Livres das grades, presos pelo preconceito: ressocialização patina no mercado de trabalho
Desde 2015 o Portal de Oportunidades do CNJ não registra vagas
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Manhã do dia 23 de novembro de 2009. Era uma segunda-feira quando Cláudio foi preso novamente. Ao contrário da detenção anterior, motivada por furto, desta vez ele havia ‘caído’ no tráfico. Os crimes eram diferentes. A situação também. “Quando coloquei os pés ali, naquele momento, decidi que não queria mais aquilo pra minha vida”, conta. O martelo estava batido internamente, mas a pena estava só começando.
Foi mais de um ano no Estabelecimento Penal Jair Ferreira De Carvalho, o presídio de Segurança Máxima, em Campo Grande. Cláudio Pereira Avelino, hoje com 43 anos, voltou às raízes da tapeçaria, profissão ensinada pelo pai ainda na infância, enquanto estava privado de liberdade. Também conseguiu estudar, concluir o ensino fundamental e, após passar pelo semiaberto e condicional, tem a liberdade de volta. Quitou sua dívida com a sociedade.
Pai de quatro filhos, o tapeceiro, livre da condenação e dos vícios, é dono da própria tapeçaria, no bairro Aero Rancho. A esposa, Carla Oliveira, cumpriu igualmente a pena por tráfico de drogas. Agora o ajuda a manter a empresa. Desmonta sofás, recorta os tecidos, costura. “Ela é minha companheira e não temos vergonha da nossa história”.
A reinserção no mercado de trabalho não foi rápida. Mesmo tendo profissão, as portas nunca se abrem com facilidade para quem tem no currículo prisões por furto e tráfico, além de um longo histórico de passagens por clínicas de recuperação. Foram 12 internações em 23 anos. No começo, com a esposa já grávida e recém liberto, Cláudio alugou uma pequena casa e recebia serviço do irmão, também tapeceiro.
Aos poucos, o material tomou espaço na casa e o quarto da filha mais nova se tornou oficina. A demanda de trabalho aumentava e a solução foi alugar um salão. Mas ele não queria começar nada com mentiras, então foi sincero com o dono do imóvel. Contou sua história e, após tantos nãos durante a caminhada pós cárcere, conseguiu um voto de confiança.
Expandiu e hoje trabalha com a esposa e outros três prestadores de serviço. “O planejamento que a gente tem para quando estiver aqui fora, tem que começar lá dentro da prisão. O sistema não ajuda ninguém, mas cabe ao preso usar o tempo para trabalhar, estudar e refletir com ele mesmo e com Jesus”, avalia ele que, desde quando decidiu que não queria mais ficar na prisão, se apegou à religião para não tropeçar novamente e assim segue dia após dia.
Infelizmente, a história de Cláudio não faz parte da vida da maioria dos que passam pela prisão e, após cumprir pena e teoricamente ter pago pelo crime, tentam se reinserir no mercado de trabalho. De acordo com o artigo 25 da LEP (Lei de Execução Penal), a mesma que rege os critérios trabalhistas dos detentos que trabalham no regime fechado e semiaberto, o ex-apenado deve ser orientado e apoiado na reintegração à vida em liberdade. Palavras que não saem do papel.
Levantamentos ou dados oficiais sobre o tema, tanto no Brasil quanto em Mato Grosso do Sul, simplesmente não existem, conforme o próprio CNJ (Conselho Nacional de Justiça), responsável pela criação do programa Começar de Novo, disse ao Jornal Midiamax.
Não há levantamento sobre a efetividade do programa ou dados acerca de ex-presidiários que estão no atual mercado de trabalho. Como se ao tentar apagar o passado, eles mesmo deixassem de existir depois de terem liberdade.
Quando ainda cumprem pena, seja em regime fechado, semiaberto ou liberdade condicional, eles podem ser contratados por empresas que têm parceria com o sistema prisional. Atualmente 18% da população carcerária está envolvida em algum tipo de atividade laboral no Brasil, o que corresponde a cerca de 96 mil apenados.
A responsabilidade fica a cargo de cada estado, em Mato Grosso do Sul são quase 200 empresas. Neste caso o empregador não tem a obrigação de pagar décimo terceiro salário, férias e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), já que a contratação é regida pela LEP e não pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A remuneração mínima corresponde a 3/4 do salário mínimo. Das grades para fora, quando a liberdade está conquistada, o cenário muda e as responsabilidades de ambos os lados seguem a lei trabalhista.
Projeto
Resolução de outubro de 2009 do CNJ prevê que empresas que oferecerem cursos de capacitação ou vagas de trabalho para presos, egressos, cumpridores de penas e medidas alternativas, bem como para adolescentes em conflito com a lei, receberão do órgão a outorga do selo do Programa Começar de Novo, feita por ato do ministro presidente, e poderá ser renovada anualmente.
Para que as empresas e instituições recebam o selo, é necessário comprovar a realização dos cursos ou a contratação. Portaria de março de 2010 instituiu os requisitos para a outorga do selo. Ao Jornal Midiamax, o CNJ informou que o Começar de Novo é projeto permanente do Judiciário, porém conduzida de forma descentralizadas pelos tribunais brasileiros. Portanto, foi aconselhado que a reportagem buscasse informações junto ao TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).
Assim foi feito, mas o Tribunal alegou que o Começar de Novo em Mato Grosso do Sul fica a cargo da Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário). Agência, por sua vez, disse que este projeto é de responsabilidade do TJ-MS.
Anônimos
Embora a história de Cláudio tenha final feliz, nem sempre as tramas ganham holofotes. E não é por falta de procura. Além do tapeceiro, a reportagem entrou em contato com outras três fontes que poderiam contar como as páginas pós-prisão foram preenchidas no cotidiano, principalmente na vida profissional. No entanto, houve resistência.
As respostas às mensagens e ligações eram sempre de que não havia tempo ou pediam para ligar amanhã e no dia seguinte o texto era o mesmo, “me liga mais tarde”. A oportunidade de ouvir mais pessoas nunca chegou.
O preconceito da sociedade, com quem teoricamente eles já quitaram a dívida, faz o ex-detento querer apagar o passado, segundo Cláudio, que é dono do próprio negócio e, portanto, não precisa provar à chefia a todo momento que o passado de fato ficou para trás. “O que as pessoas não entendem é que não porque o preso errou que ele vai permanecer no erro”.
Em relação às ações tanto do poder público quanto de entidades, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil seccional Mato Grosso do Sul) Cristopher Pinho Ferro Scapinelli, explica que às vezes é melhor que haja anonimato. “Às vezes o não aparecer ajudar, às vezes aparecer atrapalha, infelizmente. Pode ter aquele preconceito que a gente quer quebrar, mas é um trabalho que envolve tempo”.
Ele destaca o trabalho feito dentro dos presídios por meio de projetos como o Pintando a Educação com Liberdade e Arte com Pneus e vê com otimismo o resultado, mesmo que pareça pouco se comparado ao atual cenário carcerário brasileiro. “Pode não parecer, mas o trabalho de formiguinha está sendo feito para fortalecer o que está dando certo”. Os programas foram ilustrados nas duas matérias publicadas anteriormente pelo Jornal Midiamax na série ‘O detento que você não vê‘.
Agência de empregos
Segunda Chance é o nome que também batiza a agência de emprego criada pelo grupo cultural AfroRegge. Mas não é qualquer currículo que é aceito por lá. O projeto, comandado por quem já ficou atrás das grades, auxilia ex-presos a se reinserirem no mercado de trabalho. Infelizmente as sedes ficam somente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Não há em Mato Grosso do Sul medida semelhante. Porém, como bom exemplo, vale citar o trabalho feito. Por lá o processo de seleção é feito por ex-comandantes do tráfico que, agora, são executivos da agência.
Os candidatos são recebidos por eles que entram em contato com empresas parceiras e cruzam os dados. Se o currículo bater com as exigências para a vaga, o caminho está quase completo. Basta entrevista e pronto, menos um desempregado para estatística.
Mesmo vinculando o projeto aos Tribunais de Justiça de cada estado, no site do CNJ está disponível o Portal de Oportunidades. A página reúne vagas de trabalho e cursos de capacitação oferecidos para presos e egressos do sistema carcerário, tudo ofertado por instituições e empresas privadas parceiras. A responsabilidade de atualização do conteúdo fica por conta dos ofertantes.
Entre 2011 e 2015, segundo consta no Portal, foram oferecidas 11 vagas em Mato Grosso do Sul nas cidades de Corumbá, São Gabriel do Oeste, Maracaju, Amambai e Campo Grande, todas na área da construção civil. De 2015 para cá não houve nova oferta. Até hoje em todo o Brasil foram propostas 17.537 vagas pelo Portal, 12.702 foram preenchidas.
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