Há exatos seis anos e quatro meses, Cleonice Rocha da Silva perdeu o segundo filho por intolerância racial, em Campo Grande

Neste domingo (4), Cleonice Rocha da Silva completa 51 anos, mas a vendedora autônoma revela que não tem muito a comemorar. “Perdi meu braço direito e meu braço esquerdo, meu filho amadureceu rápido demais, até por causa da morte do irmão, e se tornou o pilar da família, sempre dando um jeito de ajudar a todos”, lembra. 

Isaías da Silva Farias, de 30 anos, morreu no dia 14 de abril deste ano. Já o irmão, Anderson da Silva Farias, morreu no dia 14 de janeiro de 2007. “Todo dia 14, depois que Anderson morreu, meu coração amanhecia aflito, acho que já era Deus dando os primeiros avisos”, frisa.
Neste aniversário, familiares se reuniram para fazer um almoço para Cleonice. “Todo ano eles fazem uma festa surpresa, mas neste ano foi diferente, Isaías tinha me dito pra fazer uma lista de amigos que eu queria no meu aniversário, mas não deu, ele se foi antes”, recorda. 
Com lágrimas nos olhos, Cleonice fala da dor de perder dois filhos por questões raciais. “Não me conformo, quero justiça, não estou falando em vingança, mas quero que meu filho seja tratado como gente”. 

CASO 
No dia 14 de abril, Isaías falou por telefone com a mãe pela manhã. Ele iria fazer o pagamento de uns ajudantes de obra e depois ajudaria a família, pois o tio seria operado pela segunda vez do coração naquela semana. “Ele levou os dois irmãos, ele se sentia mais seguro, afinal ia mexer com dinheiro”, conta a mãe do rapaz. 
Após realizar o pagamento, os irmãos foram a uma feira livre que estava havendo no Jardim Colorado e comprou três shorts infantis para os filhos. Em seguida, eles resolveram tomar uma cerveja para relaxar. “Como havia muito barulho lá na feira, eles foram para esta lanchonete, onde tudo aconteceu”, explica a mãe, com informações de um dos filhos. 
Na lanchonete, os três se sentaram em uma das mesas do local e estavam bebendo, quando presenciou o policial militar aposentado João Nereu Nobre, de 55 anos, que ao chegar ao local estacionou a motocicleta Shineray na calçada. 
A dona do estabelecimento pediu que ele retirasse o veículo de cima da calçada, pois ela poderia ser multada. O policial chegou a reclamar com a mulher, mas retirou a moto da passagem de pedestre. Em seguida, ele pediu para ir ao banheiro e, ao retornar do local, voltou a reclamar com a proprietária sobre o cômodo, dizendo que era “nojento e que não estava à altura dele”, conforme informações contidas no inquérito policial. 
Os irmãos, tentando amenizar a situação, disseram que “o banheiro era simples, mas que dava para ser usado”, ocasião que João falou que “pra preto qualquer coisa serve”. Houve alteração de ânimos, mas os três pediram que o policial saísse da mesa deles e retornasse para o local onde eles estavam bebendo sozinho. 
Não satisfeito, o militar partiu para cima dos três, quando ele foi empurrado por um dos irmãos, que o disse que “nenhum deles queria briga, eles estavam ali para esfriar a cabeça”. Mais tarde, João foi embora. Em cinco minutos, os irmãos pagaram a conta e quando estavam entrando no automóvel, foram abordados pelo policial aposentado, que partiu para cima do grupo dizendo que, “preto tinha que morrer”. 
Após dar dois tiros em Isaías, o policial fugiu do local. Testemunhas e os irmãos da vítima o socorreram, mas, ao dar entrada na UPA (Unidade de Pronto Atendimento), ele morreu. “No bolso dele ainda estava os shorts das crianças”, recorda a mãe do rapaz. 
DESCONSOLO 
“Não me conformo com a morte dele, se ainda fosse durante o serviço de segurança, ainda entenderia, mas desta forma, não”, pondera. Ela conta que toda família está sem condições para trabalhar desde a morte de Isaías. 
“Meus filhos, que estavam com ele, se culpam. Eles acham que poderiam fazer alguma coisa”, ressalta. “Foi duro receber aquela ligação, dizendo que meu filho tinha morrido, a gente não espera isso. Já passei por isso uma vez, nunca achei que passaria de novo e não desejo isso a mãe nenhuma”, completa. 
“Meu filho morreu covardemente, ele disparou quatro vezes contra Isaías e um dos tiros acertou o coração. Meus filhos têm ficha limpa, são trabalhadores, humildes, negros, mas com caráter, nunca passei vergonha com nenhum deles”, conclui. 
Cleonice é mãe de seis filhos, dois deles mortos por preconceito racial. “Todos contam a mesma história, tanto meus filhos quanto quem estava no bar aquele dia, não tenho nada a esconder. Só quero justiça, porque é duro ver quem tirou a vida de um rapaz cheio de saúde ficar em liberdade, como se não tivesse acontecido. Além disso, querendo inverter a história. Ele teve tempo para pensar no que faria, foi até a casa, pegou a arma e voltou. Porque ele não foi embora de vez?”, questiona.