‘Já usamos 100% dos nossos cérebros’, dizem neurocientista e psicólogo

Isto talvez seja uma má notícia, mas as pessoas já usam 100% do cérebro que têm. Não 10%, como dizem alguns gurus de autoajuda, promotores do paranormal, escritores mal informados de ficção científica e, mais recentemente, o filme “Lucy”, estrelado por Scarlett Johansson, mas 100%. O cérebro todo. Não há, na sua cabeça ou na […]

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Isto talvez seja uma má notícia, mas as pessoas já usam 100% do cérebro que têm. Não 10%, como dizem alguns gurus de autoajuda, promotores do paranormal, escritores mal informados de ficção científica e, mais recentemente, o filme “Lucy”, estrelado por Scarlett Johansson, mas 100%. O cérebro todo. Não há, na sua cabeça ou na de qualquer outra pessoa, uma multidão de neurônios-estepe adormecida, esperando um choque de raios gama ou um seminário de motivação contratado pelo RH que os ative, transformando-nos todos em gênios das vendas e das finanças ou candidatos à Escola do Professor X.

A evidência de que não há “espaços vagos” no cérebro vem da medicina e da neurociência. Não só os danos causados ao tecido cerebral por ferimentos no crânio ou derrames sempre deixam algum tipo de sequela – é o que explicam Sergio Della Sala e Barry Beyerstein, respectivamente neurocientista e psicólogo, na introdução do livro Tall Tales about the Mind & Brain (“Lorotas sobre a Mente e o Cérebro”) – como exames de imagem, que permitem registrar, em tempo real, o cérebro funcionando não revelam nenhuma “zona morta” por ali.

Em termos evolutivos, também, não faria sentido a natureza criar e sustentar um órgão que é 90% peso morto, ainda mais em se tratando do cérebro: respondendo por menos de 3% do peso do corpo, ele consome mais de 20% do oxigênio que respiramos. Manter 90% dele fora de uso seria como deixar todas as luzes acesas, o tempo todo, numa mansão de 100 quartos, e só habitar dez: um desperdício que dificilmente passaria impune pelo processo de seleção natural.

O mito dos 10% é antigo e, como o filme “Lucy” mostra, prevalente e resistente. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, em 1998, mostrou que 30% dos estudantes universitários de psicologia acreditava nele. No Brasil, sondagem feita no Rio de Janeiro pela neurocientista Suzana Herculano-Houzel e publicada em 2002 descobriu que, entre mais de 2000 entrevistados, 59% dos que tinham diploma universitário acreditam nessa conversa, assim como 48% dos pós-graduados.

A história parece ter se originado num artigo publicado há mais de cem anos por William James, filósofo americano e um dos fundadores da psicologia como ciência. James, no entanto, escrevera apenas que as pessoas comuns dificilmente realizam mais de 10% de seu “potencial intelectual” – o que é bem diferente de “usam apenas 10% do cérebro”. Essa confusão foi feita no prefácio de um livro de autoajuda, “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, de Dale Carnegie. Em defesa de Carnegie, pode-se dizer que o prefácio em questão era assinado não por ele, mas por um jornalista, Lowell Thomas.

Desde então, o mito se tornou um lugar-comum da indústria de autoajuda, um argumento nos panfletos distribuídos por vendedores de cursos de “aperfeiçoamento pessoal” de eficácia duvidosa e um argumento brandido por teóricos New Age de vários tipos. Mas, no fim, nunca foi mais que um mal-entendido.

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