Em história de resistência e morte, jornalista narra genocídio indígena na ditadura
Livro ‘Os fuzis e as flechas’ terá lançamento em Campo Grande
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Livro ‘Os fuzis e as flechas’ terá lançamento em Campo Grande
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Mais de 500 páginas que traduzem entrevistas, etnografias, dados e referências bibliográficas na narrativa de uma história no mínimo negligenciada pelo país. Em ‘Os Fuzis e as Flechas – História de sangue e resistência indígena na ditadura’, o jornalista Rubens Valente reconstitui a prática de uma política genocida silenciosa (ou silenciada) durante a Ditadura Militar (1964-1985), executada por agentes do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e, posteriormente, da Funai (Fundação Nacional do Índio).
Atualmente correspondente da Folha de SP em Brasília, Valente é egresso da primeira turma de jornalismo da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e desde 1989, cobre de perto conflitos indígenas, sobretudo em regiões como Mato Grosso, Amazonas, Pará e, claro, Mato Grosso do Sul. Para seu mais novo livro, ele percorreu mais de 14 mil quilômetros Brasil a fora, investigou milhares de documentos adormecidos, que só a partir de 2008 tiveram acesso permitido.
O Jornal Midiamax entrevistou Valente, que estará em Campo Grande no próximo dia 28, em ocasião do lançamento local de sua obra, no Anfiteatro do Curso de Arquitetura da UFMS. Por telefone, o jornalista conversou com a reportagem, comentou aspectos do livro, relatou bastidores e opinou sobre o espaço da investigação no jornalismo em tempos de crise. Confira.
Jornal Midiamax – Rubens, um aspecto fica muito claro na sua pesquisa, que é essa ideia de que o governo na época da Ditadura Militar alimentava uma visão na qual os índios precisavam ser ‘incluídos’ na sociedade, tornando-lhes ‘produtivos’, num contexto mais ocidental. Este sentimento perdura até hoje. A CPI do Cimi, aberta na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, foi um exemplo disso, quando deputados estaduais afirmavam que o índio queria ter um celular, um carro… O que você entende dessa visão?
Rubens Valente – Eu acho que a chave de tudo isso é entender que essas definições, que esse entendimento sobre o que é melhor para os índios, precisa partir deles. O problema está justamente em nós, ocidentais, impormos um modo de vida, um caminho a essas populações. Quando se fala em autodeterminação dos povos, a gente está falando da coisa mais ampla possível. Explico: se eles querem se tornar agricultores, cultivar a terra, enfim, isso tem que partir deles. O que não podemos é estabelecer uma política na qual são eles que têm que se encaixar. É uma visão paternalista, a mesma de 100 anos atrás, com [o Marechal Cândido Mariano] Rondon. Temos que sempre lembrar que os índios são os donos originais da terra, e que somos nós, depois de 500 anos de contato, que continuamos ditando o que eles devem ou não fazer.
É uma visão autoritária?
Sim. Eu sempre digo que existe diversidade entre os indígenas, da mesma forma que existe entre os negros, entre as mulheres, entre os brancos, enfim. Cada grupo tem sua especificidade. No caso dos índios, há aqueles que querem, sim, produzir mais, que querem estabelecer uma relação de rentabilidade com a terra, mas sempre partindo deles. E assim, a gente também tem que considerar que há grupos que absolutamente não querem isso. Há grupos na Amazônia que estão isolados – os cálculos são de que existam cerca de 50 grupos nessa condição. Então, estabelecer uma ‘política nacional’ para o índio é uma violência. Até considero que houve alguns avanços nas demarcações, que são conquistas. Mas essa visão paternalista está crescente, principalmente na elite econômica e política brasileira. Na rua, também há essa visão de que o índio deve ‘deixar de ser índio’. O risco dessa visão, convertida em política pública, é fazer uma tabula rasa, passar uma régua que vai resultar na perda de identidade de cada etnia, por exemplo.
Que políticas seriam essas?
Há uma ideia geral, em que setores da vida política e do agronegócio defendem que o índio possa comercializar suas terras a fim de que se tornem pequenos produtores rurais. Aí, não. Até porque nesse caso o índio vai estar negociando um patrimônio que não é deles, digamos assim, mas de gerações futuras. Se você vir o registro imobiliário das terras demarcadas, vai ver que essas terras são da União, ou seja, a lógica é de que esse patrimônio não é apenas deles, mas do índio de 2050, de 2100… Possibilitar comercializar essas terras é um golpe contra gerações futuras.
A pesquisa do teu livro é impressionante. São mais de 100 páginas só de apêndice, o que traz muita segurança ao conteúdo. Coube tudo o que você apurou na versão final ou ficou algo de fora?
Ah, ficou. Quando apresentei o material, inicialmente, eram mais de 700 páginas. Deixei de colocar, por exemplo, um preâmbulo falando da política indigenista pré-ditadura, que descreve que os militares já estavam neste campo como sucessores do Rondon. A editora fez algumas orientações e consegui espalhar parte desse conteúdo ao longo do livro, para evitar que o leitor perdesse o foco. Tomei essa decisão para ganhar mais dinamismo na narrativa, até porque eu escrevi esse livro numa linguagem mais acessível. Há muitos dados, muitas especificações que para um antropólogo não são novidade e podem até ser superficiais. Mas eu precisei tomar algumas decisões para garantir que a leitura tivesse fluidez. Penso em publicar on-line esse capítulo que não entrou.
O seu livro descreve como o governo, na época da ditadura, controlava a forma como a informação sobre as populações indígenas era disseminada. Atualmente, há diversas iniciativas independentes no jornalismo, grupos que fazem cobertura jornalística indigenista. Mas, basicamente, no jornalismo mais tradicional, na era dos cliques, o valor-notícia da agenda indígena é muito subestimado e negligenciado. Você tem uma opinião sobre essa cobertura?
Olha, é difícil comparar hoje em dia com a ditadura, até porque ali havia uma censura. Só num pequeno levantamento, constatei 17 reportagens do jornal o Estado de SP que foram tacitamente censuradas pela Censura Federal. Além disso, havia uma limitação tecnológica e uma dificuldade no trânsito. Se hoje as estradas são ruins, imagine há 50 anos… Então a gente tem isso, a informação censurada por um Estado totalitário, que tinha medo que as notícias viessem à tona. Tanto é que os funcionários do SPI e posteriormente da Funai foram orientados a construir essa política de acobertamento. É por isso que quando a gente abre o baú fica tão chocado com as informações. O que eu noto é que atualmente os veículos tradicionais talvez tenham perdido o interesse no tema. Não sei, acho que também tem isso de que a informação é coletivizada, ela é feita e produzida por vários setores, porém fragmentada. Isso ao mesmo tempo em que a empresa tradicional perdeu o interesse… Eu diria que a informação de qualidade pode estar dispersa, mas existe. Por exemplo, nunca houve tanta cobertura jornalística indigenista como hoje.
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Você acha que o interesse do leitor pelo assunto também influi? Há demérito social por essa agenda?
Acho que os grupos indígenas são, atualmente, o grupo que mais sofre com intolerância e discriminação no Brasil. Assim, de longe, disparado. Eu fiquei dois ou três dias nos blogs, sites, compilando tudo o que as pessoas comentavam nas notícias relacionadas à questão indígena. E vou te falar, é impressionante o nível de ódio e de intolerância contra eles. Há comentários de pessoas pregando chacina, atropelamento…
Você notou esses comentários nas matérias produzidas em Mato Grosso do Sul?
Olha, diria que é generalizado. Porém, me chamou muita atenção uma matéria publicada sobre uma intervenção de índios no Mato Grosso. Eles fizeram pedágio na região do Rio Juruena [cerca de 100 índios de etnia Enawenê-nawê interditaram uma ponte sobre o Rio Juruena, na rodovia estadual MT-170, entre os municípios de Juína e Brasnorte, em outubro de 2014]. Foram etnias que sofreram impacto com a construção da rodovia. E o que vi nos comentários foi bastante gente dizendo que iria pegar o carro e “atropelar esses caras”. Era uma coisa impressionante. O que eu me pergunto disso, e que acho interessante, é se isso é algo novo ou se a gente simplesmente não via.
O que seria, na sua opinião?
Eu acho que a gente não via, vou pela segunda hipótese. Acho que hoje esse sentimento de ódio vem à tona, está mais visível, até pela tecnologia. Mas, na verdade, estava aí desde 1500. É claro que nem todos os brasileiros são assim e também já há alguns avanços, como eu mencionei. Eu termino falando no livro que a taxa de natalidade cresceu em algumas etnias, assim como diminui a taxa de mortalidade. Há países da América Latina que buscaram uma política de demarcações porque viram que no Brasil estávamos caminhando para um sucesso.
Mato Grosso do Sul promove uma espécie de exaltação à uma figura idealizada do índio, que no campo cultural, por exemplo, é descrito como herói, guerreiro… Mas toda esse representação mais etérea contrasta com a aplicação de políticas públicas para quem de fato são os índios da atualidade… Como você observa a negligência dos governos com essa população?
Eu tenho uma coisa bem clara para mim quanto as questões indígenas, é que elas não devem ser resolvidas apenas pelos poderes locais, porque muitas vezes eles estão impregnados pelo capital que os circundam. É por isso que as políticas indigenistas são nacionais, competem à União. Há uma lógica nisso, já que a União tem que ter um posicionamento mais efetivo. Porém, o que a gente nota é que ela só faz complicar, ela não faz o trabalho a que se propõe, descumpre promessas e não consegue se antecipar aos conflitos. A solução desse imbróglio passa basicamente pelas finanças, pelo dinheiro. Aí em Mato Grosso do Sul o ex-deputado estadual Laerte Tetila fez a seguinte hipótese há alguns anos: segundo ele, o governo deveria adquirir as terras em litígio, indenizando os fazendeiros, pagando o valor de mercado pelas terras. E segundo ele, o cálculo seria em torno de R$ 2 bilhões. Esse seria o preço da paz social no campo. E eu te pergunto: quanto custou o estádio Mané Garrincha, em Brasília, que se tornou um elefante branco após a Copa? R$ 2 bilhões. Nossa burocracia estatal consegue construir estádios que são abandonados em seguida, mas não conseguem estabelecer a paz social.
Essa questão das demarcações é bastante polêmica, também…
Há esse problema no texto da Constituição Federal, é que não se pode pagar o valor de mercado da terra, só das benfeitorias. Francamente, isso está causando uma tragédia. Durante esses anos cobrindo essa agenda, diversos índios me falaram que concordavam com a indenização de valor de mercado aos fazendeiros, para que eles consigam se restabelecer com os recursos. Como eu disse, é um problema que passa pela questão financeira, que passa por dinheiro. O que os índios pedem não é tão absurdo para o volume do Brasil. A União precisa, primeiramente, agir nesses conflitos de forma rápida direta. Tenho certeza de que muitos fazendeiros aceitariam, até porque eles preferem fazer empreendimento em regiões onde não enfrentariam insegurança jurídica. Se o Estado vem com valor real, a União vai conseguir um resultado. O que falta, portanto, é vontade política.
Falando um pouco do modus operandi da imprensa, principalmente nesse esquema que falei, do valor-notícia, enfim, qual é o espaço, o papel do jornalismo investigativo nos tempos da internet? Ainda há espaço pra isso num jornalismo tradicional? Ou a saída é o alternativo, o independente?
Eu acho que a crise que vivemos não é jornalística, mas financeira. Jornalistas continuam existindo e estão aí, fazendo coisas boas. O problema seria, na verdade, como gerar renda a partir da atividade jornalista. Quer dizer, é um problema de gestão. Ainda não foi encontrada uma fórmula que possa gerar uma renda no on-line semelhante ao que havia no impresso há alguns anos. Mas algumas iniciativas nos EUA estão dando certo e as pessoas ficam observando se é possível aplicar isso aqui. Estamos numa revolução tecnológica que não sabemos onde vai dar, mas acho que de modo geral, o jornalismo vai ser cada vez mais importante, sobretudo o investigativo, porque em uma sociedade em que a informação é dispersa e segmentada será necessário que alguém a interprete.
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Ficha técnica – ‘Os Fuzis e as Flechas – História de sangue e resistência indígena na ditadura’ (520 páginas), de Rubens Valente. Editora: Companhia das Letras. Preço médio: R$ 50.
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