dos exemplos que já tive na vida de como o mundo é pequeno, e mesmo o Havaí é ali, do outro lado. Ela foi ao Havaí porque seu sonho era sobrevoar o Kilauea de helicóptero. Quando foi passar seu cartão de crédito, ele foi rejeitado. Isso tinha acabado de acontecer quando nos encontramos. Eu pesei tudo o que tinha acontecido até ali e disse a ela que passasse o meu, ela me daria um cheque e eu depositava no Brasil. Poderia perder esse dinheiro? Corri o risco, afinal já havia ganhado a viagem toda e tinha comigo que o cheque seria bom. Ela nem acreditou e queria porque queria que eu fosse com ela sobrevoar o Kilauea. Não tive coragem, para mim bastava olhar a cratera do chão. Não me arrependi.

Em Akaka Falls State Park, na Big Island do Governo, em Honolulu (Arquivo pessoal)Como podem ver, foram muitos lugares que valeram a viagem, nem contei de todos. Essa viagem, porém, ficou para mim como uma recordação triste. Quando fiquei sabendo que tinha ganhado esse concurso, meu irmão Osni estava vivo e quis muito ir, mais um pouco e teríamos brigado por causa dessa viagem, pois eu escolhi a Maristela como minha acompanhante. Trouxe para ele, como trazia sempre, uma camiseta de todo lugar que ia. E também outros souvenirs. Ele morreu em um acidente sete meses depois que voltamos do Havaí. E entre as coisas que encontrei em sua casa, no inventário de objetos que uma pessoa deixa para os que ficam, estava a camiseta e os demais souvenirs. Tenho todos comigo, aqui em minha casa. E aqui ficarão enquanto eu viver. O Havaí será sempre para mim e minha irmã, a viagem a qual o Osni queria tanto ter ido, entre tantas lembranças dele que temos na vida, o Havaí é um pouco a mais.

O que posso dar de conselho àqueles que me leem: vão logo conhecer esse pedaço do mundo onde a natureza é tão grandiosa e imponente que nem os projetos estapafúrdios humanos ainda conseguiram apagar as marcas. Parece um palco de uma guerra dos deuses. Os deuses do Olimpo desceram na terra e fizeram seu combate lá. E os efeitos da catástrofe são estonteantes. Com lavas, vulcões adormecidos e acordados, cadeia de montanhas, ondas gigantes, baías com algas de cores inacreditáveis, o Havaí é inumano e o Kilauea seu espetáculo maior. Para os havaianos, nos vulcões há uma deusa que cospe fogo, luz e lava: Pele, a deusa filha de Kane, que vive no vulcão Kilauea. Ir ao Kilauea, com a pele tremendo pelos jatos de ácido sulfúrico que sai do solo, e assistir o espetáculo de Pele, a filha de Kane, que me propiciou a viagem, foi um encontro dos deuses. Foi divino.