Não faz muito tempo que as gôndolas de supermercados eram preenchidas basicamente por produtos para cabelos lisos ou alisados, num contexto em que essa enorme variedade de cosméticos diziam claramente qual era o estilo de cabelo socialmente aceito no Brasil.

Hoje, o aumento de xampus, cremes de hidratação, mousses e finalizadores específicos para cabelos cacheados e crespos, nessas mesmas prateleiras, mostram que algo mudou, mas não o suficiente: por mais que estrelas como Beyoncé e Thaís Araújo apareçam nas redes com seus cachos, o racismo presente na pressão estética pelos lisos e alisados está longe de acabar.

Não é a toa que, neste domingo (3), o 1º Cacheia reúne adeptos dos cachos e crespos na Praça Ary Coelho, no coração da cidade. Além de evidenciar a beleza dos penteados afros, o encontro quer discutir o que está por trás da imposição do alisamento dos fios. O objetivo é reunir pessoas para incentivar a liberdade capilar e a aceitação do seu cabelo natural. E também para ajudar meninas e mulheres que buscam novas referências do que é belo.

Rudy Nolasco, um dos organizadores do Cacheia Campo Grande | Foto: Henrique Arakaki | Midiamax

“Ah, teu cabelo é feio, por que você não alisa? Eu, se fosse você prendia e lavava o cabelo”, contava, no coreto da praça, uma das participantes do evento, no momento em que a reportagem do Jornal Midiamax chegou ao local.

A frase foi repetida a fim de revelar o racismo que pessoas negras sofrem quando recebem comentários sobre as madeixas. E foi justamente a partir do cansaço de ouvir comentários assim que surgiu o evento.

“É para dar um basta e mostrar que existe beleza no cabelo afro. Aqui, ouvimos relatos de mulheres de cabelo cacheados para mostrar que não precisamos mudar nosso estilo, para mostrar o quão bonito uma mulher pode ficar com o cabelo natural. Também estamos falando sobre o preconceito, que existe e que tem que acabar. É um grito de ‘basta’, de ‘chega'”, comenta Rudy Nolasco, um dos organizadores do evento.

Pressão estética

A educadora social Romilda Pizzani | Foto: Henrique Arakaki | Midiamax

Coordenadora do Fórum das Entidades do Movimento Negro de Mato Grosso do Sul, a educadora social Romilda Pizzani, de 45 anos, descreve que ainda hoje há uma pressão na área estética muito grande com relação ao cabelo afro.

“Participo hoje dessa mostra de penteados porque precisamos de representação e de mostrar que nossa vaidade não tem que ser condicionado ao alisamento, somos bonitas e vaidosas do jeito que somos”, comenta. “São cabelos belos e bonitos do jeito que são. E esse evento realmente vem para trabalhar a vaidade dessas mulheres e mostrar que o cabelo pixaim é bonito”, complementa.

Empoderamento e representatividade

Previsto para durar até às 18h de hoje, o evento conta com atrações musicais, participação de ativistas, mostra de produtos e até com uma cabeleireira especializada em penteados para cabelos cacheados e crespos. A organização espera aproximadamente 300 pessoas até o fim do evento, que já contava com aproximadamente 150 quando a reportagem esteve por lá.

Um dos pontos altos do evento, no entanto, são justamente os relatos de racimo associados aos elementos identitários pretos – que vão desde o cabelo crespo e tranças, ao uso de turbantes. Um desses relatos é da empresária Fátima Aparecida Goes, de 60 anos.

“Fui convidada a dar meu relato após ter sofrido uma situação de racismo pela minha cor. Há três anos, quando era responsável pela alimentação de uma família em Campo Grande, sofri racismo ao fazer a entrega de um panetone a irmã da minha patroa”, conta.

Segundo Fátima, ela chegou a ser agredida por um zelador por ter usado o elevador social de um prédio de luxo. “Eu estava com o cabelo no turbante, cheia de panetone. Já havia ido ao prédio várias vezes e um zelador me viu entrando no elevador social. Ele me falou que pessoas que nem eu não poderiam frequentar o elevador. Cheguei a ser agredida”, relatou.

ativistas relatavam situações de racismo no coreto da Ary Coelho | Foto: Henrique Arakaki | Midiamax

Neste domingo, a empresária fez questão de aparecer ao local e dar seu relato. Acompanhada dos filhos de 25 e 27 anos, ela discursou dizendo que não quer que a violência que sofrera caia no esquecimento.

“Quando usamos nossos cabelos do jeito que são, cacheados, com turbante, estamos existindo. Nosso cabelo natural é uma resistência. E um evento desses é um pedido de socorro”, conclui.