Operários denunciam condições ‘degradantes’ em obra da Odebrecht em Angola

Foi só quando deixou o aeroporto de Guarulhos, após desembarcar de um voo vindo de Angola, que o operário brasileiro José Edval da Silva se sentiu aliviado. Terminava ali um pesadelo iniciado três meses antes, quando, em agosto de 2012, ele aceitara um convite para trabalhar numa das maiores obras da empreiteira brasileira Odebrecht em […]

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Foi só quando deixou o aeroporto de Guarulhos, após desembarcar de um voo vindo de Angola, que o operário brasileiro José Edval da Silva se sentiu aliviado.

Terminava ali um pesadelo iniciado três meses antes, quando, em agosto de 2012, ele aceitara um convite para trabalhar numa das maiores obras da empreiteira brasileira Odebrecht em Angola: a construção da usina Biocom, primeira unidade de produção de açúcar, etanol e eletricidade do país africano.

A proposta – feita pela empresa W Líder, subcontratada da Odebrecht na usina – atraiu-lhe pelo salário, o dobro do que ganhava no Brasil. No canteiro de obras, porém, ele diz ter vivido “o inferno na Terra”.

Com crises de vômito e diarreia, o operário afirma ter perdido 16 dos seus 90 quilos em um mês. O motivo de seu mal-estar, segundo ele, eram a falta de higiene do local e a baixa qualidade da comida. “Só de sentir o cheiro dava nojo”, conta.

Relatos de outros ex-operários brasileiros da mesma obra dados à reportagem reforçam o quadro de falta de higiene, mencionando a presença de ratos e baratas em refeitórios e que eram, muitas vezes, obrigados a “defecar no mato”. Outros contraíram malária e febre tifoide, doenças cuja incidência pode ser reduzida com medidas de prevenção.

Denúncias sobre as condições na usina e sobre o descumprimento de acordos trabalhistas têm motivado dezenas de ações contra a Odebrecht e suas subcontratadas na usina Biocom.

Boa parte dos processos tramita na Justiça trabalhista do interior de São Paulo, onde as empresas recrutaram muitos dos operários enviados a Angola. Só em Araraquara, o advogado José Maria Campos Freitas diz conduzir ações de 60 ex-funcionários da obra.

Freitas afirma que, embora recebessem salários acima da média no Brasil, seus clientes foram vítimas de cárcere privado e “trabalho análogo à escravidão” em Angola. “Por muitos anos, a África abasteceu o mercado de escravos no Brasil. Agora vemos essa rota acontecer no sentido inverso”, diz.

A Justiça tem determinado que os trabalhadores sejam indenizados. Em decisão recente numa ação movida pelo operário Dilmar Messias da Silva, o juiz federal do trabalho Carlos Alberto Frigieri diz que o empregador “não preparou o ambiente de trabalho para o significativo número de trabalhadores que transportou para Angola, deixando de proporcionar condições mínimas de higiene, tornando o trabalho mais penoso e degradante”.

Ele condenou a Odebrecht e a Pirâmide, empregadora do operário, a indenizá-lo em R$ 30 mil por danos morais e horas extras não pagas.

As empresas, que negam haver qualquer irregularidade na obra, recorreram da decisão e de todas as outras condenações. A defesa dos trabalhadores também tem recorrido para aumentar o valor das compensações.

Os recursos serão analisados pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, em Campinas.

A reportagem entrevistou, além de José Edval da Silva, outros oito operários que integraram a equipe de 1.800 funcionários da usina Biocom. Todos – inclusive alguns que não entraram na Justiça contra os ex-empregadores – disseram ter enfrentado as mesmas condições relatadas por Silva.

Eles afirmam que, entre 2011 e o fim de 2012, os trabalhadores bebiam água não potável, ratos e baratas circulavam pelo refeitório, e, como boa parte dos banheiros vivia interditada, muitos defecavam “no mato”. Fotos cedidas à reportagem endossam os relatos.

A única alternativa à comida do refeitório, dizem eles, eram os biscoitos e enlatados que um supervisor da obra conhecido como Carlinhos vendia num mercado informal ali dentro, a preços abusivos.

Sair da obra – ou mesmo “fugir”, como ponderou um operário – estava fora de cogitação: eles dizem que superiores retinham seus passaportes pouco após a chegada à obra, alegando que dariam entrada em seus vistos de trabalho.

Muitos dizem ter passado meses sem o passaporte. Sem o documento, eles corriam constante risco de ser alvo de achaques policiais ou até de prisão se deixassem a usina por conta própria.

Os que queriam voltar e pediam o passaporte de volta, não o recebiam. Nem mesmo o passaporte de alguns que adoeciam gravemente e tinham de voltar às pressas era devolvido; estes voltavam com salvo-condutos da embaixada brasileira em Luanda.

Segundo os operários, muitos se adoentavam e não conseguiam cumprir o esquema de trabalho acordado, de jornadas de domingo a domingo, sem folgas. E mesmo quando alguns adoeciam gravemente, eles dizem que os patrões só autorizavam a volta quando corriam o risco de morrer.

O operário Evaldo Barbosa Araújo – também levado à obra pela W Líder – diz ter passado 40 dias de cama, afastado dos trabalhos, até voltar ao Brasil. Nesse período, diz ter sido diagnosticado, ao mesmo tempo, com malária e febre tifoide, duas doenças endêmicas na região.

O caldeireiro Rafael Rocha Gomes conta que, para pressionar os patrões a acatar seu desejo de voltar prontamente, um colega “saiu quebrando tudo”.

“Puseram ele no avião no dia seguinte”, afirma.

Mortes e acidentes

Ao custo de quase R$ 1 bilhão e em construção numa área desabitada da província de Malanje, o complexo industrial Biocom é uma sociedade entre a Odebrecht (40%), a angolana Damer (40%) e a estatal petrolífera Sonangol (20%).

A legislação angolana obriga empresas estrangeiras a se associar com grupos locais em investimentos no setor de biocombustíveis. Para erguer o complexo, foram contratadas empresas do interior de São Paulo, base das indústrias de açúcar e etanol no Brasil.

Além de operários da W Líder, a reportagem entrevistou trabalhadores levados à obra pelas empresas Pirâmide e Planusi.

Embora o empreendimento tenha sócios angolanos, os operários dizem que a condução da obra está a cargo das empresas brasileiras, que atuam sob a supervisão da Odebrecht, a maior empregadora privada de Angola.

A construção conta, no entanto, com operários brasileiros e angolanos.

Três desses trabalhadores morreram desde 2012. Dois deles, os angolanos Eduardo Cabanga e José de Carvalho Rosa, se acidentaram na obra. A Biocom diz que eles não seguiram normas de segurança.

Já as causas da morte do terceiro operário, o brasileiro Donizetti Francisco Fernandes, que atuava como coordenador da Planusi, são objeto de grande controvérsia.

O corpo de Fernandes, de 55 anos, foi encontrado coberto por queimaduras em 19 de maio em Malanje, cidade a 80 quilômetros da usina. Entre os operários, conta-se que ele foi amarrado e teve o corpo incendiado após uma briga.

Segundo a Biocom, porém, uma investigação policial revelou que Fernandes morreu por causa de “queimaduras diversas após um curto-circuito da geladeira, que provocou um incêndio nas instalações onde se encontrava”, fora das instalações da indústria, quando ele estava de folga.

Uma cópia do atestado de óbito enviado à reportagem aponta somente o termo “queimaduras” como causa da morte.

Parentes e amigos do operário que não quiseram ser identificados disseram à BBC Brasil que a versão da empresa jamais os convenceu. Seu corpo, trazido ao Brasil em 30 de maio, foi enterrado em Sertãozinho (SP).

A Biocom diz ter comunicado a embaixada brasileira em Angola sobre a morte. O Itamaraty afirmou, porém, que não tomou conhecimento do caso nem das denúncias de irregularidades na usina. O Ministério do Interior de Angola e a embaixada angolana no Brasil não responderam os questionamentos da reportagem sobre esses temas.

Quarentena no Brasil

Para alguns trabalhadores, nem mesmo a volta ao Brasil pôs fim às provações. Sede da Pirâmide, a pequena Américo Brasiliense (SP) recebeu no fim de 2012 uma leva de 60 trabalhadores egressos de Angola.

A enfermeira Neiva Matarucco, que à época trabalhava na Vigilância Epidemiológica do município, diz que eles chegaram bastante debilitados, com forte diarreia. Havia suspeitas de que parte do grupo estivesse com febre tifoide, doença contagiosa transmitida pelo consumo de água ou alimentos contaminados. Matarucco disse que em alguns casos a suspeita foi confirmada, mas ela não soube precisar quantos.

Enquanto eram tratados, a Pirâmide os hospedou num hotel da cidade. Ao tomar conhecimento do estado de saúde dos hóspedes, porém, o dono do hotel os expulsou e mandou desinfetar o edifício.

A empresa os transferiu, então, para uma casa alugada, onde ficaram até melhorar. O isolamento durou cerca de 40 dias. Após esse episódio, os operários dizem que as empresas melhoraram as instalações e a qualidade da água e da comida na usina.

‘Problemas pontuais’

Questionada sobre as denúncias, a Odebrecht disse que a Biocom se posicionaria em seu nome. A Biocom e a Pirâmide enviaram fotografias em que o refeitório e os alojamentos aparentam boas condições.

Todas as empresas citadas na reportagem dizem que as instalações e condições de trabalho na usina atendem às legislações brasileira e angolana. As companhias negam as acusações de cárcere privado e afirmam que os seus funcionários visitam cidades próximas com frequência.

Dizem ainda que a qualidade da comida é objeto de análises constantes e que todos os empregados foram atendidos ao pedir para voltar ao Brasil. Segundo a Pirâmide, “alguns tiveram de aguardar durante alguns dias para verificação da disponibilidade da passagem e obtenção da documentação necessária para a viagem”.

De acordo com as empresas, “problemas pontuais” nos refeitórios e alojamentos, como alguns decorrentes de vazamentos no período de chuvas, foram rapidamente sanados.

A Pirâmide diz ainda que vários empregados foram mais de uma vez a Angola, “o que demonstra que as condições de trabalho estavam longe de corresponder ao cenário narrado por alguns desses e que, em termos econômicos, a prestação de serviços no país estrangeiro era benéfica”.

Em decisões recentes, a Justiça admite que as condições na usina melhoraram neste ano. Numa das sentenças em que condenou as empresas denunciadas, porém, o juiz Carlos Alberto Frigieri afirma que “as fotos juntadas pela defesa não refletem as reais condições do início dos trabalhos, evidenciando apenas que as condições foram posteriormente melhoradas, por força das próprias ações ajuizadas no Brasil, mas sem o condão de elidir (eliminar) o prejuízo já sofrido”.

Para o operário José Edval da Silva, compensação alguma o fará esquecer o que passou em Angola. “Peguei trauma até de viajar de avião”.

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