‘Qualquer descuido é fatal’, diz 1º paciente de internação compulsória em São Paulo

Em janeiro de 2013, a imagem chocou o País: em uma cadeira de rodas, de óculos escuros, dopado, o vendedor Reinaldo Mira, então com 61 anos, era levado para internação contra o vício em crack pelas mãos da filha mais nova, Ana Paula Mira, 34, em São Paulo. “Sedei meu pai porque tinha medo de […]

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Em janeiro de 2013, a imagem chocou o País: em uma cadeira de rodas, de óculos escuros, dopado, o vendedor Reinaldo Mira, então com 61 anos, era levado para internação contra o vício em crack pelas mãos da filha mais nova, Ana Paula Mira, 34, em São Paulo. “Sedei meu pai porque tinha medo de que ele pulasse do carro. Estava desesperada, mas disse: não volto para casa com ele desse jeito”, contou.

Um ano depois, pai e filha moram juntos debaixo do mesmo teto em uma casa de quatro cômodos no Jardim da Laranjeira, extremo leste da capital paulista. Reinaldo terminou o tratamento, mas, se dependesse do programa de internação oferecido à época pelo governo do Estado, teria tido alta apenas dois meses depois de ser internado, à revelia.

Certa de que o pai tinha um plano de fuga pronto, Ana Paula pediu a uma clínica particular de Araçoiaba da Serra (SP) que cedesse o tratamento sem custos, pois não teria condições de bancar. Conseguiu que Reinaldo ficasse oito meses lá, ou quatro vezes o tempo disponibilizado pelo poder público.

“Só consegui por causa da determinação do Estado, mas o tempo é muito curto. Tanto que, ao fim de dois meses, meu pai já tinha recebido alta do Hospital Lacan (em São Bernardo do Campo, ABC Paulista), achava que já estava bom, mas só começou mesmo a aceitar o tratamento depois do quinto mês de internação”, diz Ana Paula, para constar: “Se ele tivesse ido para casa em dois meses, tinha fugido.”

Ação veio um ano após ação da PM na Cracolândia

A internação compulsória de dependentes químicos foi anunciada pelo governo paulista, ano passado, em parceria com o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Justiça no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod), região central de São Paulo. Entre as ações, estava a presença de médicos, advogados e juízes cujo objetivo era facilitar o procedimento de internação, decidida pela família do usuário de drogas.

O programa foi anunciado um ano depois da ação violenta da Polícia Militar na região da Cracolândia; desfeita à época, a aglomeração de usuários de drogas acabou se espalhando para outras áreas da cidade, e, nos últimos meses, novamente ganhou força em pontos como a rua Helvétia e a alameda Dino Bueno –coração do consumo de crack em São Paulo.

“É como curar um animal ferido”, diz ex-usuário

Ao Terra, o primeiro paciente garante que mudou de vida e que se sente “mais seguro” a não cair novamente no vício. Natural de Cambuquira (MG), mas morador por décadas da Vila Carrão, zona leste, ele contou que a maior dificuldade, hoje, é superar a desconfiança alheia.

“Meus amigos da Vila Carrão me trataram com muito carinho, ficaram muito felizes. Isso faz com que a gente tenha um incentivo maior. Estou me sentindo mais feliz, menos escravo da droga, mas o que contraria é perceber que existem pessoas que olham para a gente com um ar de ‘hum, você vai voltar a usar (droga)’”, lamentou.

Atualmente desempregado, Reinaldo perdeu o filho mais novo há cerca de um mês, assassinado, e lamentou o fato de Ana Paula, divorciada, passar por uma série de dificuldades financeiras. Mesmo assim, defendeu que, se for para o bem do paciente, a família deve interná-lo à revelia, como a filha fez com ele – dopando-o no café da manhã com um calmante.

“É como você querer curar um animal ferido na selva: dá um antídoto para dormir, e, quando ele acorda, está no cativeiro, sendo bem tratado”, comparou. Mas ressalvou: “Mas não se pode descuidar nem um minuto. Um pouquinho de tempo de depressão, de angústia, uma vacilação, é suficiente para a pessoa recair.”

Reinaldo ainda não se considera imune a uma recaída. “(Imune) Entre aspas, porque qualquer descuido é fatal. Estou procurando não entrar nessa ideia, nem pensar nisso. Quando falam em droga, a única coisa que eu coloco dentro de mim é o resultado: não é bom. Então é melhor nem pensar”, sustenta o ex-usuário. “É como você faz para esquecer um amor: tem que mudar o ritmo da sua vida, se quiser esquecê-lo. Nesse sentido, a droga é a mesma coisa que um amor. Mas eu mudei de vida, e completamente.”

Em um ano, apenas quatro internações

Por meio da assessoria de imprensa, o Cratod informou que, desde o início da parceria entre os órgãos, a Justiça determinou apenas quatro internações compulsórias, com “tempo médio de internação variável de acordo com a evolução do paciente e sua alta sempre concedida por um médico”.

“Há casos em que um familiar ou responsável solicita a avaliação do paciente, podendo ser internado mediante autorização médica, de maneira involuntária”, informou o Cratod, em nota. Ainda conforme o Centro, os casos de internação involuntária são pedidos na maior parte das vezes por pais ou irmãos, com usuários homens na faixa dos 20 aos 30 anos de idade moradores principalmente de São Paulo.

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