Marco Civil: dados em servidores nacionais garantem privacidade?

A proposta do governo de tornar obrigatório o armazenamento de dados de internautas em território nacional não garante a privacidade destes e ainda ameaça prejudicar o desenvolvimento do setor de tecnologia, na opinião de analistas ouvidos pela reportagem. O governo resolveu de última hora apresentar a proposta como uma possível emenda ao Marco Civil da […]

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A proposta do governo de tornar obrigatório o armazenamento de dados de internautas em território nacional não garante a privacidade destes e ainda ameaça prejudicar o desenvolvimento do setor de tecnologia, na opinião de analistas ouvidos pela reportagem.

O governo resolveu de última hora apresentar a proposta como uma possível emenda ao Marco Civil da Internet, uma espécie de “Constituição da rede” que será votada na Câmara dos Deputados nesta semana.

O tema ganhou relevância após o vazamento de documentos indicando que os Estados Unidos espionaram líderes de nações aliadas, entre eles a presidente Dilma Rousseff.

O governo argumenta que a medida aumentaria a segurança de internautas contra espionagem. Dados de várias grandes empresas que operam no Brasil, como Google, Facebook e Microsoft – que administra os serviços de e-mail Outlook Express e Windows Live Mail -, por exemplo, são estocados em servidores nos Estados Unidos.

A possível emenda, no entanto, levanta duas questões: até que medida o estoque de dados em servidores nacionais protegeria o internauta brasileiro da espionagem internacional e em que medida o deixaria vulnerável a uma eventual espionagem por parte do Estado brasileiro?

Relator do projeto do Marco Civil, o deputado Alexandre Molon (PT-RJ) diz que ainda não há acordo sobre a inclusão desse tópico no projeto. Em entrevista, ele negou que a eventual obrigatoriedade da estocagem de dados no país represente qualquer ameaça aos direitos e garantias individuais dos cidadãos brasileiros por parte dos serviços estatais de inteligência.

“O projeto do Marco Civil protege o sigilo dos internautas, com a mesma proteção do sigilo telefônico. Isso (quebra de sigilo) só com ordem judicial”, argumenta.

Nos Estados Unidos, os internautas também tem o direito à privacidade resguardado em lei. Os vazamentos intermediados pelo ex-colaborador da Agência Nacional de Segurança (NSA na sigla em inglês), Edward Snowden, indicam, no entanto, que a privacidade de muitos americanos pode ter sido violada.

A presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB-RJ, Ana Amélia Menna Barreto, considera a possibilidade de espionagem por parte do Estado brasileiro pouco plausível, mas alerta sobre a necessidade de discussão do tema de forma transparente.

“Se antes o internauta poderia ser espionado por outro país, em caso de aprovado (o Marco Civil) poderia em tese ser espionado pelo governo brasileiro”, diz.

LegislaçãoEspecialista em segurança da informação, o professor Adriano Cansian, da Unesp de São José do Rio Preto, diz que “do ponto de vista técnico é complicado” assegurar a proteção de dados de internautas brasileiros pelo simples fato de estocá-los em território nacional.

Ele argumenta que essas informações poderão, em algum momento, passar pela rede, abrindo a possibilidade de espionagem. Cansian chama a atenção, no entanto, para a questão jurídica.

O professor argumenta que a falta de legislação específica pode fazer com que eventuais crimes cometidos no Brasil passem incólumes, já que grandes empresas possuem seus servidores locados em outros países.

“(O projeto) Poderia trazer uma maior segurança jurídica ao facilitar a aplicação de leis nacionais (quando há violação de dados). É complexo falar em segurança quando se está fora da aplicação da lei”, diz o professor, alertando sobre a necessidade de maior discussão sobre o tema.

“E preciso dar um passo na proteção de dados individuais. Do ponto de vista do cidadão, o buraco é mais embaixo”, diz, ao defender a discussão de uma legislação que vá além do Marco Civil e aborde o tema.

“Temos quantidade imensa de dados pessoais em poder de instituições públicas e privadas e que podem ser até comercializados. Se alguém roubar, não existe legislação para isso hoje”, diz.

Isolamento

A proposta do governo é alvo de críticas sobretudo de gigantes da internet preocupadas com o potencial aumento de custos a partir de uma eventual obrigatoriedade da estocagem de dados no país.

O Google disse em nota que “sempre apoiou o Marco Civil”, mas que a emenda discutida “arrisca limitar o acesso dos usuários brasileiros a serviços de empresas dos EUA e outros países”.

Para o Facebook, “o armazenamento de dados é um desafio enorme e essencialmente técnico”.

“Uma exigência como essa que vem sendo debatida frustrará a inovação e criará barreiras desnecessárias para empresas nascentes. O Marco Civil é, e deve ser, a base de uma legislação para uma internet aberta e livre no Brasil,” disse em nota.

A Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico pediu mais discussão do tema. Disse que a decisão de tornar ou não obrigatório estoque de dados no país “afetará positiva ou negativamente a competitividade do país nas próximas décadas e a sua inclusão ou exclusão de um mundo conectado onde parte significativa do conhecimento, da inovação, da competitividade da geração de riqueza passa pelo ambiente digital”.

O deputado relator contestou os temores, dizendo que “a ideia ainda não está fechada”.

“Não acredito que vá isolar ou imobilizar qualquer atividade no país. Isso afetaria pouquíssimos negócios, seria restrito a grandes empresas”, disse Molon.

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