Se foi na pandemia em MS: vítima de Covid aos 66 anos, João deixa legado de amor e cuidado
João Gomes ficou um mês internado na UTI tentando superar as complicações da Covid, mas faleceu na última semana. Em Campo Grande, ele deixa uma história digna de ser contada
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João Gomes Neto tinha apenas 66 anos quando foi vítima da Covid-19 há uma semana, no sábado de 25 de setembro. No entanto, após um mês de luta, ele não resistiu à pneumonia causada pela doença e faleceu, deixando a saudade se alastrar por familiares e amigos que sempre vão lembrar dele como um homem dedicado à família.
Cuidador. Essa é a característica mais marcante na personalidade de João Gomes, segundo o filho Paulo Ricardo Gomes, de 44 anos. Na hora de recordar do legado deixado pelo pai, o jornalista enfatiza que ele sempre foi uma pessoa batalhadora e com uma conduta ética digna de ser lembrada. Essa força foi conquistada ao longo dos anos de esforços, quando precisou atravessar o país para conseguir uma vida melhor em terras sul-mato-grossenses.
A grande viagem no ‘pau de arara’
Natural de Garanhuns, uma pequena cidade no interior de Pernambuco, João tinha seis anos quando entrou num “pau de arara” — meio de transporte muito comum no Nordeste — junto com a família rumo à cidade de Bandeirantes, em Mato Grosso do Sul, para formar terra. Ao chegarem aqui, eles se instalaram em uma pequena chácara e por muito tempo se dedicaram à agricultura de subsistência.
“Meu pai contava dessa viagem, que ele se lembrava de alguma coisa. Devia ter uns seis anos mais ou menos. Ele lembra que foi uma viagem muito comprida, muito longa. Uma vez eles pararam na beira de um rio que era muito grande e muito lindo”, disse Paulo.
No entanto, desde muito jovem o João sabia que deveria se mudar para Campo Grande para estudar em busca de mais oportunidades de emprego.
“Ele devia ter 10 anos quando decidiu vir para Campo Grande. Então, ele veio para estudar e ele estudava e morava de favor na casa de umas pessoas. Ele lavava o carro, cuidava de algumas coisas da casa em troca de morada e comida. Depois de um tempo, ele passou a trabalhar em um bar”.
Depois de alguns anos, João conseguiu se formar em técnico de contabilidade e começou a carreira dele em um banco da Capital. Lá, iniciou como office-boy e terminou como gerente, depois de 30 anos de contribuição. No entanto, o banco faliu e ele foi para duas empresas, onde trabalhou até se aposentar.
A dedicação constante com a profissão também passou para os três filhos, hoje todos formados. Segundo Paulo, ver os filhos com diplomas era uma das maiores conquistas do pai.
“No contexto, se você pensar que uma família que saiu de Pernambuco num pau de arara, que é a família do meu avô, vem pra cá, se estabelece em Mato Grosso do Sul e a partir daí começa a se construir a ponto de hoje ter três filhos na faculdade. Era uma coisa inimaginável há uma geração atrás”, reflete o filho.
Uma personalidade especial
Questionado sobre a personalidade do pai, Paulo recorda que ele era uma pessoa muito fechada, rígida e que não expressava os sentimentos verbalmente. O jeito dele de manifestar amor, no entanto, era através das atitudes com as pessoas ao redor.
João ficou encarregado de cuidar da esposa, mãe de Paulo, após ela sofrer um AVC há alguns anos. Logo que veio a aposentadoria, a dedicação à companheira foi ainda maior. O mesmo acontecia com os filhos, netos, amigos e vizinhos.
“Essa é uma palavra que define bem o meu pai: cuidador. Ele gostava de cuidar, gostava de cuidar das pessoas que ele amava, inclusive dos netos. Os netos iam na casa dele e recebiam carinho e cuidado, aquela coisa de avô. Era sempre ele cuidando, sempre procurando dar atenção e sempre cobrando a gente para que a gente tivesse cuidado entre nós e com os filhos. Era a visão dele de mundo, que as pessoas precisavam cuidar umas das outras”.
Sonhos passados por gerações
João Gomes saiu de Pernambuco aos seis anos, veio para Campo Grande, aos 10, e trabalhou desde cedo para conquistar a oportunidade de uma vida melhor. Na capital, encontrou o amor da sua vida, casou com ela, teve três filhos — todos formados — e também teve a alegria de virar avô de duas crianças, João Ricardo e Bruna, filhos de Paulo.
“Acho que os sonhos dele foram se realizando através dos filhos. Eu me lembro dele na minha banca de mestrado, a alegria estampada nos olhos quando a avaliação começou”, recorda Paulo.
A atenção pelo próximo também rendeu a João uma vida cercada de bons amigos. Fácil de conversar e sempre muito amável com as pessoas, ele encantava a todos com simpatia por onda passava.
“O que eu mais admirava no meu pai era a capacidade dele de resiliência, de se adaptar à realidade que ele estava vivendo e de encontrar caminhos para solucionar problemas do cotidiano dele. Além, claro, dessa facilidade que ele tinha pra fazer amigos, conversar. Uma vez, a vizinha até disse que ele era o ‘paizão da rua’, porque ele sempre cuidava e conversava a respeito de como estavam os filhos”.
Além de cuidador, prestativo, atencioso e paizão, João também era conhecido na família por seus dotes culinários: de costela cozida até porco frito. Os netos se deliciavam com o ‘bolo do vovô’.
“Ele demorava horas fazendo, mas a gente comia com a segurança de que estava bem feito e com um sabor que eu nunca provei na minha vida e talvez não prove nunca mais”, diz Paulo.
Os últimos dias
Vacinados com as duas doses, João Gomes e a esposa, Dilma, contraíram a Covid-19 juntos. Apesar de todos os cuidados que ambos tiveram — especialmente porque eram do grupo de risco — eles não se viram livres do vírus.
O homem foi internado no dia 23 de agosto com a Covid-19. Já sem sinais da doença, ele quase teve alta na manhã de 28 de agosto. No entanto, em poucas horas, o corpo voltou a piorar em decorrência de uma pneumonia influenciada por problemas no pulmão.
“A partir daí, o quadro começou a piorar até que ele foi entubado e, segundo os relatos médicos, apesar de todos os esforços, ele veio a falecer”, lamenta Paulo. Já a mãe do jornalista teve alta hospitalar.
“Então, a gente fica pensando ‘e se ele tivesse sido internado da primeira vez, será que ele estaria com a gente agora?’. A gente não tem como saber, o ‘se’ cabe ao mundo. Então, a gente se consola acreditando que é a vontade de Deus e torcendo para que ele esteja bem onde quer que ele esteja”, contou Paulo.
Nesse meio tempo, a família conseguiu visitá-lo enquanto estava internado na UTI e fazer o velório posteriormente. A foto abaixo, inclusive, foi o último registro feito pela família quando ele foi internado. Na imagem, o olhar de João revela uma esperança para que ele logo saísse do hospital com saúde. No entanto, o ‘até logo’ se tornou um ‘adeus’.
Memórias que viraram legados
Apesar da despedida, algumas saudades sempre ficam presentes para sempre em nossos corações. Para a família de João, essa vai ser um sentimento eterno. Entre tristezas, lembranças e nostalgias, a principal lição deixada pelo pai de Paulo era o seu jeito de ver a vida.
“O legado que meu pai deixou foi a de retidão moral, ele era bastante rígido. O que é certo é certo, tem que ser feito independente se tem alguém olhando ou não. Era muito religioso, católico, então o legado que ele deixa pra gente é esse, de retidão, de ser bom, de fazer o bem, de procurar cuidar do próximo e de abnegação em prol do próximo, em prol da felicidade da família. Esse é o exemplo que ele deixa”.
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