Quando acordou com os gritos na madrugada, em uma cama de concreto, Jaene Silva de Miranda sabia o que iria testemunhar. Tinha visto outras mães imigrantes serem separadas dos filhos após atravessarem ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos. Só não sabia que seria a sua vez.
“Uma mulher na minha cela viu meu filho e gritou: brasileño, brasileño”, conta a brasileira de 45 anos, que estava num centro de detenção do Arizona, fronteira com o México.
Eram duas horas da manhã -as separações sempre ocorriam naquele horário. Por uma pequena janela na porta, da qual via o corredor e as janelinhas de outras celas, ela avistou o filho mais novo, de 8 anos, com outras crianças.
Começou a bater na porta, tão forte que achou que ia quebrar o vidro. Ao menino, a seu pedido, foram reunidos seus outros dois filhos, de 10 e 16 anos. Os irmãos foram conduzidos para um ônibus de itinerário ignorado. Só veriam a mãe 44 dias depois.
“A hora em que tiraram meus filhos, tiraram tudo de mim”, disse Miranda em entrevista à Folha, já com a família reunida, nesta sexta-feira (20). “Eu não faria de novo.”
A família saiu do interior de Minas Gerais rumo aos EUA. Fizeram o trajeto sozinhos, com dicas de quem já fora. Compraram passagens e enfrentaram cinco dias de viagem, em maio, com quatro voos e três horas a pé pelo deserto.
“Comprei um galãozinho de água, mas acabou. Não tinha nada em volta, estávamos só nós. Acho que a gente desviou para o lugar errado. Quando vi o carro da polícia, acenei e me entreguei”, lembrou.
A mãe e as três crianças foram separadas tão logo chegaram ao centro de triagem –resultado da política de tolerância zero do presidente Donald Trump contra a imigração ilegal. Cada um foi para uma cela diferente.
Eram pequenas salas, sem janelas, com dois bancos de concreto. A de Miranda tinha quase 60 mulheres. Dormiam no chão, cobertas por mantas de alumínio. “Era como mostraram nos jornais”, afirmou.
Nos três primeiros dias, ela só conseguia ver o caçula, que estava numa cela do lado oposto. Acenava pela janelinha, mas não conseguia escutá-lo. Apenas o ouvia chorar.
A única refeição era macarrão lámen instantâneo. No café, no almoço e na janta.
As crianças ganhavam também suco e uma bolachinha. Mas quem não acordasse às 6h não recebia a refeição da manhã. “Eu não acordava”, contou à reportagem o mais novo dos irmãos. “O miojo era cru, a água era meio morna.”
Um dia, um agente pediu à mãe que fosse consolar a filha do meio. Ela só chorava e quase não comia.
“Ela estava até com o pescocinho comprido. Emagreceu muito”, lembrou Miranda, que se assustou ao ver as olheiras da menina. “Estava tudo roxo, de tanto chorar.”
Ela já sabia que seria separada dos filhos. Mas não lhe diziam para onde eles seriam levados. “Eles nunca falam nada. Te chamam, começam a te revistar, te colocam no ônibus e pronto.”
Após a separação definitiva, naquela madrugada, quando as crianças foram conduzidas a um abrigo de menores, ela ainda passou mais dez dias no centro de triagem. Depois, foi levada a outra prisão. Depois a outra. E a outra.
Sem falar nem entender espanhol nem inglês, sua única companhia era uma Bíblia em português, obtida na cadeia. Às vezes, via TV, sem som, na sala de convivência. “Só ficava olhando, para o tempo passar.”
No abrigo de menores, a sete horas de distância pela estrada, os três irmãos ficaram em quartos separados. Ao chegarem, uma das primeiras orientações foi repassada ao mais velho, no computador, com um aplicativo de tradução: “Não pode abraçar”.
“Eu falei: mas são meus irmãos. Estavam chorando. E eles me responderam que eram as regras”, disse o garoto.
Na prisão, contato físico também era proibido. Os agentes avisaram às imigrantes: “Se encostar em alguém, te deportam”, disse Miranda.
A mineira tem parentes nos EUA, mas não avisou que estava indo. Uma delas desconfiou ao ler uma reportagem em um jornal sobre o caso, que citava a idade das três crianças.
“Lii as idades e pensei: meu Deus, esse é o mais velho. Essa é a do meio. E esse é o mais novo”, contou a prima dos menores, Geiza Miranda Araújo, que vive perto de Boston, nordeste do país, a 4.250 de Tucson.
Ela começou a vasculhar dados do ICE, a agência de imigração americana, para buscar a tia. Passou um dia tentando contato e procurando o nome na internet. Descobriu o paradeiro quando resolveu trocar a ordem do sobrenome: Jaene Miranda da Silva.
A família contratou uma advogada, a brasileira Annelise Araújo, que passou a acompanhar o caso. A cônsul honorária do Brasil no Arizona, Rosilane Novaes, também visitou a mãe na prisão, bem como as crianças. Foi ela quem contou a Miranda onde seus filhos estavam, e conseguiu o primeiro telefonema para eles.
“Foi o meu mais velho que atendeu. Era só choro. Eu de cá, ele de lá”, lembra Miranda.
Os advogados pediram em audiência que a mãe fosse liberada sob fiança. Ela acompanhou por telefone. Foi a primeira vez que o caso foi ouvido por um juiz, sem tradutor.
“Era tudo em inglês. Eu dizia comigo: ela vai falar alguma coisa para mim, vai me explicar”, conta Miranda. “De repente, só ouvi um ‘thank you’ [obrigada]. Pensei: ai… Desliguei e fiquei doida querendo saber o que tinha acontecido.”
Num telefonema à sobrinha, ela soube que seria solta sob fiança de US$ 7.500 (cerca de R$ 28 mil). Mas não tinha certeza se veria as crianças.
Havia dias que a família tentava liberá-las do abrigo, para mantê-las sob a guarda dos parentes nos EUA. O governo pediu documentos. Pediu digitais, para checar antecedentes criminais. Pediu traduções.
São precauções da lei para combater o tráfico humano e evitar expor os menores ao perigo. Mas a família se queixa de que pediam uma coisa após a outra, com dias de intervalo. “Era uma tortura”, disse a sobrinha.
Miranda saiu da prisão no sia 11 de julho. Foi entregue na rodoviária, onde pegaria um ônibus rumo a Boston. Ainda não sabia se veria os filhos.
Horas antes, as crianças haviam saído do abrigo, depois de muita insistência dos advogados -que foram apelidados de “pain in the neck” (gíria para inconveniente) pelos funcionários da instituição.
Ao chegar à rodoviária, a mãe viu a cônsul brasileira. Sorriu e soltou uma lágrima. Mas ouviu dela: “Não chore ainda. Olhe quem está lá”.
Ao longe, viu seus três filhos. A menina e o mais novo já estavam de pé, aos prantos. “Corre”, disse a cônsul. A rodoviária parou para ver.
A família não sabe o que vai acontecer. Miranda está em processo de deportação, mas quer pedir asilo nos EUA. A advogada alega que a saída do Brasil foi forçada por circunstâncias (que não descreve).
As crianças, por ora, se revezam no cangote da mãe e dão abraços a quem pedir. Miranda quer ficar junto dos filhos. “Não quero mais aquele medo que eu passei.”
A prática de separar famílias foi suspensa após a repercussão negativa. O governo Trump tem mais quatro dias, por ordem judicial, para reunir todas as crianças aos pais.