Córsega, a indomável montanha perdida no mar, terra bravia de homens bravios
Da viagem à ilha de Corsega, restaram histórias para um livro e imensa vontade de retornar
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Da viagem à ilha de Corsega, restaram histórias para um livro e imensa vontade de retornar
Em abril de 2003, a Revista National Geographic publicou uma matéria intitulada “Honra e sangue na Córsega”. A matéria contava a história dessa turbulenta ilha mediterrânea que foi dominada por muitos povos e onde vivia – ainda vive – um povo bravio que resistiu à colonização. Ao final da matéria, pensei: ainda irei até lá. Nos doze anos seguintes, até que realmente consegui por os pés em terra corsa, fiz muitas viagens, nunca essa. Não conseguia organizá-la. Era necessária uma logística que envolvia muitas coisas. Fui deixando essa ilha como irrealizada, sem saber onde colocar, entre as coisas que almejamos em uma vida, mas que nunca alcançamos, selo, brasão de nosso fracasso em desejar, ou a tiraria do âmbito dos planos falidos, desse limbo de espera e iria até lá, fosse como fosse? Nem que fosse para dizer “sonhei em vão, não valeu a pena, mas estou aqui só para tirá-la da lista dos impossíveis de uma vida”?
Comecei a estudar sobre a ilha. Mais de dez anos pesquisando, lendo sobre ela, de vez em quando escutando música corsa pelo youtube, procurando escritores que falassem sobre ela, imprimindo mapas. Há três anos, a pesquisa se intensificou e comecei a estudar sobre Napoleão Bonaparte. É o personagem corso mais famoso, tirano e indomável, nasceu na capital da ilha, Ajaccio. Filho de comerciantes, ele viveu na ilha até sua juventude, quando se alistou no exército da França e começou seu caminho em direção a um império poderoso e sanguinolento que construiria. E entre as coisas que valem uma viagem, que descobri em sua casa-museu, em Ajaccio: quando tinha 8 anos, ganhou um cachorro e o batizou de Nero. Um menino de oito anos já obcecado com um imperador romano tão cruel? Prenúncio de um desejo a se realizar ou coincidência? Entenda cada um como quiser. Eu sou psicanalista e acredito bem menos em coincidências. Por vezes, em uma vida, caminhamos para ser o que queríamos, para fazer o que queríamos.
A ilha já foi invadida por cartagineses, gregos, mouros, romanos e depois pelos genoveses. Gênova deixou grandes marcas lá, pela língua, pelas construções, pela política. As grandes torres genovesas ainda estão lá, defronte ao mar, no golfo de Bonifácio, no extremo sul da Córsega, mostrando seu poderio: são os olhos e o controle sobre o golfo de onde se enxerga o Mediterrâneo até a Sardenha, onze quilômetros adiante.
O lema em todos os adesivos vendidos lá, nas camisetas, nos souvenirs, nas sacolas de supermercado, etc, é ‘souvent conquise, jamais soumise’ – frequentemente conquistada, jamais submetida. Esse povo resistente combateu todos os invasores, mas só foram independentes por 14 anos (1755-69), liderados pelo general corso Pasquali Paoli – na esquina de nosso hotel, em Ajaccio, tinha uma grande estátua dele, de costas para o mar, a contemplar a cidadela medieval. Após esses 14 anos, foram novamente submetidos aos genoveses, que venderam a ilha para os franceses, os “donos” até hoje. Há um movimento separatista, mas é minoria.
A ilha é pequena, cerca de 250 km de comprimento e 90 km de largura, quase sem transporte intermunicipal, poucos hotéis – e consequentemente, muito caros, sem fast-foods, sem lojas das grandes marcas, sem shoppings-centers. É necessário carro para se locomover, porém lá tem poucos carros para locação. No verão ela fica intransitável, com engarrafamentos e estradas lotadas, mas é preciso alugar o carro no continente, colocá-lo em um ferry e chegar lá motorizado. Um problema: se você conseguir retirar na ilha, o carro alugado antes, pela internet, o valor é muitíssimo mais caro do que alugar e retirar no continente. Se você alugar um carro na Itália, no porto de Livorno, por exemplo, como foi nosso caso, fica um valor obsceno deixá-lo depois lá, pois se aluga em um país e entrega em outro. A solução foi alugar o carro na Itália e entregar na Itália: nós o alugamos em Livorno, o estacionamos no quinto andar de um ferry gigantesco e 4h30 depois, atravessando o mar Tirreno, descemos na cidade de Bástia, ao norte da ilha. Mudamos de língua, mudamos de país e estávamos na Córsega (em seguida a atravessamos na diagonal, chegando a Ajaccio, na outra ponta, no Mediterrâneo: também mudamos de mar). Depois, em Bonifácio, atravessamos o carro com outro ferry em direção à Sardenha, ilha italiana, e o deixamos em Olbia, de onde pegamos um avião para Roma.
Esse foi um dos problemas de logística da viagem. O outro foi o monetário. E ainda outro: quem dirigiria? Já não gosto de dirigir em minha cidade, ainda mais em uma ilha montanhosa como essa. Não seria capaz. Nenhum de meus companheiros de viagem até então estavam dispostos a ir comigo e dirigir pelas estradas corsas, sinuosas, beirando montanhas, uma curva após a outra e com precipícios que se descortinavam frequentemente. Não faz jus dizer que a Córsega é uma ilha montanhosa, é mais: é uma montanha, que já foi vulcânica há milênios, no meio do mar.
Com Fabiana Silvestre e Silvana Centenaro, comecei a fazer o planejamento da viagem. Silvana é minha amiga rio-brilhantense de infância, nos afastamos em vários momentos, pelas contingências da vida. E reaproximamo-nos, como só as amizades verdadeiras e o amor verdadeiro conseguem: sobreviver ao tempo e à distância. Pela primeira vez juntas em viagem tão distante; as duas amigas, as meninas que estudaram juntas na Escola Fernando Corrêa da Costa – perdoem-me o exagero. De Rio Brilhante para os confins do mundo. E minhas amigas trouxeram para a viagem Patrícia Marques que completou o grupo, sendo nossa corajosa e destemida motorista. E com isso completou o projeto da viagem. Estava preocupada que minhas amigas não gostassem da viagem, de tê-las arrastado para um projeto complicado, caro demais, e elas se arrependessem de ter me seguido em uma “canoa furada”. Acho que não aconteceu, pois em Bonifácio fizeram uma surpresa e me deram um presente lindo de lá, típico do Mediterrâneo, que hoje enfeita minha estante, no consultório.
Tudo o que vi e vivi nesses quase vinte dias na Córsega não cabem em uma crônica, talvez coubessem em um livro. Talvez pudesse escrever algo como o grande escritor alemão W. G. Sebald fez em “O Campo Santo”, suas impressões sobre a Córsega. Talvez. Vou citar três das coisas que vi e não esqueço: o pôr-do-sol nas Ilhas Sanguinárias, as casas penduradas nos penhascos de Bonifácio e as Ilhas Lavezzi. Tem duas ou três hipóteses do porque as Ilhas Sanguinárias são assim chamadas. Prefiro essa: visto a partir delas, o sol se deita no mar dessangrando-se, esparramado, despedaçado, tal como o coração de quem ama e não tem seu amado. Quanto às Ilhas Lavezzi, entre a Córsega e a Sardenha, ficaram famosas por uma tragédia: o naufrágio da fragata La Semillante, que ia com 695 soldados para a Guerra da Criméia, em 1855. Todos os homens morreram e foram encontrados dias depois, na costa de uma das pequenas ilhas, pelos pescadores. Todos, em decomposição, foram enterrados em um cemitério coletivo feito na ilha. Em uma ilha de preservação da fauna e flora, belíssima, há um cemitério e monumento aos que ali encontraram sua última morada.
E, para quase encerrar, Bonifácio. Dizem os historiadores que Bonifácio está descrita na Odisséia de Homero. Ulisses, perdido por vinte anos pelos mares, sem conseguir chegar a Ítaca, chega ao refúgio dos Lestrígones. Povo violento, ardiloso, habitava em construções sobre os penhascos. Ao se aproximar da ilha, Ulisses a descreve: enormes rochas calcárias, escarpadas, brancas, com recortes sinuosos. Ao entrar em seu porto, se faz entre duas rochas, quase como um canal, navega uns bons minutos e, chegando ao porto, é preciso pernas para subir até a cidadela. Descrição perfeita de Bonifácio, no extremo sul da Córsega. A questão é: coincidência ou alguém descreveu a Homero esse lugar e ele colocou na Odisséia? Não se tem provas de que nessa época os gregos tenham navegado até a Córsega. Mistério.
Meses atrás tive o seguinte sonho: estava sentada no dorso de um leão de pedra que ficava no alto, uma montanha com formato de leão e, das alturas, contemplava o mar com vários filetes estreitos de terra que, como tentáculos, se estendiam pela costa. Do alto do dorso do leão eu enxergava um formato de polvo que tentava abraçar um tanto de praia. É uma cena impossível de uma paisagem que não vi na Córsega, que nem sei se é possível de ver a partir desse ângulo. O que aconteceu foi o seguinte: quase chegando a Bonifácio, na curva da última montanha, na entrada da cidade, tem um mirante. Paramos e tiramos fotos: Mirante de Roccapina. A cena desse mar com esse golfo em que pensei em um polvo é essa em que Silvana tirou a foto. Seguimos viagem. Na cidade comprei um livro sobre os mitos corsos. No lugar onde tinha o mirante, do outro lado, nas montanhas, contrário a mirada do mar que nos capturou, há uma grande rocha com o formato de um leão, o Leão de Roccapina. Ainda segundo esse livro, as grandes pedras que existem na ilha, com formato de várias coisas, foram suportes à mitologia.
Enfim, o leão corso, gigante de pedra que não enxerguei, pois estava às minhas costas, está em meus sonhos. A Córsega ainda está em meus sonhos, mais precisamente, Bonifácio. Preciso voltar lá. Enquanto escrevo essa crônica, pensei em outro trajeto para chegar a Bonifácio. Menos complicado. Mas não vou sozinha. Preciso de companheiros de viagem que se disponham a entrar no sonho alheio e com ele, compartilhar um caminho. Para o que der e vier. Estou à procura.
*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, fundadora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.
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