A Albânia de minhas errâncias literárias: modernidade e herança comunista
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Tirana é uma cidade que mistura modernidade e herança comunista e, também, italiana. Ela tem prédios baixos, quadrados como caixotes, feios e cinzas, como as construções comunistas de Berlim Oriental ou Bonn. Muitas construções com arquitetura tipicamente italiana – fruto da dominação italiana no começo do Século XX – foram destruídas pelo regime comunista soviético que se implantou após a Segunda Guerra Mundial. Tem uma grande praça e monumentos que homenageiam a libertação do país. E uma bonita mesquita, já que a maioria do povo é de religião muçulmana. Essa religião veio junto com o colonizador: o Império Otomano que dominou o país até sua queda no começo do Século XX.
Saindo da cidade, tudo é montanhoso. A Albânia é um país montanhoso, com suas chuvas intermináveis, seus ventos, e a neblina beijando as montanhas. Perto do litoral, o clima é mais ameno. Nas montanhas sempre é mais frio, algumas montanhas ficam com seus cumes cobertos de neve o ano todo. É um país milenar que descende dos ilírios, um povo tão antigo quanto os gregos. Na língua grega há palavras estrangeiras, palavras albanesas. Esse país antigo sofreu muitas invasões e sobreviveu assujeitado por tantos dominadores. Seu povo parece ao estrangeiro tão feroz, temível, mas ao mesmo tempo tem um costume em que um hóspede, quando entra na casa de uma família albanesa, é mais do que um pai ou um filho, é um Deus. E como tal é tratado.
Entre Tirana, a capital, e Gjirokastra, são 228 km. É preciso descer, indo em direção ao sul, Gjirokastra é quase na fronteira com a Grécia. É um povoado com muitas casas brancas de telhados cinza, com janelas bem altas, arqueadas, no estilo mouro, em um vale. Encostada de uma colina, vigiada por um castelo. E depois, mais ao longe da cidadela, já no campo, casas de pedra, em forma de torres.
Gjirokastra é a cidade de nascimento de Enver Hoxha, que conduziu o país com mão de ferro por 41 anos, e de Ismail Kadaré, o grande escritor albanês. Descobri anos atrás a obra de Ismail Kadaré graças a Walter Salles. Seu filme Abril Despedaçado é uma adaptação do romance homônimo do escritor albanês. No Nordeste da seca e da fome, duas famílias brigam há tempos pela terra, ninguém mais lembra como a briga começou. Os Breves (esse poderia ser o sobrenome de todos os seres humanos) perderam o filho mais velho, assassinado por um membro da família rival, e retiraram a camisa do morto, penduraram no varal até o sangue amarelar. Quando o sangue seca é chegada a hora da cobrança.
Embora todo o contexto seja diferente, essa cobrança do sangue é o cerne do romance de Kadaré. Essa matança entre duas famílias não é considerada uma vingança para os albaneses. É o Kanun, um Código de Honra entre famílias, que regulamenta a vida das cidades desde antes dos tempos medievais. Gjorg recuperou o sangue de sua família, com a morte de Zef Kryeqyqe, então sabe que será o próximo a morrer. Consegue uma trégua de 30 dias. Viverá de 17 de março até 17 de abril. Anda pelos campos, pelas estradas entre os povoados, rodeando as montanhas de sua província, com uma fita negra na manga da camisa – marca dos que estão sob a lei do Kanun – vivendo seu último mês, esperando chegar seu abril morto, despedaçado. “Abril envolvia-se para ele numa dor levemente azulada…Sim, abril sempre lhe produzira essa impressão, um mês em que alguma coisa permanece incompleta. Abril de amor, como diziam as canções. Seu abril inacabado….”.
Este livro tão denso, entremeado de muitas histórias da Albânia, de suas cidades e seu povo, seus costumes, foi o primeiro que li de Ismail Kadaré. Depois li outros, em que conta da geografia e do tempo da Albânia, da vida quase sempre rural, de suas terras montanhosas.
Anos atrás, hospedada em um hotel em Florença, percebi que um dos atendentes falava um italiano com sotaque carregado, disse-lhe um pouco chistosamente ‘você é tão italiano quanto eu’. Ele riu e me contou que era albanês, que havia muitos albaneses vivendo em Florença. Estudava engenharia, trabalhava no hotel e mandava todo mês dinheiro à sua família. Morava bem ao sul do país, perguntei se era perto de Gjirokastra, disse que sim. Como eu sabia? Por causa de Ismail Kadaré, meu amigo que me conta muitíssimas coisas sobre o país. Dias depois, seus amigos estavam lá no hotel, conversei com eles, todos universitários e muito saudosos de seu país.
Ano passado, no começo do ano, minha amiga convidou-me para ir à Grécia, perguntei se toparia ir comigo à Albânia. A resposta, não tão direta, foi não. A Albânia e, sobretudo, Gjirokastra, é vizinha da Grécia, não teria sentido eu ir à Grécia e não ir até ela. Mas também é vizinha da antiga Iugoslávia, de Kosovo. Todos esses lugares ainda estão muito marcados pela guerra dos Bálcãs. E ainda mais, a Albânia é muçulmana e não era o momento para ir sozinha a esse país. Tive medo de ir sozinha. Também disse não a minha amiga: por fidelidade a Albânia.
Já convidei Deus e o mundo para ir comigo. Ninguém topou. E sigo sem coragem para ir sozinha. Já tinha tido a ideia de contar em uma crônica essa viagem imaginária à Albânia, mas só me animei com o apoio de Zeca Camargo. Minha irmã mandou-me uma crônica dele para a Folha de São Paulo em que ele começa contando sobre a Transiberiana, para depois dizer que nunca foi à Rússia e se perguntar se tem mais valor um relato de viagem inventado do que um real. Não ir, no real, à Albânia, deixa-me por vezes, albanesa demais: vivendo às margens do Adriático, quando leio os livros de Ismail Kadaré; sonhando com Gjirokastra, um povoado de casas brancas à beira de uma colina. Um lugar a que nunca fui e não sei se irei.
*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, fundadora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.
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