Doze anos depois de retirar os testículos em casa com um estilete escolar, a transexual Simone Rodrigues, de 36 anos, conseguiu nesta semana o que julga ser o grande passo para realizar seu maior sonho: a cirurgia de mudança de sexo. Ela deu início ao acompanhamento com psicólogos da rede pública de saúde e vai se preparar emocionalmente para a operação pelos próximos dois anos.

Cuidadora de animais de uma casa em uma área nobre de Brasília, Simone conta que desde criança demonstrava interesse pelo que considera ser o universo feminino. As brincadeiras preferidas eram com bonecas, e ela odiava ter de usar calças e camisas masculinas. Aos 12 anos, no entanto, ela percebeu que havia algo “diferente”.

“Entrei em desespero. Minha cabeça ficou meio confusa sobre o que eu gostava, sobre o que deveria fazer. Nasci homem, então eu precisava gostar de mulher. Só que não era isso o que acontecia comigo”, diz.

Na época, ela decidiu se mudar de Monte Alegre, no interior do Piauí, para Brasília e passar a viver com a mãe e os quatro irmãos. Foi então que Simone abandonou os cortes que a deixavam com o cabelo curto e as “roupas de menino”.

Aos 16 anos, conseguiu emprego como empregada doméstica no Lago Sul, interrompeu os estudos e passou a morar sozinha. A transexual afirma que sempre teve o apoio da família para a qual trabalhava e que, ao longo dos sete anos em que prestou serviço no local, nunca foi desrespeitada.

“Eu sempre gostei de ler, de ver jornal. Aí, a mulher que era minha patroa me mostrou uma notícia sobre transexualidade e sobre a cirurgia. Comecei a ler tudo a respeito, a entender como funcionava. Ouvi falar na Roberta Close e pensei: ‘tem solução’. Criei esperança”, declarou. “Vi que os testículos eram a única parte não aproveitada na mudança de sexo e decidi que pelo menos disso eu ia me livrar. Ter o órgão masculino sempre me incomodou muito.”

A cuidadora de animais conta que já havia procurado hospitais públicos do DF para se informar sobre o procedimento e não conseguiu ajuda e, então, meses depois de deixar o emprego, resolveu tentar o procedimento em casa. Ela pediu a uma amiga dentista ajuda para conseguir a anestesia, esterilizou uma agulha, separou linha de costura e paninhos para estancar o sangramento e pegou um estilete.

“Eu falei para a minha amiga que queria tirar bicho de pé de cachorro, então ela me deu [a anestesia] de graça. Foi no meio da semana, mas não me lembro bem o dia. Fiz o corte, costurei tudo direitinho. Eu nunca tinha visto isso antes, mas eu queria, eu precisava daquilo, então acho que também me ajudou. Fiz o curativo e fiquei tomando água de caju, estava no filtro da minha casa com uma semana de antecedência. Em 15 dias, eu já não sentia mais dor nem nada”, lembra.

Simone afirma que não se arrepende da intervenção feita em casa. Desde então, usa calcinha e calças femininas, além de manter o cabelo preto na cintura. Ela também passou a ter alguns namorados e teve relações sexuais.

“Eu me senti muito bem. Nunca tive medo de dar errado, eu sabia muito bem o que estava fazendo. Eu sentia que precisava, já que minha cirurgia estava tão distante. Alguma coisa eu precisava fazer para me aliviar um pouquinho. E foi isso, eu me senti muito aliviada. Eu pensava que precisava fazer alguma coisa e fiz”, diz. “Agora, só falta terminar. Se dependesse de mim, já teria feito, já teria tirado o resto.”

Ainda insegura por não ter feito a cirurgia, a cuidadora de animais conta que nunca teve coragem de ter um relacionamento mais sério e morar com alguém. Ela afirma ter vergonha de se imaginar em situações do dia a dia sem o corpo de mulher.

“Quero ter alguém para eu tomar banho junto, dormir junto, ter a vida normal de casal. Mas eu tenho muita vergonha, muita mesmo. Como é que eu vou ter um marido sem poder trocar de roupa na frente dele, sem poder dormir junto?”, questiona. “Minha família toda se casou, todo mundo tem família. E eu? Eu não. Fiquei para trás.”

Acompanhamento e cirurgia

O Ministério da Saúde passou a oferecer as cirurgias de mudança de sexo em 2008. Atualmente, o atendimento é feito em quatro unidades de saúde: Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS), Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ), Fundação Faculdade de Medicina (SP) e Hospital das Clínicas de Goiânia (GO). De acordo com a pasta, os pacientes passam por acompanhamento psicológico por no mínimo dois anos antes da cirurgia.

A entidade afirma que a norma atende a uma resolução do Conselho Federal de Medicina, que estabelece o prazo para que os interessados tenham tempo suficiente para refletir e ter certeza da decisão. No caso de moradores do DF, o acompanhamento é feito nos centros de saúde. Depois do período, os pacientes são incluídos na lista de um dos quatro hospitais.

Simone discorda da necessidade de passar por dois anos de terapia. “No meu caso, acho que não deveria ter esse tempo todo. Entendo o procedimento, que tem gente que tem dúvida, mas no meu caso não tem confusão alguma, eu tenho certeza desde sempre. Se eu tivesse que me arrepender de alguma coisa, já teria me arrependido de ter me mutilado, mas, pelo contrário, quero é terminar isso.”

Por causa da ansiedade em relação ao procedimento, a cuidadora de animais acabou desenvolvendo depressão e síndrome do pânico. Ela afirma que, além de ter de superar o de membros da própria família, precisa lutar contra o sentimento de que “ainda não começou a viver”.

“Um dos meus irmãos disse ‘vira homem, usa roupa de homem, corta o cabelo’. Ignorei muitas pessoas da minha família porque nunca procuraram entender. Sempre falaram coisas desagradáveis, e entendi que não compensava ficar explicando, já cansei”, afirma. “A minha mãe entende. Ela sabe que é o que preciso.”

Para depois da cirurgia, a transexual afirma ter outros sonhos. Simone quer colocar silicone nos seios, se casar e adotar uma criança. Ela diz acreditar que assim vai se sentir completa, já que hoje tem uma rotina solitária, entre trabalho, igreja, ouvir música em casa, cuidar dos próprios cão e gato e ir a barzinhos aos fins de semana com amigos.

“Quero um marido muito bom de coração e bonito fisicamente. As pessoas falam que não se pode reparar em beleza física, mas eu reparo”, brinca. “Também tenho vontade de voltar a estudar, mas tendo que me virar sozinha a coisa é mais difícil. Se eu casar, vou ter quem me ajude e assim minha vida pode ser melhor. Quem sabe uma faculdade de jornalismo ou veterinária.”