Uma despedida para o rapaz latino-americano Belchior, que morreu neste domingo
Internet ajudou a admirar, mesmo que tarde, o cantor e compositor
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Internet ajudou a admirar, mesmo que tarde, o cantor e compositor
“Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude tá em casa guardado por Deus contando vil metal”. São incontáveis as vezes nas quais cantei isso bem alto, tentando repetir não o talento, obviamente, mas a força de Elis Regina, com quem conheci “Como nossos pais”, uns 30 anos atrás. Foi Elis que me levou até o autor da letra, um cearense de bigodes e sotaque forte, indignado de ver o novo repetindo o velho. Dele me mantive distante à época. Gostava da música, mas tinha que ser com a Elis. Belchior era estranho demais.
Logo depois, dancei muito, também com Elis Regina, a “Velha Roupa Colorida”, provocando ao dizer que o passado não nos servia mais. Era de novo a letra do cearense que migrou para São Paulo e decepcionou-se com muita coisa, apesar do sucesso garantido pelas gravações da “Pimentinha”, depois de 10 anos pelejando. De novo preferia a versão dela, pra cima, vibrante, dava vontade de despejar energia, sem deixar de ser rebelde. Era muito bom berrar no meio de uma festa que “precisamos todos rejuvenescer’. A interpretação de Belchior, e a imagem do próprio, seguiam como esquisitonas.
Dele mesmo lembrava do “Boi com Medo de Avião”, como cantávamos na infância a música de abertura do quinto álbum do artista, “Era uma vez um homem e seu tempo”. Citávamos a música em tom jocoso, sem nunca ter andado de avião e continuando a, de certa forma, desdenhar do artista, então já fora dos holofotes. Tinha também a canção do ‘rapaz latino americano sem dinheiro no bolso’, cuja vanguarda de falar de uma unidade entre o povo da América do Sul eu não alcançava ainda. E só.
Oportunidade perdida
Eu era uma ignorante de Belchior. A ponto de perder a oportunidade de ver suas apresentações em Campo Grande e, ainda, de ter um dedo de prosa, fazer uma pergunta, pegar um autógrafo, tirar uma foto nos tempos pré-selfie, quando fez visita ao jornal onde trabalhava, na década de 1990. Lembro claramente do alvoroço na redação por ter um “famoso’ ali, algo incomum. Ainda mais um famoso tido como alguém fora do padrão, o que provocava curiosidade. Lembro do bigodão, do blazer um tanto grande e fora de moda, e de ouvir das colegas que ele era mesmo incomum e tinha ‘cheiro de coisa do passado’.
Foi a internet a minha salvação desse vácuo no vocabulário musical. Ao logo do tempo, fui ficando íntima de Belchior. As certezas da juventude, tão cantada por ele, foram caindo e fui me abrindo para a beleza e, principalmente, a profundidade de suas canções. Graças à grande rede, ainda bem, vejo jovens de seus 20 anos ouvindo e cantando suas músicas, muitos deles incentivados pela interpretação da banda carioca Los Hermanos de “À Palo Seco”. Nessa letra, outro verso insuperável do compositor complexo, ao desejejar que seu ‘canto torto feito faca corte a carne de vocês”.
Eu, mais de 10 anos atrás, quando parei para ouvir detidamente “Alucinação”, sua obra- prima, me indaguei sobre como esperei tanto tempo. O disco é genial. A canção-título é daquele tipo capaz de, como digo, dar cãimbras no coração, e no cérebro. Como não se emocionar, ouvindo a voz característica entoar que ‘amar e mudar as coisas me interessam muito mais’.
E Coração Selvagem, então? “Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja, Não quero o que a cabeça pensa eu quero o que a alma deseja” é, a meu ver, um dos mais bonitos versos já feitos. Muito justo dar título ao segundo melhor álbum de Bel, como os amigos o chamavam. Pois Bel era, também, um romântico.
Sua obra é cheia de nuances, é atemporal, é melancólica, às vezes angustiante, como o próprio. É, sobretudo, cheia de referências que, se a gente seguir a trilha, colhe um caminhão de conhecimento sobre si próprio e sobre o mundo. Conheça ‘Balada da Madame Frigidaire” e isso ficará claro, na letra irônica sobre a relação de um comprador com sua nova geladeira.
Para sempre
É por isso, e muito mais que, de aproximação em aproximação, assegurada pela infinidade de material da internet, virei fã. Fiquei triste com seu sumiço, com a exploração dele, com as inúmeras teorias da conspiração. Muitos riram. Eu não tinha coragem. Sentia algo mais complexo. Era uma saudade doída de quem passei a admirar tarde, mas para sempre.
Esse sempre é literal. Extraí da última canção de Belchior pela qual me apaixonei, “Comentários a respeito de John”, uma clara homenagem aos Beatles, uma frase para tatuar no braço: “A felicidade é uma arma quente”. O verso é a tradução sem tirar nem por de “Happiness Is a Warm Gun”, presente no celebrado Álbum Branco da banda inglesa, de 1968.
Para o cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, morto neste domingo aos 70 anos, no Rio Grande do Sul, parece que o gatilho da felicidade ficou sempre assim, pronto para ser apertado.
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