Um ano após tragédia, segurança em boates aumenta, mas temor persiste

Ainda na fila para entrar em uma das casas noturnas da moda de Santa Maria, os efeitos do incêndio na Boate Kiss já são notados. Afixados na porta e na fachada do Mariachis Bar, cartazes informam os números e a validade dos alvarás de funcionamento do estabelecimento – todos em dia -, assim como a […]

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Ainda na fila para entrar em uma das casas noturnas da moda de Santa Maria, os efeitos do incêndio na Boate Kiss já são notados. Afixados na porta e na fachada do Mariachis Bar, cartazes informam os números e a validade dos alvarás de funcionamento do estabelecimento – todos em dia -, assim como a capacidade da casa: 252 pessoas. Na opinião de frequentadores do bar, a tragédia que completa um ano na próxima segunda-feira obrigou uma mudança de comportamento, tanto dos estabelecimentos quanto dos clientes.

“Depois do que aconteceu na Kiss, aumentou muito a cobrança das autoridades em cima dos empresários, uma coisa que não tinha antes”, afirma Jaime Reis, 21 anos, técnico em mecânica.

Inicialmente localizado nas proximidades do campus do Centro Universitário Franciscano (Unifra), o Mariachis Bar fechou em 2012 e reabriu em outubro de 2013 em novo local, em uma das ruas mais badaladas da boemia santa-mariense. Na nova casa, a preocupação com a segurança é evidente.

Desde o início dos trabalhos, às 21h, uma fila rapidamente se forma em frente à entrada, mesmo que o bar esteja longe de atingir a capacidade máxima. De dois em dois, quem está no início da fila é orientado a se dirigir ao caixa, no hall de entrada, onde duas atendentes preenchem um cadastro dos clientes. Após a apresentação de documento de identidade e uma rápida coleta de dados pessoais, o cliente recebe uma pulseira de papel, com um código de barras impresso, através do qual seu consumo será controlado. O valor do ingresso (R$ 30), seria cobrado apenas na saída da casa, informam as funcionárias.

Com a pulseira ajustada, se tem acesso a um lounge, onde cerca de 60 pessoas se espremem entre mesas dobráveis de madeira e banquetas. Não há, porém, qualquer barreira fixa que impeça a rápida evacuação do local em uma eventual emergência. O ambiente ainda conta com um pequeno palco e um bar, cercado por duas escadas com cerca de 1,5 metro de largura cada, que dão acesso à pista no andar superior. A passagem, porém, só é liberada por volta das 23h45, quando há um número razoável de ocupantes para os dois ambientes.

No andar superior, descobrimos a existência de uma segunda saída de emergência, devidamente sinalizada com luzes em caso de corte de energia. A presença ostensiva de placas sinalizadoras parece agradar um público que ainda convive com o impacto da Kiss. “Quando entro, a gente sempre olha onde é a saída, se tem sinalização. Mas me sinto mais seguro, as coisas melhoraram mais”, analisa o estudante Ademir Rosa Cardoso Junior, 22 anos.

O estudante Jorge Becker Coronel, 21 anos, diz frequentar casas noturnas do município com regularidade. Calouro da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde cursará Odontologia, Jorge diz que em seu grupo de amigos há um sobrevivente da tragédia da Kiss, “que sai junto, normal”. “Hoje em dia o pessoal se preocupa mais com a segurança, fica de olho na capacidade. Várias casas têm fechado para reformas”, conta o estudante.

“Sempre vai ter risco”

Na opinião do empresário Bruno Cardoso, 24 anos, frequentador da boate, não é possível ter plena certeza da segurança das casas noturnas em caso de emergência. “Os empresários se preocupam mais em abrir dentro da lei, mas isso não significa que seja funcional. Ninguém botou 300 pessoas aqui dentro para saber se poderiam sair em segurança”, afirma. A estudante e professora Amanda Assulim, 30 anos, tem opinião semelhante: “não adianta, sempre vai ter risco ir em uma casa noturna dessas”.

Proprietário do bar, o empresário André Vitor Ramos diz ter levado a segurança como prioridade ao reformar o imóvel, onde antes mantinha outra casa noturna. No interior da casa, Ramos afirma ter usado apenas materiais não inflamáveis, de forma a evitar que episódios como o da Kiss se repitam. Na opinião do empresário, porém, o público não parece estar muito preocupado com isso. “Sinceramente? Não vejo muita diferença. Desde que abrimos, eu só vi duas pessoas comentando, entre si, sobre a posição das saídas de emergência, por exemplo. Acho que o pessoal não mudou muito”, atesta.

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente – dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência – as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas – quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro – este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele – as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

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