Como ficam profissionais que ouvem os piores relatos de vítimas de violência?

Três profissionais da 1ª Casa da Mulher Brasileira do país relatam como é lidar diariamente com a realidade de mulheres em vulnerabilidade.

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“Resiliência” é a capacidade de seguir em frente perante as dificuldades. É, também, a palavra-chave para quem tem como ganha-pão a responsabilidade de acolher, assistir e orientar pessoas em vulnerabilidade. Na Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, espaço no qual mulheres vítimas de violências dos mais diversos tipos são atendidas, são mais de 200 funcionárias que se preparam para lidar diariamente com o sofrimento de outras mulheres. Todavia, a tarefa não é fácil.

Raro é o dia em que, no fim do expediente, não se leve um pouco que seja da história de Marias, Lourdes, Silvanas ou Terezas na bolsa. Nas funcionárias – desde quem atua na triagem na recepção à juíza que assina medidas protetivas  – cada vítima de violência deixa um traço, seja do relato do marido que espancou, do namorado que humilhou, do vizinho que abusou ou do pai que expulsou de casa. A cada novo atendimento, há a certeza da acolhida. Mas, não há qualquer garantia de que não fiquem marcas em quem as assiste.

“A gente tenta ‘desligar’, tenta viver a nossa vida, cuidar da nossa família, dos nossos filhos. Temos treinamento para isso e na maior parte do tempo conseguimos, mas é muito difícil. É preciso muito esforço, porque os danos causados pelas mulheres que sofrem violência também respingam em que trabalha no acolhimento. Temos que manter a mente sã, para não entrar em esgotamento por lidar com sofrimentos”, comenta a assistente social Ana Karoline Bruneri Fialho, uma das 28 mulheres que atuam no atendimento psicossocial da entidade. Ela atendeu a reportagem ao lado da psicóloga Tatiana Samper e da representante do governo Federal na Casa, Tai Loschi.

Para esta reportagem especial, as três concordaram compartilhar histórias marcantes de abuso e violência com as quais se depararam durante atendimentos. Também concordaram em relatar como é estar do lado oposto da mesa na qual a assistência ocorreu. E como esse dia a dia lhes afeta.

“É difícil destacar uma só história que marcou, porque todo dia são coisas terríveis. Desde a mulher que sofreu violência sexual ou foi espancada pelo marido, à mulher que há 30 anos sofre uma violência emocional sistemática, dia após dia. O treinamento que recebemos quando viemos para cá destaca isso, temos que ser preparadas para estar sempre resilientes. Mas há, sim, casos que marcam, que a gente acaba levando para casa, de tão absurdo que é”, comenta Tai Loschi.

O agressor do PCC

Uma mulher acompanhada dos filhos deu entrada na Casa da Mulher Brasileira, apresentando marcas de violência. Ela relatou ter sido espancada pelo companheiro, que seria membro da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) e dependente químico. O atendimento ocorreu na véspera do plantão de fim de semana, e por isso grande tensão se instalou entre os gestores, pois havia receio de que o agressor tentasse matar a mulher.

Ela foi mantida segura durante toda a sua estadia, sendo sempre assistida até quando saísse fora da unidade para fumar. Os filhos dela também ficavam sempre sob vigilância. Para tanto, funcionários foram orientados e um alerta foi emitido para a Guarda Municipal a fim de que a vigilância, inclusive pelas câmeras de segurança, fosse reforçada naquele fim de semana. “Muito difícil relaxar diante da possibilidade de uma invasão, por menor que fosse. Foi um fim de semana que não descansei como deveria. Não desliguei a mente”.

Tai Loschi, gestora

Casa da Mulher Brasileira

Criada em 2015, a Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande foi a primeira unidade a ser construída no Brasil. Em suas instalações, governo federal, município e governo estadual coexistem e concentram os serviços voltados à proteção da mulher. São 232 funcionários, dos quais mais de 95% são mulheres, divididas entre Guarda Municipal, Polícia Militar, Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher, Defensoria Pública, Juizado Especial, Promotoria Pública, Atendimento Psicossocial e diversos outros serviços de assistência.

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Espaço abriga diversos serviços voltados a mulheres vítimas de violência (Foto: Marcos Ermínio | Midiamax)

Há 8 meses na instituição, Ana Karoline Bruneri Fialho de Almeida é casada e mãe de um filho de 4 anos. Até tomar posse como uma das 14 assistentes sociais da entidade, ela trabalhava com políticas públicas para crianças e adolescentes, inclusive como conselheira tutelar. Mas, após assumir o posto na Casa da Mulher Brasileira, Ana viu a própria vida se transformar.

“Eu me identifiquei muito com essa política pública, mas ela foi um pouco avassaladora na minha vida. Eu me deparei com a situação absurda que muitas mulheres vivem e tive pela primeira vez a percepção de como o machismo também me afeta. É difícil de explicar, mas não tem como não se imaginar no lugar delas. Esse trabalho me ajudou muito a ter a dimensão de que a sociedade é realmente machista”, comenta.

Com quatro meses de atuação na Casa, Ana relata que demorou a desconectar sua vida profissional da vida pessoal. “Nesse tempo eu quase entrei em colapso. Estava sempre cheia de preocupações, é como se eu me visse nessas mulheres. Eu não vivi o que elas vivem, mas não parava de pensar que ali poderia ser eu, ou uma amiga. Levar para casa [esses pensamentos] estava no meu inconsciente. Hoje faço acompanhamento psicológico, tenho encaminhamento para o psiquiatra, para me preservar mais emocionalmente”, diz.

Revogou a medida protetiva

Uma mulher que apanhava frequentemente do marido e que tinha sido atendida na Casa da Mulher Brasileira retornou ao local para retirar a queixa de agressão, violência emocional e patrimonial. A ela, foi explicado que retirar a queixa não impediria mais a investigação, mas ela insistiu. Retirou, também, a medida protetiva, que obrigava ao agressor manter distância dela, mesmo que ele a tivesse ameaçado de morte.

“Acontece sempre, infelizmente. Muitas vezes a gente consegue fazer a vítima enxergar que está num ciclo de violência e quando ela utiliza os recursos que nós possibilitamos, ela consegue romper com isso. É um primeiro passo para a emancipação dela. Mas, quando elas voltam atrás e voltam a se submeter ao relacionamento abusivo, a sensação é absolutamente frustrante”.

Ana Karoline Bruneri F. de Almeida, assistente social

Segundas-feiras tensas

A reportagem entrevistou as funcionárias numa segunda-feira. Segundo elas, é o dia mais corrido da semana, já que muitas das agressões ocorrem aos sábados e domingos. Neste dia, foram cerca de duas horas de conversas, que ocorreram intercaladas e por partes, porque a demanda de atendimentos na Casa da Mulher Brasileira estava alta.

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Funcionárias da Casa da Mulher Brasileira durante ato em 8 de março de 2017 (Foto: Arquivo)

“Teve uma segunda-feira que fizemos 37 atendimentos de agressão. A segunda é o dia mais tenso, a gente já começa a semana assim. Acho curiosa a reportagem, porque é difícil as pessoas observarem as necessidades de um cuidador, como psicólogos e assistentes sociais. Quem trabalha aqui já são pessoas resilientes, que têm essa característica de seguir em frente apesar das dificuldades. Mas existe uma pressão muito grande e precisamos nos cuidar”, aponta a psicóloga Tatiana Samper, que também é do atendimento psicossocial.

“Eu não trabalharia aqui se eu não visse que a política é muito bem estruturada, porque do contrário haveria muita frustração profissional. A diferença é que não é um relatório, mas a vida de outra pessoa. A gente tem, sim, alguns problemas na rede, mas eu sinto que todas as mulheres serão bem assistidas, e isso faz com que todas nós soframos menos”, relata.

Para ela, no entanto, entrar na Casa da Mulher Brasileira proporcionou uma dimensão política do feminismo. “Nosso cotidiano nos transforma a ponto da gente se confrontar. É muito comum a gente se ver nos atendimentos, porque nós vemos a nossa constituição enquanto mulher ali, na nossa frente”.

A mulher com deficiência mental que foi estuprada e engravidou

Uma mulher adulta que apresentava deficiência mental foi estuprada e a gravidez só foi contatada no sétimo mês, após uma consulta médica de rotina. Ela compareceu à Casa da Mulher Brasileira acompanhada de uma irmã e infelizmente não conseguiu fazer o aborto legal, porque o prazo legal para a interrupção da gravidez havia passado.

“Como que um homem é capaz de abusar de uma pessoa com deficiência mental? O que vai ser dessa criança quando ela crescer? Tivemos que orientar em relação aos direitos dessa mulher e a primeira coisa foi levá-la a um psiquiatra para que a deficiência mental fosse provada. A família teria que requerer pensão alimentícia e para isso ter o reconhecimento da paternidade. Mas, como um estuprador vai ser pai? Que relação familiar seria essa?”

Tatiana Samper, psicóloga

Cuidar de quem cuida

Com o tempo, é mais que natural que a sororidade – a irmandade entre mulheres que lhes possibilita serem solidárias e empáticas uma com as outras – se instale no ambiente de trabalho. “A gente brinca, faz humor. Precisamos ser leves, estar leves. Quando percebemos que uma colega está mal por um motivo ou outro, tentamos aliviar a barra. Se a gente não se ajudar a se fortalecer, não funciona”, comenta Tai Loschi.

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Projeto ‘Cuidando de Quem Cuida’ visa proporcional saúde mental de funcionários (Divulgação/PMCG)​

​Uma política púbica voltada às funcionárias também foi implantada, o projeto “Cuidando de Quem Cuida”, que visa exatamente proporcionar apoio e saúde mental às mulheres que realizam assistência. Além disso, o grupo recebe semanalmente instrução para meditações guiadas e outras formas de relaxamento. Tai, por exemplo, aposta na acupuntura. Ana faz análise e Tatiana pretende retornar em breve para o apoio psicológico.

Mas, apesar dos danos causados pelo estresse e decorrentes de toda a atmosfera de empatia que existe na entidade, a Casa da Mulher Brasileira também sempre guarda motivos para comemorar e sorrir.

“É impagável a sensação de quando uma mulher consegue romper o ciclo de violência e reassumir a vida. Existem muitos caminhos para isso. Aqui nós proporcionamos que elas tenham proteção, abrigo, assistência jurídica e fazemos até formação profissional. Quando sabemos que uma vítima de violência concluiu um curso e já vai trabalhar e pode, a partir daí, retomar controle sobre a vida, é quando a gente ganha o dia”, conclui Tai.

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