‘Luta pro resto da vida’: como ex-usuários conseguiram abandonar as drogas em Campo Grande
Comunidades terapêuticas em Campo Grande recebem usuários de drogas que viviam em ‘minicracolândias’ e buscam recomeço
Danielle Errobidarte –
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Sem consciência da passagem do tempo, sem sentir fome ou frio, e sem contato com amigos ou familiares. Essas são algumas das condições das pessoas que vivem nos pontos conhecidos como ‘minicracolândias’ em Campo Grande, seja na Vila Nhanhá, na região da antiga rodoviária ou no Bairro Tiradentes. Uma parcela significativa deles recebe, em algum estágio do vício, uma luz no fim do túnel – e na consciência. São os atendidos por comunidades terapêuticas da Capital, que passam por um longo processo de desintoxicação, autocontrole e retomada da vida social.
O Jornal Midiamax publica nesta semana série de reportagens sobre ‘minicracolândias’ em Campo Grande e a disseminação de bocas de fumo pelos bairros da cidade, assim como as implicações sociais que esse tipo de atividade criminosa causa. Leia as outras reportagens da série:
“Narcotráfico doméstico avança e ‘minicracolândias’ se espalham por bairros de Campo Grande”.
Vidas entregues à droga: Mesmo com ajuda em Campo Grande, por que é tão difícil abandonar o vício?
A estrada até a aproximação com a família, retomada do emprego e retorno aos estudos não é asfaltada e nem tem sombra para descanso. Muitos dos que conseguem veem colegas da casa terapêutica desistir no meio do caminho, têm recaídas após anos recuperados ou voltam para as ruas.
Os que permanecem tentam incentivar pelo exemplo. É o caso de Vinicio dos Santos, de 30 anos, voluntário e coordenador no Projeto Nova Criatura. Como muitos outros, ele começou o vício no álcool, que pouco tempo depois se tornou ineficaz para sustentar o vício.
“Eu sou mestre de obras, tenho uma profissão visada, e como sempre ganhei bem exagerava no álcool. Ganhava R$ 1 mil numa semana, passava duas sem aparecer no serviço. Depois conheci a cocaína e a pasta base”, relata. Natural de Bonito, cidade a 300 quilômetros da Capital, o vício ficou mais fácil de ser sustentado por Vinicio quando ele chegou a Campo Grande, há dois anos.
“Eu vim para Campo Grande para trabalhar. Como ganhava bem, não soube administrar, porque a droga não deixa você administrar sua própria vida, ela te bloqueia de tudo. Foi ficando difícil para mim e eu tive que procurar uma recuperação, que estou fazendo há dois meses”, afirma Vinicio.
Com o dinheiro que recebia, Vinicio chegava a alugar imóveis para usar droga, se esconder de familiares e amigos e presenciou inúmeros roubos no tempo em que ficava nas ruas. “É uma doença que não tem cura, tem tratamento. É tipo um câncer, fica aqui na gente e não sai mais”, compara.
O mestre de obras afirma que a maior motivação para continuar o tratamento é a expectativa de recuperar a vida de antes. “Já cheguei a passar semanas sem dormir, usando drogas. O corpo ficava exausto, só que a droga consegue deixar o cérebro ativo 24 horas. Cheguei a emagrecer muito, pesava 56 quilos e hoje estou com 88 quilos”, relembra Vinicio.
Apesar de ter casa e emprego, Vinicio conta que se afastava das pessoas mais próximas quando passava semanas usando drogas nas ruas. Como efeito dos entorpecentes, ele não tinha mais vida social e nem se preocupava em manter-se nos empregos que era contratado.
“Com minha família eu cortava relação totalmente, porque tentava fugir deles. Não sentia falta, a droga faz você burlar essa falta, você só sente saudade da droga mesmo. No meu trabalho meus patrões sempre gostaram muito de mim, só que eu nunca respeitei eles”, lamenta.
Vinicio reconhece que a luta contra o vício será para o resto da vida, já que ele considera que o maior tratamento é treinar seus próprios pensamentos. “Não é fácil até hoje, é uma luta constante. Tem gente que tenta não tomar o remédio que os médicos receitam, mas eu aconselho tomar, porque o organismo pede alguma coisa. Eu sei que vai ser uma luta para o resto da vida”, afirma.
Álcool é só o começo
Assim como Vinicio, Tiago Gonsales Benitez, de 21 anos, veio para Campo Grande do interior, da cidade de Camapuã. Ele começou a usar drogas ainda na adolescência, aos 15 anos, por problemas familiares e influência de amigos.
“Comecei com o álcool, foi quando conheci o baseado e depois a cocaína e o crack. Quando conheci a pasta base foi quando perdi o domínio da minha vida, do meu dinheiro, de tudo. A droga soava como um alívio para mim, já que tinha problemas de aceitação, na minha família nunca conversávamos, não tinha um ambiente de sentar e perguntar o que estava acontecendo”, lembra.
Tiago teve a consciência de que precisava de auxílio médico, e começou a fazer parte da mesma comunidade terapêutica que Vinicio, quando passou a morar nas ruas do Centro, na região da antiga rodoviária. “Quando me deparei com a rua vi que eu perdi o domínio totalmente. Fiquei um tempo no Tiradentes e também no Centenário. Mas a gente sofre muito. Quando você está com alguma coisa na cabeça para te anestesiar, você não passa esses problemas de fome, frio e falta das pessoas”, afirma.
‘A mudança incomoda’
Quando o efeito da droga passa, Tiago e outros usuários costumavam procurar projetos sociais e instituições da Prefeitura que doassem comida e cobertores. Aos 20 anos, ele decidiu procurar ajuda médica e passou a fazer o tratamento.
A primeira etapa, de desintoxicação, foi a mais dolorosa. “Estou aqui na casa há oito meses, mas no começo você chora, esperneia. A mudança incomoda. Dessa vez fiz o tratamento psiquiátrico, com um pouco de remédio também”, lembra.
Tiago explica que o preconceito de quem vê usuários em situação de rua, por vezes encostados em calçadas ou escondidos embaixo de cobertores, não imagina o quanto os olhares tortos influenciam na autoestima.
“Muitas pessoas olham para quem está na rua e pensam ‘aquela ali chegou no fundo do poço’, mas não, ela pode ir muito além. Esse mundo das drogas é triste porque ela não destrói só você, mas seu interior, sua família e tudo que está ao redor. A pessoa tem que querer verdadeiramente a mudança”, afirma.
Atualmente, ele se orgulha de contar que retomou os estudos e voltou a fazer cursos que gostaria de ter feito na adolescência. “Eu falo com experiência, é difícil sair sozinho. Você não precisa ir para a clínica, a pessoa pode ir para um narcóticos anônimos, para uma igreja, uma reunião de grupo, tudo vai ajudar a sair”.
Comunidade terapêutica
O gestor da Casa Nova Criatura, localizada no Bairro Jóquei Clube, Carlos Thiago Nogueira Nantes, explica que o projeto existe desde 2002, mas o tratamento oferecido pela comunidade terapêutica iniciou em 2018.
Segundo ele, um dos pastores do projeto realizava uma ação social em presídios desde 1992, quando percebeu que muitos dos egressos acabavam voltando para as ruas por não terem local para ficar.
“Às vezes, ele não estava no domicílio dele, o cara ‘cai’ com droga em outro estado e não retornam ele para a cidade de origem, aí eles ficavam na cidade, mas ficavam na rua. Aí foi feito em 2002 esse projeto para atender egressos e hoje funciona uma república no local. Eles têm emprego e trabalham durante o dia”, explica Carlos.
Entretanto, o projeto segue com atendimento para 20 pacientes por vez, que é a quantidade que a casa suporta. O tratamento de recuperação é feito em seis meses e consiste em desintoxicação na primeira fase, ressignificação na segunda e reinserção gradativa na terceira.
“No quinto pro sexto mês a gente organiza toda documentação deles e temos parceiros, empresários nas áreas de limpeza e construção, que oferecem empregos para eles”, explica. Carlos relata que o vice-presidente da instituição é esposo da médica que atende gratuitamente os pacientes a cada 15 dias, já que ele passou pelo tratamento no projeto. Os funcionários estimam que cerca de 100 pessoas já receberam o tratamento.
“As pessoas chegam destruídas não só fisicamente pela rua, nas psicologicamente pela humilhação, por tudo que passam nesse meio, pela vergonha e decepção consigo mesmo. O que buscamos é dar ferramentas a eles para se manterem quando saírem daqui”, afirma.
Carlos também já foi atendido pela unidade, em 2014. Ele relata que foi usuário de drogas durante uma década e chegou a pesar 47 quilos. “Eu vivia de pequenos furtos e não tinha mais coragem de trabalhar. Quando você chega no fundo do poço é quando você dorme pensando em usar e acorda procurando. Eu só fui procurar ajuda porque falei para mim mesmo ‘ou eu vou, ou eu morro’. Quando decidi, foi algo muito forte espiritualmente em mim”, comenta.
Atualmente a instituição trabalha com a autogestão dos atendidos e possui funcionários como nutricionistas, médicos, assistente social, educador físico e psicólogo. “Aqui eles têm armário com cadeado e a chave fica com eles, porque desde o início queremos empoderá-los, dar essa responsabilidade”, finaliza Carlos.
Confira a lista de comunidades terapêuticas em Campo Grande clicando aqui.
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