Enquanto o agronegócio reclama, Guarani de MS surpreende-se com samba enredo

Guarani e Kaiowá de MS se diz representado pela tema da Imperatriz

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Guarani e Kaiowá de MS se diz representado pela tema da Imperatriz

O samba enredo e a temática escolhida pela Imperatriz Leopoldinense – escola de samba do Rio de Janeiro -, para o carnaval 2017 levantou a fúria e as reações do agronegócio. Este ano, a Imperatriz escolheu falar sobre a luta dos povos do Xingu – mais de dez etnias, entre o centro-oeste e norte do país -, que enfrentam, entre outras adversidades, a gigante Belo Monte, já apelidada de Belo Monstro. Entidades como Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, Sociedade Rural Brasileira, Associação Brasileira dos Criadores de Girolando e a Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador já emitiram notas de repúdio.

Em Mato Grosso do Sul, ao menos duas entidades emitiram notas de repúdio: Famasul ((Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), e Acrissul (Associação dos criadores de Mato Grosso do Sul). Além do samba enredo, a produção artística da escola caprichou em recursos visuais e tem, no mínimo, duas alas que provocaram a ira das entidades: a “fazendeiro e seus agrotóxicos” e a “doenças e pragas”.

Para um Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, no entanto, o ‘peso’ da representação é quase impossível de ser descrito. É o que conta o biólogo Kaiowá, Natanael Vilhalva, 38, natural da aldeia Porto Lindo em Iguatemi – 466 km da Capital -. “Nunca imaginei que uma escola de samba pudesse levar nossa voz”, é como o indígena se sente.

“Na verdade assim, a gente nem imaginava que uma escola de samba poderia levar a nossa voz. A denúncia da floresta, da destruição da floresta, da poluição dos córregos, dos rios, faz muito tempo que a gente vem fazendo e isso Mato Grosso do Sul inteiro sabe. Todo mundo sabe, aqui, o que acontece, a gente tem, assim, prova, de que muitos fazendeiros da região aqui trazem veneno do Paraguai pra passar nas roças, nas lavouras, sem controle nenhum, e acaba poluindo o rio, destruindo as florestas. Hoje a estatística aí mostra que a amazônia está sendo destruída para plantação de soja, soja que não alimenta ninguém, que é vendida no exterior, pra fora, pra criação de gado. A maior parte da carne, fruto desse desmatamento, vai pra fora, então, pro setor do agronegócio dizer que está destruindo a imagem de um setor que dá alimentos para o Brasil, também não é uma verdade né, é uma inverdade”, relata.

 

 

 

O que Natanael descreve é rotina no estado. Em dezembro, durante fiscalização em Mundo Novo – distante 462 km de Campo Grnade -, em bloqueio na BR 163, na altura do km 21, policiais militares ambientais apreenderam um caminhão com carga de agrotóxico transportada ilegalmente. O veículo levava 12.334 kg de agrotóxicos sem a licença ambiental necessária para o transporte. A carga seguia para os municípios de Tacuru, Amambai, Naviraí, Caarapó, Dourados e Itaporã.

Ainda em dezembro, um agente da Polícia Federal, que teve a identidade preservada, foi preso em Ponta Porã, a 346 quilômetros de Campo Grande, com uma carga ilegal de agrotóxicos. A prisão ocorreu durante abordagem e fiscalização de uma equipe da PRF (Polícia Rodoviária Federal).

As denúncias dos indígenas brasil afora, também implicaram na descoberta do maior esquema de grilagem, desmatamento e trabalho escravo da história recente da região amazônica. O esquema foi descoberto por insistência de denúncias feitas por índios Kayapó da TI (Terra Indígena) Mekrãgnoti, no Pará. Agora, uma quadrilha comandada de São Paulo por Antônio José Junqueira Vilela Filho, conhecido como Jotinha é investigada pelo MPF-PA (Ministério Público Federal do Pará) em Altamira. Dois irmãos de Mato Grosso do Sul chegaram a ser investigados, os produtores Luciano Belló Lorenzoni e Thiago Belló Lorenzoni. Eles teriam, de acordo com o MPF, arrendado 450 hectares de terra envolvida no esquema.

O jornal Midiamax também noticiou uma série de matérias que traziam os impactos dos agrotóxicos no Estado. Em Dourados, a contaminação do rio que fornece a água utilizada pela população tornou-se até investigação. Mato Grosso do Sul apresentou maior índice de intoxicações, entre 2007 e 2012, do que a média da região centro-oeste. O uso mais intensivo – mais produtos em menor área -, é o que preocupou o Ministério da Saúde, que emitiu alerta. Um piloto também foi denunciado pelo MPF por jogar as substâncias próximo a uma aldeia indígena.

Voz ampliada

O Kaiowá relata que o enredo – o samba aborda a da tradição, a cultura e a resistência dos povos do Xingu – auxilia a luta indígena.

“E pra nós, a gente se sente muito feliz, a gente se sente contemplado… sem imaginar, é como eu disse, vem de um grupo de samba, de uma escola de samba erguer essa nossa voz junto com nós. Porque outra dificuldade que a gente tem visto aqui no Brasil, aqui no Mato Grosso do Sul, é que, em vista de toda essa realidade nossa, dos indígenas, principalmente Guarani e Kaiowá e os irmãos Terena, é que tudo que acontece com nós, a mídia que divulga notícias, o acontecimento, divulga de forma distorcida, distorce o que acontece com nós Guarani, não contam a realidade. E esses versos que essa escola de samba fez, fala exatamente sobre Belo Monte, que pros nossos irmãos xinguanos é uma luta, é uma coisa que nós estamos lutando contra mesmo, porque isso vai afetar muito, de forma ruim, de forma negativa, o modo de vida, o modo de viver do povo amazônico”, conta.

 

Índios protestam contra Usina (divulgação)

 

 

A Famasul  afirmou que o enredo “traz à tona um assunto já ultrapassado onde é distorcida a figura do produtor rural”.

“O trabalho no campo se desenvolveu nas últimas décadas de forma positiva, no contexto da sustentabilidade. Somos referência, por exemplo, na implementação dos sistemas de integração, que unifica na mesma área o plantio de lavouras, produção pecuária e árvores plantadas. Com isso, caminhamos para a consolidação do conceito Carne Carbono Neutro, onde a presença das árvores em sistemas de integração neutraliza o metano entérico exalado pelos animais”, afirma a federação.

A Acrissul declarou que a “composição é uma versão odiosa, repugnante e preconceituosa, totalmente distorcida do setor agropecuário brasileiro, repassando uma imagem de destruidor de florestas e da natureza, invasor e monstro, num evento cultural de conotação internacional que é o Carnaval”.

Pecuarista de Mato Grosso do Sul, de Caarapó, 273, André Bartocci, 45, também emitiu posicionamento, divulgado nacionalmente no site beefpoint. No texto, intitulado “Na quarta-feira, as cinzas da Imperatriz”, André afirmou que “antes de definir um enredo, as Escolas realizam, ou elas deveriam realizar, pesquisas históricas para não sair do real, ou não “FALAR BOBEIRA” e levar nota baixa na avenida. Portanto, apesar da Licença Poética concedida a estas entidades, é imprescindível que sua proposta seja legítima e ancorada em fatos coerentes com a realidade. E que tenham um mínimo de bom senso”.

Ao jornal Midiamax, ele explicou não ter sentido-se ofendido com o samba, mas que a escola deu ao setor “uma oportunidade de réplica”. “Pra mim, enquanto produtor rural, pouca coisa incomodou e duvido que algum produtor rural tenha se sentido ofendido, mas o que a Imperatriz Leopoldinense deu pra nós foi a oportunidade de falar, porque a gente fala muito pouco, a gente se comunica mal, nos deu direito à réplica, e acho que é uma boa oportunidade pra gente aproveitar, não pra atacar, de forma alguma, atacar a imperatriz leopoldinense, no meu ponto de vista não é por aí, mas foram equivocados na pesquisa deles”, declarou.

Sobre o equívoco da pesquisa, ele afirma que a escola trouxe, “de maneira muito simples”, o assunto. “Eu acho que no sentido de colocar um problema de uma maneira muito simples, dos bons, contra os maus, nós contra eles, eu acho que não é bem assim, o problema indígena que eles quiseram abordar é muito mais profundo do que isso. Séculos de política pública equivocada, não de produtores mal intencionados. Nesse sentido, acho que foi uma coisa muito leviana. Não me ofendeu em nada, sinceramente em nada, mas deu uma oportunidade do setor produtivo de falar um pouco né, mostrar um pouco o seu lado, né?”, explicou.

Uma das fantasias da Imperatriz (divulgação)O professor de arte contemporânea da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e membro do Coletivo Terra Vermelha – entidade que atua em defesa dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul -, Paulo Cesar Duarte Paes, discorda. Para ele, é por meio da arte que os assuntos ganham discussão. Paulo também explica que é papel da arte abordar a diversidade.

“Bom, primeiro acho que os temas dos carnavais são diversos e a arte, justamente, é um espaço da diversidade, e por ser o espaço da diversidade, ela vai tocar em questões sociais que, às vezes, não são tocadas pelos interesses comerciais, pela mídia comercial, porque é arte, é justamente por isso que é arte. E, historicamente, vamos pensar o renascimento, Leonardo da Vinci, Botticelli, Michelangelo, eles faziam obras ali, que eram extremamente contestadas por aquele sistema”, explica

“Agora, com relação a reação, eu vi apresentadores de televisão, sindicalistas, pessoas ligadas ao agronegócio, se manifestando. Primeiro, eles não tem compreensão do que é a arte. Mas, acho que mais importante, é que eles fazem a defesa daquilo que lhes interessa, da sua posição, o que também é válido, mas eles negam a existência do genocídio, eles negam a existência de uma opressão da população indígena, de dezenas de milhares de brasileiros que estão no Mato Grosso do Sul, na região do Mato Grosso e do Pará e que estão em todo o Brasil e que estão perdendo seu direito de expressar sua cultura, o direito de ter sua terra, porque não dá pra manter a cultura sem a terra. O samba enredo é um momento em que a sociedade, como um todo, através da arte, percebe esse sofrimento a que está submetida essa parcela da população, que é a população indígena”, afirma.

A apresentadora do programa Sucesso no Campo, também reagiu ao tema da Imperatriz. No programa, ela afirmou que “deixar a mata reservada para comer de geladeira não é cultura indígena, não”.

Confira o vídeo:

 

 

A Floresta

 

Mas Kaiowá também é floresta. Kaiowá leva floresta no nome, já que, a tradução do nome em guarani significa, literalmente, das matas. É o que explica Natanael.

Enquanto o agronegócio reclama, Guarani de MS surpreende-se com samba enredo“A terra, pra gente,  sempre foi a nossa mãe, porque a terra que vai alimentar a gente, é ela que oferece as coisas pra gente e a floresta faz parte disso. Quando a gente destrói a natureza a gente está destruindo vida, a gente está destruindo ali remédios, a gente está destruindo grande parte da biodiversidade que está presente hoje na floresta. E pra nós, a floresta também é sagrada porque a gente depende dela. Não da forma destruidora, não da forma como o capitalismo vê. A gente vê de outra forma. A importância da floresta pra nós como indígena é porque somos parte dela, somos parte da floresta. A água, os rios, é pra nós como se fosse o nosso sangue que circula no nosso corpo, que está ali trazendo e levando a vida pra terra, pra população da terra. E depois, quando estiver tudo destruído? O que nós vamos comprar com esse dinheiro? Dinheiro é bom? Pode ser. Mas com o passar do tempo, como é que os nossos netos, os nossos bisnetos vão poder viver? sobreviver?”.

“SALVE O VERDE DO XINGU… A ESPERANÇA/ A SEMENTE DO AMANHÃ… HERANÇA/ O CLAMOR DA NATUREZA/ A NOSSA VOZ VAI ECOAR… PRESERVAR!”, é parte do samba enredo, e, também, do pensamento de Natanael:

“Não vai mais existir essa condição, de só a natureza pode dar. Isso também é pro branco, pro fazendeiro, pro negro, pra todo mundo. Porque dependemos unicamente do planeta terra, o planeta terra está sendo destruído. E isso, o homem branco está pensando muito no momento. ‘Ah, eu vou plantar soja, vou vender cana, eu vou plantar muita coisa e eu vou ter dinheiro’. Tudo bem, mas como vai ficar pras gerações futuras? Como vai sobreviver? Então, a nossa preocupação como indígena, não é só com o hoje, é com o amanhã, com o futuro. A gente tem que preservar porque é o único modo da gente sobreviver é cuidando da natureza, cuidando do meio ambiente”.

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